Começa-se pelo estúdio, onde não se pode entrar porque o piso (uma espécie de linóleo) é o original. Ibsen tinha a secretária junto à janela; escrevia de frente para as árvores do parque e quase directamente de costas para um gigantesco quadro retratando August Strindberg, o seu rival sueco. Ibsen comprara a pintura não por apreciar Strindberg (que passara de seu admirador a crítico feroz) mas por desejar sentir-se permanentemente desafiado. Começava a escrever às nove da manhã e parava às onze e meia, ainda que deixando uma frase inacabada. Gostava, aliás, de se interromper num período de inspiração porque isso lhe permitia recomeçar igualmente inspirado. Saía de casa e percorria umas centenas de metros até um café onde tinha mesa reservada. Lia o jornal, observava as pessoas. Embora constituísse motivo de curiosidade para muita gente, ninguém o abordava. Em 1900, depois do primeiro de três derrames cerebrais, tornou-se-lhe difícil percorrer o trajecto até ao café. O rei ofereceu-lhe então uma chave para o parque do palácio (hoje público), que podia visitar sempre que desejava.
Ibsen autorizara a colocação de um piano no apartamento mas detestava música, considerando-a uma distracção. Apenas a nora tinha autorização para usar o piano de forma regular. Até mesmo o compositor Edvard Grieg, que criou a música para Peer Gynt, tê-lo-á utilizado somente uma vez. Também há uma pequena biblioteca no apartamento mas, pelo menos nesta fase da vida, Ibsen não gostava de ler. Defendia que o realismo que buscava era encontrado observando as pessoas, não através da leitura. Era Suzannah quem lia. À noite, lia em voz alta para ele ouvir.
Em quase todas as peças a partir de Casa de Boneca se percebe como Ibsen detestava a hipocrisia da vida familiar e social: aquelas mentiras, aqueles ajustes, aquelas ideias feitas que, no fundo, então como agora, são a base da convivência humana. As suas últimas palavras (assumindo que, ao estilo de O Homem que Matou Liberty Valance – e como é estranho meter um western neste texto – a lenda não ultrapassou a realidade) são por isso mesmo perfeitas. Agonizando na cama após mais um ataque, aparentemente sem noção do que se passava à sua volta, reagiu às informações da enfermeira para um visitante, segundo as quais ele estava a melhorar, abrindo os olhos e resmungando: «Pelo contrário.» Voltou a tombar inconsciente e morreu no dia seguinte, 23 de Maio de 1906.
Qualquer pessoa pode poupar as 95 coroas (mais umas quantas para chegar a e sobreviver em Oslo) e encontrar esta informação na Internet (por exemplo, aqui, a partir de agora). E, contudo, é diferente ouvi-la no local, olhando para o retrato de Strindberg, ou para os livros, ou para a banheira, que a guia jura ser a original, recuperada depois de ter andado a servir de bebedouro para animais numa quinta algures, onde Ibsen tomava dois banhos diários (era um dos seus grandes prazeres), ou para os quartos, incrivelmente espartanos quando comparados com as restantes divisões da casa. Subitamente, que apenas sejam autorizadas visitas guiadas faz todo o sentido. E que nesta apenas se encontrassem uma chinesa com tendência para o mutismo, uma belga pouco faladora, uma alemã bastante silenciosa e um português que também pouco disse pareceu tornar tudo ainda mais perfeito. Vozes e risos e passos destruiriam o ambiente. Bom, que a guia não debitasse a informação de forma demasiado ensaiada e fosse uma norueguesa loura, com pouco menos de trinta anos de idade, pouco mais de um metro e setenta de altura (Ibsen, norueguês de outros tempos, media um e sessenta e um), corpo esbelto e sorriso pertencente àquela traiçoeira categoria de sorrisos que deixam um homem sentindo-se imundo quando se atreve a questionar-lhes a genuinidade, também terá ajudado. Olhando para ela falando com entusiasmo, não pude deixar de pensar que Ibsen estava certo: observar as pessoas ao vivo é extremamente agradável. Pelo menos certas pessoas.
Mas não era na guia que eu pensava ao passar de novo perto do piano e abandonar o apartamento. Bailava-me no cérebro a ideia pouco original (para quê entrar por caminhos desconhecidos?) de que todos os génios são simultaneamente indivíduos normais, com vidas chatas e apartamentos banais (ainda que com vistas bonitas), e pessoas contraditórias, frequentemente auto-destrutivas. No fundo, que todos os génios têm uma apreciável dose de loucura. (A de Strindberg, acrescente-se en passant, era ainda maior do que a de Ibsen.) Infelizmente para mim, nem o sol que entretanto surgira em Oslo me abriu esperanças de o inverso também ser verdade. Mas outra coisa talvez seja. No apartamento encontra-se a cadeira onde Suzannah morreu em 1914. Suzannah detestava a ideia de morrer deitada. Quando sentiu o fim aproximar-se (na velhice e na doença, é sempre a morte que se aproxima, não os humanos que se aproximam dela), passava as noites sentada na cadeira. Uma manhã não acordou. Se os génios têm invariavelmente uma dose considerável de loucura, os seus parceiros necessitam pelo menos de uma boa pitada.
Fotos pescadas no Bing (é proibido fotografar no interior do apartamento).
Sábado, 25 de Maio, à noite. Nos ecrãs do comboio que liga o aeroporto de Estocolmo à cidade, informa-se – em inglês – que grupos de «pais» patrulham as ruas dos bairros onde se têm verificado confrontos e que o acto recebeu elogios da polícia. Porque os fait divers são hoje tão importantes como as notícias «sérias» (com a necessidade de escape que parecemos ter, é possível que até sejam mais importantes), a notícia seguinte é acerca de um acidente rodoviário causado por uma fêmea de alce que decidiu dar à luz no meio de uma estrada.
Domingo, 26 de Maio, à tarde. A campa de Olof Palme encontra-se numa pequena praça situada a menos de duzentos metros do local onde ele foi assassinado, ao regressar do cinema com a mulher. É uma praça rectangular, com uma igreja rodeada por um pequeno cemitério. Quase todas as campas têm cruzes mas não a dele. A dele tem uma pedra. É uma campa bonita. Foi vandalizada, há uns tempos, com graffiti. Não consigo lembrar-me se, desde a morte de Palme, mais algum líder europeu de uma nação em paz foi assassinado. Certamente o último caso não poderá ter sido aqui, num país rico, evoluído, tolerante.
Quarta-Feira, 29 de Maio, ao fim da tarde. O Mercado de Peixe é um dos pontos de interesse da cidade de Bergen, na Noruega. Porém, como muitos outros locais em países desenvolvidos, trata-se hoje de uma área para consumo turístico. Há bancadas ao ar livre, cobertas por toldos, onde são preparadas refeições na hora. Numa delas, uma rapariga sorridente responde ao inglês com castelhano. Explica que é uma de duas espanholas a trabalhar naquela banca e que entre os colegas estão um italiano, uma francesa, dois brasileiros e uma uruguaia. Nos países desenvolvidos não apenas as tradições foram convertidas em atracções turísticas como, ainda por cima, são mantidas por imigrantes.
Sexta-Feira, 31 de Maio, ao fim da tarde. Do lado de dentro do balcão do McDonald’s de Aker Brygge, em Oslo (Aker Brygge é uma zona nova, de prédios de vidro e metal, com bares e restaurantes e passadiços junto à água), encontram-se três jovens de pele negra, um que parece indiano ou indonésio, e uma rapariga com traços que lembram os nativos da América Latina. Cabeças louras apenas do lado de fora do balcão.
Sábado, 1 de Junho, à tarde. Na estação de metro de Majorstuen, em Oslo, cinco rapazes de quinze ou dezasseis anos e aparência sul-americana envolvem-se numa discussão com um rapaz de aproximadamente vinte, alto e louro. Não percebo quem começou nem porquê mas o incidente só não descamba em violência física porque a acompanhante do rapaz louro – tão loura quanto ele – se interpõe. Seguem todos pela plataforma em direcção à saída, trocando frases em tom agressivo.
Em qualquer das três cidades (Estocolmo, Bergen, Oslo), é notório o elevado número de pessoas com ascendência noutras paragens – em África, na América Latina, no Extremo Oriente. Pessoas habituadas a temperaturas de trinta e tal graus, forçadas a suportar menos dez ou menos vinte (no Inverno; agora andam pelos dezoito, dezanove e está-se bem), ocupando os empregos a que os nórdicos já não precisam de se submeter. Em teoria, os imigrantes são bem tratados. Estes são países com leis evoluídas. Mas com que olhos verão os imigrantes – e em especial os filhos dos imigrantes – as diferenças de rendimento? Não será a pobreza (ainda que relativa, tão inferior à que experimentariam nos países de origem que talvez o termo nem faça sentido) uma condição especialmente frustrante quando se está rodeado por gente rica (e, ainda por cima, atraente)? E depois há a reacção dos nórdicos. Gostamos de pensar neles como tendo uma mentalidade aberta, tolerante, progressista. É uma visão demasiado benigna mas comecemos por algo que sucede em todos os países onde os imigrantes preenchem os tais empregos que os autóctones recusam (logicamente, uma vez que dispõem de melhores alternativas): a presença deles, que a cor da pele e os hábitos culturais tornam indisfarcável, constituiu uma acusação silenciosa (ainda que injusta) de egoísmo. São um lembrete constante de que o igualitarismo é sempre mais teórico do que real (mesmo em países que se orgulham dele), de que, por mérito ou por sorte (normalmente por uma mistura dos dois factores), há sempre privilegiados. Na nota inicial de Child Wonder, um dos livros de autores nórdicos contemporâneos que enfiei no Kindle para a viagem, o norueguês Roy Jacobsen escreve: Os meus heróis são crianças. Crianças corajosas, lutadoras. Crescendo numa área de operários nos arredores de Oslo no início dos anos sessenta – uma época de confusão, excitação e experiências sociais violentas. Antes do petróleo. Antes de alguém ter qualquer dinheiro. Quando um estado social social-democrata não passava de uma ideia vaga e desesperada, pouco condizente com a sociedade noveau-riche que produziu em poucas décadas. Esta foi uma mudança tão abrupta, radical e inédita na história da Noruega que tudo o que resta é uma nostalgia ambígua e histórias reais acerca desse eterno assunto: como perder a inocência sem perder a alma. Este romance é dedicado àqueles miúdos que conseguiram. E aos que não conseguiram. Amo-os a todos. (Tradução minha, a partir da versão em inglês.) A memória dos anos de penúria continua presente e assusta ou, pelo menos, confunde. Das tramas dos policiais de Henning Mankell aos recentes motins em Estocolmo, passando pelo assassinato de Palme e pelos resultados eleitorais de alguns partidos extremistas, abundam indícios de que, no instante em que nível de vida actual ficar em risco, todo o cosmopolitismo se desvanecerá. Sendo que, mesmo agora, uma época de riqueza e abertura, uma época em que a cada instante nos cruzamos com casais homossexuais nas ruas, certas diferenças continuam a assustar muita gente. Afinal, foi em Oslo que, faz este mês dois anos, um fanático assassinou dezenas de pessoas em nome da ideia da separação cultural.
Quarta-feira, 29 de Maio, à noite. No exterior da sala de espectáculos Edvard Grieg, em Bergen, um grupo de jovens diverte-se bebendo cerveja e dançando o Charleston. Observo-os durante alguns minutos. Mais tarde, ocorrer-me-á que os roaring twenties, a década em que o Charleston esteve na moda, foram seguidos pela Grande Depressão e pela Segunda Guerra Mundial; mas, no momento, o ambiente de descontracção nem me leva a reparar na cor do cabelo deles.
Na foto: a campa de Olof Palme.
E a propósito do inferno, antes de chegarmos aqui, à igreja e à cripta: quando é que um acto deste género é lícito e não terrorismo? Aceitamo-lo e glorificamo-lo por ocorrer durante uma guerra e ser cometido pelo lado justo (e neste caso é fácil; quase todos aceitamos o mesmo lado como sendo o justo) ou por Heydrich ser um monstro? Talvez mais importante: quando é que um acto destes vale a pena? Na sequência do atentado, os nazis mataram, torturaram e deportaram centenas de pessoas. Seguindo uma suspeita infundada, arrasaram a aldeia de Lidice, a noroeste de Praga (173 homens entre os quinze e os oitenta e quatro anos foram fuzilados de imediato, 26 foram mortos mais tarde em Praga, 88 crianças foram gaseadas em Chelmno, na Polónia, e 53 mulheres morreram em vários campos de concentração). Todos as pessoas envolvidas na preparação do atentado, ainda que de forma circunstancial, foram mortas (incluindo, evidentemente, os clérigos da igreja de São Cirilo e São Metódio e as familias que esconderam os pára-quedistas). No outro prato da balança, o atentado abanou de facto a confiança do Terceiro Reich, mostrou que a ocupação da República Checa estava longe de ser pacífica e, mais importante, o massacre de Lidice provocou reacções de horror a nível internacional, expondo o regime nazi como de facto era: brutal. Ainda assim: valeu a pena?
É esta cripta. Acanhada, escura, fria, bruta. Mas não morrem aqui os sete. Kubiš, Bublík e Opálka morrem lá em cima, na nave, depois de resistirem a partir da galeria até às sete da manhã. Só depois os nazis se apercebem da existência dos restantes. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc aguentam cinco horas, aqui em baixo. Os nazis não conseguem descer (os soldados que, cumprindo ordens, procuram fazê-lo são recebidos com tiros nas pernas) e revelam-se estranhamente ineficazes na resolução do problema. Resolvem inundar a cripta através da seteira que dá para a rua e, ao mesmo tempo, lançar granadas lacrimogénias cá para dentro. Mas os métodos têm efeitos contraproducentes (a água no chão diminui o efeito das granadas permitindo que seja possível atirá-las de volta para a rua) e os sitiados conseguem, com uma escada de mão, ir empurrando a mangueira da água. Entretanto, vão escavando na parede, tentando atingir uma qualquer conduta subterrânea que passe sob a rua Resslova (a seteira, ou respiradouro, ou o que lhe quiserem chamar, está aqui, a uns dois metros e meio de altura, e o buraco na parede também, quase por baixo, desviado para a direita). Finalmente, por volta do meio dia, tudo acaba: na nave da igreja, os nazis rebentam uma laje e abrem outro acesso à cripta. Gabčik, Valčik, Hruby e Švarc percebem que o jogo acabou e suicidam-se.
É sábado, 2 de Junho, e apercebo-me de repente que foi há setenta anos. Há setenta anos, Heydrich estava a morrer no hospital e homens condenados ocupavam esta cripta. Sinto-me indisposto, aqui dentro, como turista, máquina fotográfica na mão. Mas provavelmente é a única reacção adequada.
(Os retratos são de Kubiš e Gabčik, tal como aparecem nos painéis informativos existentes na igreja. As fotos da cripta são actuais, tiradas por mim. Os dados foram recolhidos do folheto oficial, comprado no local, do livro HHhH, de Laurent Binet, e da internet.)
Entre outras coisas, o Museu Kafka tem fotos de Praga e de pessoas com quem Kafka se relacionava, páginas originais manuscritas (que, já o verifiquei noutros museus perante páginas de outros escritores, me deixam no estado mais próximo da religiosidade que consigo atingir), filmes interessantes e filmes pomposos, instalações que pretendem induzir um efeito de desorientação (falham), paredes de gavetões tipo-morgue, cada um deles com o nome de uma personagem de Kafka, meia dúzia dos quais abertos para mostrar a primeira edição do livro correspondente. Percebo que os museus tentem inventar formas «apelativas» de mostrar aquilo que se propõem mostrar mas às vezes exageram; enfim, este nem é dos piores. Na verdade, aprecio a visita – que termina de forma inesperada: a porta de saída (que é também a de entrada) encontra-se fechada à chave e nenhum funcionário se encontra na área de recepção. Meia dúzia de visitantes, entre os quais eu, torcem o puxador, entreolham-se, tentam perceber o que se passa. Das salas do piso superior vem o ruído da música e das locuções, o que parece indicar que, por lá, tudo continua a funcionar normalmente. Algumas pessoas procuram outra porta mas esta parece não existir. Nem sequer há cadeiras onde nos sentarmos à espera. Passam dez, quinze, trinta segundos. Um minuto. Verificam-se os telemóveis. A senhora da recepção surge finalmente, esbaforida. Usa a chave para abrir a porta, pede desculpa: tivera que ir à casa de banho. Digo-lhe, em inglês, que já pensávamos que aquilo fazia parte da visita, que se tratava de uma tentativa de lhe conferir um final kafkiano. Arregala os olhos, solta uma gargalhada, garante que não. Cá fora, penso que, assim como assim, até nem seria má ideia. Se alguém lá passar daqui a uns tempos, faça-me o favor de verificar se não a aproveitaram.
Não estou cá. Ou melhor, não estou aí. Estou, há pouco mais de três horas, aqui. E ainda não ouvi falar de Miguel Relvas uma única vez. Claro que também não percebo patavina do que eles dizem...
(Talvez ainda escreva qualquer coisa sobre temas de cá: escritores, músicos, físicos, fotógrafos, assassinos heróis ou qualquer coisa do género. Mas se tudo correr bem é provável que não me apeteça.)
A pose típica do turista é de costas para o que quer que seja – igreja, praça, quadro, paisagem – que o levou até ao local. A putativa atracção fica assim por trás, mais ou menos focada, mais ou menos bem exposta, consoante a capacidade do fotógrafo, as características do sensor de imagem e a inteligência dos algoritmos da máquina. Para quase toda a gente, o importante é a própria presença – cá estou eu em frente àquilo. É ser capaz de provar a si mesmo e aos outros ter estado lá – junto daquele segundo plano.
Com a imagem de um homem utilizando um velho Fiat Seicento como se fosse uma scooter numa auto-estrada entupida de veículos ainda fresca na cabeça, faço questão de entregar o automóvel na Hertz imediatamente após entrar na cidade. Enquanto arrasto a mala pelas ruas constato que poucos passeios têm rampas e que a cor dos semáforos é apenas uma sugestão de comportamento. Ainda não o sei mas esta primeira e nada original imagem de Roma vai marcar tudo o resto.
Roma é um caldeirão de contradições. Essencial na evolução política e cultural do ser humano, está em relação ao seu passado um pouco como Portugal em relação aos Descobrimentos: não se percebe bem como pôde atingir tais alturas. Ou talvez perceba mas a explicação não é simpática: tanto no período Clássico como no Renascimento, quase tudo passou pela decisão de meia dúzia de indivíduos com demasiado poder. Mais do que o povo «comum», mais do que os artistas e/ou os teóricos do pensamento, terão sido os humores, as preferências, as crenças e as invejas de líderes muito pouco escrutinados a empurrar Roma (como, nos séculos antes do e durante o Renascimento, também Florença e Veneza) para a glória. É aliás curioso pensar que, enquanto turistas, admiramos hoje um pouco por todo o mundo os efeitos da autocracia política e religiosa. (Não que ela seja indispensável: mesmo em democracia, e porque as arenas para lutas de gladiadores são agora de outro tipo, é sempre possível construir estádios de futebol.)
Mas a aparente dissonância entre as capacidades dos romanos actuais e a obra dos seus antecessores não é a única contradição em Roma. Há outra, mais prosaica: sendo uma cidade com tantos pontos de interesse e tão voltada para o turismo, a que se chega com as imagens de Audrey Hepburn e Gregory Peck andando de scooter em torno do Coliseu e de Anita Ekberg tomando banho na Fontana di Trevi, é também uma cidade que se sente estar farta de visitantes. Ao contrário do que afirmam os guias de viagem, quase não há jardins ou parques; para descansar, os turistas sentam-se na beira dos passeios e em qualquer degrau da Scalinata di Spagna que se encontre à sombra. Apesar da quantidade de visitantes, não há casas de banho públicas e os restaurantes limitam o acesso às suas a clientes; para urinar, muitas mulheres e alguns homens (é sempre mais complicado para as mulheres) fazem fila junto às casas de banho dos McDonald’s. Não se estando à espera de perfeição na organização e limpeza, as tendas no Campo di Fiori são tão numerosas que é impossível ter uma visão adequada da praça; Giordano Bruno parece perdido no alto do pedestal, olhando para a face superior dos toldos. Roma é uma cidade que se sujeita ao turismo (entraria em colapso sem ele) mas que recusa preocupar-se com o bem-estar dos turistas. E se isso por um lado é bom (o visitante não se sente num cenário erguido em sua homenagem), por outro é com frequência exasperante. Mas há mais: se conseguirmos esquecer o peso da História (nada fácil, é verdade) e apesar de todas as igrejas, praças e monumentos, em poucas zonas Roma é verdadeiramente bonita. Pelo menos não no sentido em que capitais europeias como Paris, Viena, Amesterdão ou Lisboa o são.
Talvez o exemplo mais flagrante de como certas experiências potencialmente sublimes são arruinadas pelo excesso de turismo, que não é culpa dos romanos, e pela falta de organização, que é, seja a visita aos Museus do Vaticano. As salas de Raffaello são magníficas (por uma qualquer razão obscura, atrai-me particularmente a aula prática de
Euclides no fresco A Escola de Atenas.) Há na Pinoteca obras de Caravaggio e Da Vinci. A galeria dos mapas é simultaneamente grandiosa e delicada. Porém, a existência da Capela Sistina e o percurso necessário para a atingir transformam o interior dos museus num gigantesco mal-entendido. O exemplo mais notório talvez ocorra nas salas imediatamente antes da capela, onde se encontram expostas obras de artistas ‘modernos’ como Van Gogh, Chagall, Gauguin, Kandinsky, Dali e Bacon. As pessoas passam aos magotes, atiram um olhar rápido às paredes mas, com raras excepções, nem sequer abrandam no percurso entre a porta de entrada e a de saída. Podem existir não sei quantos quilómetros de galerias nos Museus do Vaticano mas tudo o que a maioria dos visitantes deseja ver é a Capela Sistina. Que, aliás, é uma maldição para ela mesma (é impossível apreciá-la condignamente quando nos sentimos um cordeiro tentando manter a cabeça erguida no meio de um rebanho em movimento) e para o resto dos museus (como apreciar a galeria dos mapas, por exemplo, se não se pode deambular calmamente de uma pintura para outra sem ser arrastado pela massa de gente a caminho da porta de saída?) Deveria ser arranjada uma entrada directa para a capela ou então (como na Galleria Borghese) limitar-se o número de admissões. Poupar-se-ia muita exasperação a quem deseja apreciar outras áreas e facilitar-se-ia a vida àqueles que apenas pretendem, regressados a casa, poder afirmar terem estado no interior da Capela Sistina. Nem Michelangelo, nem Rafaello, nem Caravaggio, nem Pinturicchio (que decorou os aposentos Bórgia), nem Van Gogh nem dezenas de outros merecem ter as obras apreciadas por gente exasperada.
(Releio este texto e ele parece-me longo, desconexo, contraditório. Deve estar pronto.)
O calor não ajuda, os magotes de outros turistas também não. Na Piazza della Signoria sou incapaz de visualizar Botticelli queimando as suas obras «pagãs» durante o período de Savonarola (apesar de ter lido existirem dúvidas quanto a ele o ter efectivamente feito, nos Uffizi, diante d’O Nascimento de Vénus e d’A Primavera – pinturas mais escuras e baças do que esperava, talvez porque nos vamos habituando ao brilho excessivo dos ecrãs de computador – dou graças por já terem saído das mãos dele nessa época). No baptistério, não consigo imaginar a cena em que, n’A Divina Comédia (Inferno, Canto XIX), Dante relata como salvou uma criança de morrer afogada numa pia baptismal. Na Ponte Vecchio, pejada de ourivesarias (e, embora sejam hoje lojas de aspecto cem por cento turístico, a existência de ourivesarias neste local não constitui uma adulteração do passado, pelo menos desde que em 1593 os talhantes, ferreiros e curtidores que o ocupavam foram expulsos por causa do mau cheiro), páro, obrigando pessoas com mapas e máquinas fotográficas a desviarem-se, e ergo os olhos para o corredor Vasariano mas também não me é fácil imaginar os membros da família Medici usando-o para evitar o contacto com a população (ainda que – garanto – os entenda melhor neste instante do que alguma vez no passado). É incrível estar no epicentro do Renascimento (e não só, que Giotto, Dante, Petrarca, Boccaccio, Donatello e muitos outros lhe são anteriores) mas torna-se impossível imaginar a realidade de há quinhentos anos. Diabos, torna-se impossível imaginar Hannibal Lecter passeando por estas ruas sem cortar a artéria femural de vinte ou trinta pessoas em cada trajecto. Lamento, Thomas Harris, mas afinal a trepanação não é o único ponto de Hannibal a que falta verosimilhança.
E esta não é a única impossibilidade: também é impossível abarcar tudo. Há demasiada informação. Demasiados edifícios relevantes a visitar, demasiados nomes imortais a recordar, demasiadas pinturas e estátuas a ver, demasiadas intrigas e traições a estudar. O problema é antigo, claro. Como assimilar a História de um local? Como sentir a grandeza de um quadro ou de uma estátua? E de dezenas? Fica quase sempre uma sensação de incapacidade, de que devia sentir-se mais. Talvez a forma correcta de abordar um local seja sem expectativas, com a cabeça vazia. Não ter antes lido Florença, Um Caso Delicado (Asa, 2004, tradução de Teresa Casal), onde David Leavitt escreveu: «A promessa de um destino, tendendo por um lado para o erótico e, por outro, para o artístico, parece ter estado sempre associada a Florença na imaginação do estrangeiro, atraindo-o para a cidade não só para que ele possa ver, mas também para que ele possa ser ou tornar-se algo mais do que é. Ou talvez fosse mais exacto dizer-se que ele espera recuperar uma qualidade que lhe é endémica mas cuja expressão foi inibida pelo seu ambiente de origem.» Mas eu li. E por isso caminho pela cidade e percebo que estou a falhar. Que não pareço conseguir apreciar devidamente o que vejo e que, em consequência disso, sou incapaz de encontrar a tal qualidade que me seria endémica. Pergunto-me se a culpa será exclusivamente minha ou se a devo partilhar com os milhares de outros turistas. Destruiremos mutuamente a hipótese de atingir a plenitude? Mas então penso que Leavitt também classificou Florença como a cidade dos suicidas (e dos homossexuais) e que a propensão para o suicídio se pode dever precisamente ao facto de, com ou sem turistas, Florença mostrar ao visitante que este dificilmente estará à altura do desafio que lhe coloca. Certos locais – como certas pessoas – atraem mas expõem insuficiências. Magnífica, Florença consegue ser uma cidade cruel.
(Apesar de poder confirmar a crueldade, retiro algum consolo do olhar de Botticelli em A Adoração dos Magos. Na extremidade direita da tela, junto de elementos da família Medici passando por reis magos, Botticelli examina os que lhe vieram admirar o génio – quem disse que o pós-modernismo é uma coisa recente? – com uma mistura de enfado e irritação. Apetece-me dizer-lhe que, pelo menos a ele, aqui, o vejo e compreendo.)
Mas Génova tem ainda outros monumentos interessantes, como a catedral San Lorenzo, e tem também uma das maiores zonas históricas da Europa, constituída por um emaranhado de ruas estreitas e pitorescas. Por que não é então um destino turístico tão importante como outras cidades italianas? Em grande medida, porque ruas estreitas não conseguem rivalizar com palácios e catedrais (na eterna luta entre cidades italianas, neste tempo em que o turismo é o Santo Graal de qualquer região, a derrota de Génova foi decidida há quinhentos anos). Mas também porque, independentemente da existência de catedrais ou palácios (e, volto a realçar, Génova possui exemplares de umas e outros), o centro histórico de Génova não parece um destino turístico. Os centros históricos de Florença, Pisa e Siena parecem destinos turísticos. Os centros históricos de quase todas as cidades espanholas parecem destinos turísticos. Os centros históricos de Braga e de Guimarães parecem destinos turísticos. As ruas e os canais de Veneza são o expoente máximo de como um centro histórico pode parecer um destino turístico. O centro histórico de Génova, pelo contrário, é um sítio onde pessoas – e pessoas não especialmente organizadas ou cuidadosas – parecem viver.
Onde quero chegar? Na ânsia de atrair turistas, as cidades, e em especial as zonas históricas das cidades, são hoje pouco mais do que museus ao ar livre: em vez de quadros e estátuas, expõem edifícios retocados para parecerem mais bonitos; em vez de uma loja de souvenirs, têm centenas; em vez de se pagar um bilhete para entrar, pagam-se preços inflacionados nas bebidas, refeições e alojamento. São, em muitos casos, locais com muito pouca vida para além da que depende do turismo. São zonas arranjadinhas, limpas, assépticas. Há um par de anos, parado no Cais de Gaia, fui interpelado por um espanhol. Queria saber qualquer coisa, já não me lembro o quê, mas depois continuou a falar e ao fim de minutos estava a dizer-me que a Ribeira, do outro lado, devia ter os prédios mais bem arranjados e que devia haver mais hotéis junto ao rio e outras coisas que também já não recordo. Nem me dei ao trabalho de discordar porque é inútil fazê-lo: mais do que cidades vivas, a maioria das pessoas deseja cenários perfeitos. É a minoria capaz de apreciar um mínimo de realismo (e, como é óbvio, não estou a defender que se facilite a degradação) que apreciará as ruas estreitas e escuras, nem sempre limpas, nem sempre bem cheirosas, nem sempre bem frequentadas, e os edifícios com pintura degradada dos bairros da Ribeira, da Sé ou de Miragaia, no Porto. Ou as ruas do centro histórico de Génova. Onde, descontada a profusão de anúncios luminosos e de cabos eléctricos pendurados, se consegue mais facilmente imaginar como seria a vida há quatrocentos ou quinhentos anos do que nas ruas inegavelmente mais bonitas de muitas outras cidades.
Mas afinal eu também não permaneço em Génova mais do que algumas horas antes de seguir para Pisa e Florença.
Preâmbulo
Estou de volta (estejam à vontade para festejar porque, por muito que goste de vocês – especialmente de ti; sim, tu, com o Toshiba cor-de-rosa –, não serei eu a fazê-lo). Tendo rabiscado umas quantas notas que não cheguei a publicar, vou desfazer-me delas durante os próximos dias. Depois talvez comece a prestar atenção ao novo governo. Ou não: estados de graça não combinam comigo.
Em Zermatt não circulam veículos com motor de combustão interna. Os automóveis têm de ser deixados em Täsch, a cerca de cinco quilómetros e meio. A partir daí, usa-se o comboio. Os hotéis de Zermatt enviam pequenos veículos eléctricos à estação recolher hóspedes e bagagem. São veículos curiosos, paralelepípedos toscos com rodas. O condutor do veículo do hotel Mirabeau (o buffet de pequeno-almoço tem pães e bolos sublimes) usa uma plaquinha com o nome “Jorge”. É português. Explica que se encontra em Zermatt há cerca de quatro anos e que está longe de ser o único português ali. Ouviu dizer – não sabe se é verdade – que são perto de três mil ou quarenta por cento da população. Sei que há muitos portugueses na Suíça mas ainda assim fico surpreendido. Rapidamente constato que os números de Jorge não devem andar longe da realidade. No hotel, um Avelino leva a bagagem até ao quarto. Mal regressado à rua, cruzo-me com um homem vestindo uma camisola do Futebol Clube do Porto. Grupos passam a falar em português. Crianças com trotinetes gritam em português. No dia seguinte, a funcionária de uma loja, rapariga louríssima, explica em português que, não sendo portuguesa, como tem amigas que o são já consegue falar a língua. Digo-lhe que a fala muito bem (é verdade). Torna-se simultaneamente gratificante e desconfortável estar rodeado de tantos portugueses. Gratificante porque, apesar de me encontrar no coração dos Alpes, é como se não se estivesse verdadeiramente num lugar estranho. Desconfortável porque sinto ter usurpado um poder que não condiz comigo: tão português como os restantes, por que diabo gozo do privilégio de ser turista? Mas ei – isto sou eu. Felizmente muitas pessoas não têm pruridos deste género (desconfio que algumas até gostarão de poder sentir-se superiores) e, de qualquer modo, questões existenciais não devem dissuadir quem quer que seja de ir até Zermatt ou qualquer outro ponto da Suíça. Aliás, vai-se a ver e é por serem confeccionados por portugueses que os pães e os bolos são tão bons.
Horas depois, regressando a Itália, conduzo em direcção ao Col du Grand-Saint-Bernard e pondero seguir pela histórica passagem, subir ao local do mosteiro onde os monges criaram a raça há cerca de trezentos anos. Mas é tarde, ameaça escurecer. Opto pelo túnel de quase seis quilómetros inaugurado em 1964. Enquanto o percorro, e por muito ilógico que seja, não consigo evitar a sensação de que, ao evitar o esforço, estou de alguma forma a trair os simpáticos mastodontes helvéticos. A ser um bocadinho o velho do Tchékhov.
Ao escutar o órgão do Duomo de Milão – um dos maiores do mundo, com 250 registos e 15350 tubos.
O órgão (principal, dado existir um mais pequeno) foi alterado várias vezes desde 1397, ano de entrada em actividade da primeira versão. As mais significativas, para além do facto de ter crescido sempre, tiveram a ver com o tipo de transmissão (ligação entre os teclados e a abertura dos tubos): de mecânica para pneumática para, já no século passado, eléctrica. Entre 1760 e 1762, teve como organista Johann Christian Bach, filho mais novo (de um total de onze) do mais famoso Johann Sebastian. E, ainda assim, a história do órgão é bastante menos complicada do que a do próprio Duomo. Quarta maior catedral europeia em termos de área, a seguir à Basílica de São Pedro, em Roma, à Catedral St. Paul, em Londres, e à Catedral de Sevilha, teve a construção iniciada em 1386 e terminada a 6 de Janeiro de 1965 (o que é o século e pouco em que vai a da Sagrada Família, em Barcelona, ao lado disto?). As alterações ao projecto foram constantes e nem sempre ocorreram apenas por capricho dos arcebispos ou dos arquitectos mas também porque a História as tornava recomendáveis – por exemplo, na segunda metade do século XVI, na sequência do Concílio de Trento e da subida de Carlo Borromeo ao posto de Arcebispo de Milão, privilegiou-se um estilo mais românico e menos gótico, uma vez que este tinha passado a ser visto como «estrangeiro» (contudo, no século XVII voltaram a introduzir-se elementos góticos no projecto da fachada). Houve também impulsos à construção vindos de onde talvez não se esperasse: em 1805, Napoleão, prestes a ser coroado rei de Itália (cerimónia que ocorreria no próprio Duomo a 26 de Maio desse ano), ordenou que a fachada fosse terminada, a expensas do tesouro francês. (Diga-se que, após um século de domínio austríaco, o qual se seguira a dois de domínio espanhol, os lombardos até viram com bons olhos a invasão Napoleónica de 1796 mas o entusiasmo desvaneceu-se quando o baixote francês começou a levar tesouros artísticos para Paris*.) O tempo que a construção demorou e todas as alterações que o projecto foi sofrendo tiveram uma consequência, talvez inevitável: se ninguém contesta a imponência do Duomo, muita gente ao longo dos séculos questionou-lhe beleza e coerência arquitectónica. Oscar Wilde terá sido o detractor mais famoso: considerou-o um falhanço monumental, salientando que os pormenores mais atraentes estão a altura excessiva para poderem ser devidamente apreciados. Já Mark Twain, outro autor com queda para as tiradas corrosivas, adorou-o. Eu, que não passo de uma alma simples, sempre disponível para ser maravilhado, concordo mais com Twain. Mas não deixo de perceber o ponto de vista de Wilde. Que, se calhar, nem chegou a ouvir o órgão.
P.S.: Façam os comentários que entenderem mas não esperem que eu responda. :)
Achei melhor fugir antes que me convidassem para o governo. Fiquem bem. Até já.
Fiquei na dúvida se as duas senhoras de sessenta e muitos anos que, numa manhã fresca mas agradável de finais de Maio do ano passado, passeavam com um cão (ou passeavam o cão?) pelas ruas de Wengen, na Suiça, eram inglesas (pelas feições e sotaque, pareciam) e também se eram lésbicas (esses pormenores tendem a passar-me ao lado mas houve quem achasse que sim). Em resposta à minha pergunta, uma delas voltou-se e apontou-me na encosta a zona de meta das provas de esqui alpino.
(Fossem ou não inglesas lésbicas, é uma imagem curiosamente aconchegante, a de duas estrangeiras sexagenárias, suavemente apaixonadas uma pela outra, vivendo mais ou menos exiladas numa fria mas pitoresca povoação situada nas montanhas da Suiça Central. Acho eu. Enfim, avancemos.)
Muitos apreciadores de futebol não considerariam completa uma primeira deslocação a Madrid se não pudessem visitar o Santiago Bernabéu. Da mesma forma, fãs de desporto automóvel não se sentiriam bem dispensando, quando em viagem pela zona Oeste da Alemanha, uma visita ao Nürburgring Nordschleife. Encontrando-me em Wengen, eu precisava de saber onde era a pista de downhill. E devo confessar que, como quase todos os indivíduos nascidos e criados junto ao sopé da Serra da Estrela, nem sequer faço esqui (é entretenimento de fim-de-semana para lisboetas e portuenses).
Mas na verdade estou a escrever isto por causa da prova. Disputa-se desde 1930 e nem a Segunda Guerra Mundial interrompeu a sua realização (embora quase só esquiadores suíços tenham participado nesses anos). Em 1991 houve uma morte e, ao longo das décadas, muitas pernas e braços partidos. É possível que certos desportos sejam demasiado loucos para mentes sensatas (é facto assente que as mentes sensatas só aguentam uma dose pequenina de loucura antes de entrarem em processo de rejeição). Nesse caso, esqui alpino, e especificamente a disciplina de downhill, só pode estar na lista. (Imaginem-se a colocar a cabeça de fora da janela do carro na auto-estrada; considerem que estão quinze graus negativos; agora substituam o carro por um par de esquis; finalmente esqueçam a auto-estrada e visualizam-se a descer uma encosta com vinte e tal graus de inclinação.) A Lauberhornrennen é um dos expoentes máximos do downhill e, por conseguinte, da loucura. Acontece amanhã de manhã, se o nevoeiro ou a queda de neve não complicarem tudo. Dá no Eurosport.
Ponta Delgada, 2005.
Ponta Delgada, 2010.
Entretanto ele devolveu-me ao hotel. Passaram três horas e faltam outras três para a hora do voo. Até agora, consegui manter-me razoavelmente seco. O vento e a chuva têm diminuído de intensidade. Com sorte, talvez consiga regressar.
Por aqui, canais de televisão e jornais afirmam que a greve geral foi um fracasso. Intoxicação pura e simples. Houve consequências evidentes – e graves. Ontem à tarde, o funcionário da cafeteria do hotel explicava-me, contrito, que não havia casadiellas asturianas porque a pastelaria que as fornece estava em greve.
Mas talvez a fantasia fosse de um Manuel Jorge Marmelo mais novo (afinal, ele escreve: Um dia, quando eu fosse grande) ainda crente na possibilidade de se evadir para dentro da cabeça sem lá encontrar paisagens assustadoras nem cair na condição designada pelo tal termo médico. Também há uma palavra para isto: ingenuidade. Todos passámos por lá.
É suficiente para provar que agora sou mesmo eu, ao vivo (kind of), e a cores? (Se não vir cores, por favor regule o seu monitor). Ou deverei referir algo que só eu – e não aquela criatura atormentada e ridícula que aqui ficou – possa saber? Estive na Suiça. (Desiludiu-me que ninguém tivesse apanhado a pista alpina das vacas roxas – sou demasiado subtil, é o que é.) Entre outras coisas que talvez um dia vos conte, gastei uma fortuna para trepar por dentro do Eiger num comboio de cremalheira até Jungfraujoch, apenas para ver neve a cair contra um belíssimo fundo de nevoeiro cerrado (mas a temperatura eram uns amenos 2,2 ºC negativos). Apesar de ter andado mais de carro, consegui perceber que os suíços têm uma excelente rede ferroviária, com linhas malucas – mas presumo que rentáveis – dando acesso aos sítios mais estranhos. E menciono os comboios porque assisti ontem à noite, quase contrariado, ao noticiário televisivo da TV portuguesa, onde vi Sócrates tentando impingir aos marroquinos tecnologia do TGV que ainda não temos. Percebi então que, mesmo não entendendo uma palavra de alemão (bom, não é inteiramente verdade: sei o que significa Bayerische Motoren Werke), os noticiários em Zurique faziam muito mais sentido do que os que se vêem por cá.
Sim, é quase Verão.
De resto, as águas permanecem límpidas, a subida do Forte de S. João Baptista até ao farol, exigente, e o próprio Forte continua a parecer-me digno de um filme de piratas.
Os espanhóis de Puebla de Sanabria, povoação muito merecedora de uma visita situada mesmo junto ao cantinho superior direito de Portugal (perto de Rio de Onor e do Parque Natural de Montesinho), chamaram "Rua" à rua principal que sai da inevitável e florida Plaza Mayor. Ou seja, calle Rua (ou talvez calle de la Rua). Acho simpático. Pergunto-me se teremos em Portugal alguma rua da Calle.
Fico sempre com a sensação de que o ritmo nas auto-estradas espanholas é pelo menos 10 km/h mais lento que nas portuguesas. Nós abrandamos ao entrar em Espanha; os espanhóis aceleram quando entram em Portugal.
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