1. Há o processo criminal. Esse fica para a Justiça.
2. Há o conluio entre o Estado e grupos privados, quase inevitável num país em que os políticos fazem questão de garantir que o primeiro é indispensável para tudo. As tímidas tentativas de Passos Coelho (que não do PSD) para mudar a situação estão hoje anuladas. Tal como o próprio Passos.
3. Há a cegueira dos compagnons de route, entretanto de regresso ao poder. Ou - acreditando eu não estarmos perante almas ingénuas - os interesses próprios que os levaram a fechar os olhos a todos os indícios. Os mesmos interesses, de resto, que se sobrepuseram aos do país após as eleições de 2015 e levaram à constituição da Geringonça.
4. Há os tiques intervencionistas e autoritários, que António Costa, Augusto Santos Silva, Carlos César, Eduardo Ferro Rodrigues, João Galamba et al - de Catarina Martins, das manas Mortágua ou de Jerónimo de Sousa outra coisa não seria de esperar - mantêm vivos e nem tentam esconder.
Pouco importa; a acreditar nas sondagens, os portugueses apreciam gente oportunista e autoritária. Têm-na tido - e continuarão a tê-la - em abundância. Considerando os resultados de Narciso Miranda, Valentim Loureiro e Isaltino Morais nas últimas eleições autárquicas (16,2%, 19,9% e 41,7%, respectivamente), e a insignificância comparativa dos desvios em que estiveram ou poderão ter estado envolvidos, arrisco-me a extrapolar que o próprio Sócrates ainda poderá ser eleito Presidente da República. Em 2026, talvez. Ou, no máximo, em 2031.
José Sócrates foi o pior primeiro-ministro da terceira república e um dos três políticos portugueses mais importantes das últimas três décadas e meia (estou a recuar apenas até à morte de Sá Carneiro mas provavelmente poderia ir até 1974). Conseguiu-o unindo as piores características dos outros dois: Cavaco Silva e Mário Soares.
Como tem sido abundantemente referido, Cavaco lançou o modelo económico baseado em investimento público em infra-estruturas, desinteresse pelo sector de bens transaccionáveis, sistema de ensino mais baseado na massificação do acesso do que na qualidade, sector público cada vez maior e mais difícil de controlar. Mas Cavaco ainda pode apresentar uma desculpa: em 1985, quando chegou ao poder, Portugal era muito diferente. Justificava-se algum investimento em obras públicas, para mais quando estavam disponíveis fundos comunitários para o efeito (poucos se lembrarão mas não existia sequer uma auto-estrada completa entre Lisboa e Porto). Justificava-se claramente a reforma do sistema fiscal (uma alteração que queda esquecida, nesta época em que não convém dizer bem de Cavaco). Justificava-se a tentativa de abrir o sistema de ensino ao maior número de alunos possível, após décadas de salazarismo, ainda que fazê-lo demasiado depressa acarretasse riscos – comprovados – de quebra na qualidade. Apesar de ter sido feita por motivos eleitoralistas, justificava-se em parte a reforma do sistema retributivo da Função Pública, muito mal paga durante o salazarismo (e, sim, um país evoluído necessita de uma boa Função Pública, o que implica salários convenientes). O grande problema dos governos de Cavaco (em especial dos maioritários, em especial do segundo) foi o descontrolo em que se entrou – e (um ponto indesculpável) o desprezo a que foi votado o sector de bens transaccionáveis, com o desmantelamento forçado (começo a soar como o PC mas, de longe a longe, serve como purgante) da capacidade instalada em vários sectores, entre os quais a agricultura (hoje em crescimento). Mas, se Cavaco lançou o modelo, ninguém depois dele foi capaz de o ir corrigindo à medida das necessidades. O sector público, pejado de corporações, tornou-se demasiado forte; os empresários do regime, muitos dos quais ligados à construção civil e à banca, manobraram para que os dinheiros públicos continuassem a fluir na sua direcção; a baixa de juros conseguida com a introdução do euro iludiu toda a gente, gerando níveis insustentáveis de endividamento, potenciados durante longo tempo pelo Estado através de bonificações ao crédito e benesses em sede de impostos sobre os rendimentos. Quando Durão Barroso afirmou que o país estava «de tanga» e urgia tomar medidas desagradáveis, todos lhe caíram em cima – da comunicação social a Jorge Sampaio, passando por um Partido Socialista que saíra do poder com referências ao «pântano» mas as esqueceu de imediato para tombar no populismo e na demagogia habituais. E depois veio Sócrates. E foi então que o modelo a que Cavaco entretanto descobrira as falhas atingiu o esplendor máximo, em particular após a crise financeira internacional abrir portas à versão de que era urgente estimular a economia, devendo o controlo do défice ser preocupação para mais tarde (foi-o e todos sabemos com que consequências).
A influência de Mário Soares no período Sócrates é mais subtil mas ainda mais perniciosa. Soares, que sempre se moveu numa esfera de inimputabilidade, representa uma maneira de ser (talvez mais do que «agir») bastante disseminada na sociedade portuguesa, assente em grupos de amizade e troca de favores. Mais do que o socialismo, a ideologia de Mário Soares é o bem-estar pessoal e dos seus próximos. Daí não ter tido quaisquer problemas em, enquanto primeiro-ministro, implementar medidas do FMI similares às que nos últimos anos criticou. Daí nunca ter mostrado reticências em dar preferência a pessoas e organizações fora do quadrante ideológico a que presumivelmente pertence – pense-se em Savimbi e na UNITA. Soares move-se num mundo onde os que estão do lado dele são intrinsecamente bons e não merecem sujeitar-se às minudências das regras – ou mesmo (veja-se Craxi ou as declarações actuais sobre a detenção de Sócrates) das leis. Move-se também num mundo cosmopolita, de ideias e frases (feitas) grandiosas. É um bon vivant. Embora consiga mostrar-se à vontade entre o «povo» (num registo apenas ocasionalmente manchado por uma certa condescendência), aprecia dar-se com pessoas importantes e faz questão de que se saiba que o faz (mon ami Mitterrand). Muitos já o afirmaram: mais do que as diferenças políticas (durante muito tempo, tão ligeiras quanto as diferenças entre o estilo de governação tradicional dos governos do PS e do PSD), foi esta faceta que o afastou de Cavaco. Para Soares, Cavaco era – e é – plebeu, inculto, grosseiro (relembre-se a famosa fatia de bolo-rei). Nada como Soares, como os seus amigos socialistas ou mesmo como os líderes anteriores do PSD. E, no entanto, carregado com todos estes defeitos, vindo de fora do sistema (Cavaco afirma frequentemente não ser um político, o que é quase verdade quando o seu percurso é comparado ao de Soares), Cavaco retirou Soares e os seus do poder, conseguindo a então quase mítica maioria absoluta. Imperdoável. Anos mais tarde, para tentar impedir Cavaco de chegar a Belém, Soares incompatibilizar-se-ia mesmo com um velho amigo, Manuel Alegre, sofrendo a sua mais estrondosa derrota política (como deve ter doído a um homem que cruzou armas com – e venceu, apesar de pelo menos num dos casos tal ter sucedido por falta de comparência – políticos da estirpe de Álvaro Cunhal e Sá Carneiro). Hoje, quando a idade já não lhe permite alinhavar as ideias de forma a criar uma versão inteiramente coerente e pessoalmente vantajosa de acontecimentos que lhe desagradam (algo em que Sócrates é mestre), alguns acusam Soares de senilidade. Não nos conceitos por trás do discurso. Os conceitos são os de sempre: ele e aqueles que lhe agradam são impolutos e, acima de tudo, intocáveis.
José Sócrates constitui a pior amálgama possível das características dos dois – e, por conseguinte, o pináculo dos piores defeitos nacionais. De Cavaco, herdou a tendência autoritária (que, no fundo, embora em registo soft, Soares também possui), levando-a muito para além do que deveria ser politicamente (e talvez criminalmente) aceitável. Em ambos, vislumbra-se a sombra de um Salazar que ainda há não muitos anos foi eleito o maior português do século XX. Terem sido os únicos a conseguir maiorias absolutas para os seus partidos é sinal revelador da necessidade de pastoreio que os portugueses continuam a sentir. Sócrates herdou também de Cavaco a tendência para meter o Estado em todos os recantos da actividade económica e não vale a pena pretender que, num caso como no outro, isso não originou corrupção. Mas Cavaco tinha – ou parecia ter – mais um ponto em comum com Salazar: a frugalidade. Esta é uma característica que Sócrates, crescido no país novo-rico que as políticas de Cavaco originaram, claramente dispensa. Pelo contrário: como Soares, Sócrates quer viver da forma a que julga ter direito. Quer dar-se com pessoas importantes (à falta de Mitterrand, arranjam-se Chávez e Kadhafi), vestir e comer bem, ser olhado com admiração (uma diferença substancial em relação a Soares – e Cavaco: confunde admiração com temor ou, pior, até gosta de ser temido). Quer decidir, conceder favores, controlar tudo. São estes factores, e não convicções ideológicas, que o levam a aumentar o papel do Estado na Economia (um Estado grande faz com que Sócrates seja mais necessário, mais bajulado – em suma, mais poderoso) e também às manobras para controlar a comunicação social. Está no centro de um grupo de «amigos» (talvez sem aspas, não sei) que surgem em inúmeros negócios com o Estado ou controlam neste posições-chave. Atira meia dúzia de ossos à esquerda (as «causas fracturantes») e mantém um discurso de defesa do Estado Social enquanto gere o interesse público com os amigos e em função deles. (Cavaco também teve um círculo de amigos de carácter duvidoso mas nunca pareceu privilegiá-los, pelo menos durante o tempo em que exerceu funções públicas – a dada altura, até parecia farto deles.) Apanhado na teia de vários escândalos, escapa às questões da Justiça, onde alguns dos referidos amigos ocupam posição de poder, e responde às da comunicação social com a assinalável capacidade para, independentemente do teor das perguntas, repetir ad nauseum e em tom ultrajado meia dúzia de frases feitas. Estávamos nos tempos em que a comunicação social já era abjecta (enfim, alguma comunicação social, que outra, por convicção, interesse ou medo, continuava a apoiá-lo) mas em que a Justiça, dispensando-o das explicações (até poderia estar inocente mas a acumulação de indícios era excessiva para tamanha indiferença), decidia bem. Hoje, que lhas pediu, a Justiça é um antro de conspiradores. Dizem-no os seus amigos. Di-lo o seu mais dilecto pai espiritual, Mário Soares. Estão todos certos. Gente superior não merece tal tratamento. Merece passar por entre as gotas da chuva - e ser aplaudida, em vez de questionada, por tão fabulosa capacidade.
Não deixa de ser curioso reparar na prudência com que a esquerda à esquerda do PS comenta a detenção de Sócrates. Seria certamente diferente se estivéssemos perante um ex-ministro do PSD ou do CDS. E nem mencionemos aqueles humanos para quem o ónus da prova parece inverter-se: empresários de forma geral, banqueiros em particular.
Audiência da RTP nas noites de domingo deve aumentar.
Introdução. Estando-se quase no rescaldo da campanha, este post pode vir um bocadinho fora de tempo mas não resisto à oportunidade de fingir por uns minutos que sou economista (não sei porquê, em criança optei sempre por imaginar-me outras coisas). Há por aí opiniões segundo as quais, sendo privada a maioria da dívida externa nacional, mais do que o governo deveriam ser responsabilizados pela situação a que chegámos indivíduos e empresas. É pena que, sendo a premissa verdadeira, a conclusão não o seja, uma vez que tal significaria pelo menos que o papel do Estado era menos fulcral na tomada de decisões de qualquer entidade neste país. Quatro passes e um remate:
1. Ainda que a dívida privada seja realmente superior à pública, foi o crescimento exponencial desta nos últimos anos a criar os actuais problemas de financiamento e a obrigar-nos a fazer o pedido de resgate. Se os bancos tiveram dificuldades não ligadas à acção do Estado (enfim, pelo menos directamente) na sequência da crise financeira de 2008, os problemas actuais têm tudo a ver com a crise da dívida pública.
4. Por fim, quanto ao nível de endividamento de famílias e indivíduos, já se discutiu bastante como a inacção do governo ao nível da lei do arrendamento (é irónico lembrar que, naqueles quatro meses caóticos do final de 2004, o governo de Santana Lopes tinha pronto um projecto de lei de arrendamento que talvez tivesse ajudado a estimular o mercado) e a concessão de benefícios fiscais no crédito imobiliário (usados pelos promotores para subirem preços) levaram muita gente a comprar casa em vez de a arrendar. Um pormenor de delicioso humor negro é verificar como, em 2008, Portugal estava em quarto lugar na lista de países europeus com mais elevada percentagem de proprietários: cerca de 75% dos agregados familiares possuía casa própria. Onde está o humor negro? Aqui: à nossa frente, com ainda mais elevadas percentagens, estavam a Irlanda, a Itália e a Espanha; imediatamente atrás de nós, a Grécia. Pode ser apenas coincidência, é claro. (Dados da European Mortgage Federation, retirados do livro do professor Santos Pereira.) E nada impedia o governo (em teoria, vá) de ter aumentado os impostos que incidem sobre a compra de casa (afinal, aumentou os que incidem sobre tudo o resto). Mas suponho que ninguém se lembrou.
Conclusão. Independentemente de acharmos que as privatizações eram inevitáveis (eram, e também geraram efeitos positivos ao aumentar a eficiência das empresas), de que a aposta nas energias renováveis terá retorno no longo prazo (esperemos que sim) ou de que é melhor viver em casa própria do que em casa arrendada (talvez mas, para além da questão do endividamento, isso aumenta a rigidez do mercado laboral, ao prender as pessoas a um sítio), um governo – qualquer governo – deveria ter como uma das suas principais preocupações a análise dos factores de risco da economia a médio e longo prazo. É em grande medida para isso que ele existe. Para, directamente ou através da criação de entidades reguladoras eficazes, contrabalançar os interesses de curto prazo que tendem a dominar indivíduos e empresas privadas. Os nossos governos (não apenas os de Sócrates mas especialmente os de Sócrates – em 2002, Durão Barroso, num esforço para implementar algumas tímidas mudanças, falou num «país de tanga» e foi crucificado, tendo-se aliás constatado, sete anos mais tarde, que quase quarenta por cento dos portugueses continuava a recusar-se a acreditar nele) não só não o fizeram como andaram a dar exactamente os estímulos errados. Sabemos, porque ele no-lo tem dito uma e outra vez, que Sócrates fez o seu melhor. É possível. Teria então... bah, acrescentem vocês a punch line. É tão óbvia.
A prova de que já ninguém tem ilusões sobre Sócrates pode constatar-se pelo modo como o termo «inverdade» desapareceu do léxico político nas últimas semanas, substituído pelo velhinho e muito mais claro «mentira». É certo que «inverdade» era mais usado pelos próprios socialistas, sublimes utilizadores do ataque-que-nunca-é-pessoal-nem-excessivo. Seja como for, das ruas ao comentário televisivo, já ninguém se dá ao trabalho de evitar dizer que Sócrates mente. O que, na minha opinião, é saudável, para além de exacto. Ou melhor: é saudável porque exacto. Recolocar um mentiroso compulsivo no lugar de Primeiro-Ministro é que seria pouco saudável.
Há um óptimo motivo para que os bancos portugueses não tenham cometido os exageros que os bancos americanos, islandeses e irlandeses cometeram – através das obras públicas, das PPP e de algumas opções «de futuro» (a política energética e os investimentos a ela associados, por exemplo), o nosso governo garantiu-lhes sempre uma excelente rentabilidade. Chato é pensar que se o Estado tiver mesmo de reestruturar a dívida pública, deixando de pagar vinte ou trinta ou cinquenta por cento desta (ou pagando-os muito mais tarde), os bancos nacionais, atulhados dela, entrarão em colapso na mesma. O que significa que afinal talvez tenham cometidos exageros tão maus como os dos bancos americanos, irlandeses e islandeses. Bolas. E esqueçam também o título.
Incomodam-nos imenso as críticas vindas de fora. É como se os nossos defeitos apenas se tornassem graves quando um estrangeiro os aponta (ia escrever «visíveis» em vez de «graves» mas nós conseguimos vê-los, recusamos é admitir a sua gravidade e, mais ainda, fazer algo para os corrigir). Incomodam-nos imenso as tiradas de Angela Merkel, por exemplo. Assustam-nos, também, porque sentimos estar nas mãos dela e de outros que pensam como ela; gente fria, sem a nossa tendência para adiar a aplicação de medidas difíceis. Acusamo-los então de demagogia, de não nos conhecerem, de terem visões erradas de como somos e dos esforços que já fazemos. Esquecemos (ou fingimos esquecer) que, em grande medida, esses esforços resultam de más políticas nossas, de conluio entre o nosso governo e meia dúzia de grupos económicos (o caso que Luís M. Jorge refere aqui é apenas o último de uma longa série), da nossa incapacidade para fazer contas e interpretar correctamente os resultados obtidos. Esquecemos também que, independentemente do que vier a acontecer, há mudanças que temos de implementar, com Merkel ou, mais ainda, sem ela. E esquecemos que, sendo certo que na semana passada, por exemplo, Merkel exagerou, ao sugerir que se cortassem dias de férias e subisse a idade da reforma em Portugal, retórica para eleitor ouvir não é exclusivo dela nem dos alemães. Afinal, temos por aí um candidato a Primeiro-Ministro, homem sobejamente conhecido por falhar objectivos, líder de um dos partidos mais bem colocados para ganhar as eleições, declarando não ter de fazer exactamente o que se comprometeu a fazer, mesmo quando o seu ainda Ministro das Finanças e «amigo para sempre» diz o contrário. Algo que deve tranquilizar imenso a Sra. Merkel, os restantes alemães e todos os outros que desconfiam de nós. Seria bom que ao menos nos lembrássemos de que as notícias viajam em ambos os sentidos.
Quando ouço Sócrates acusar a oposição de ter provocado a crise, penso em Santana Lopes. (O que é chato porque em quase todas as circunstâncias prefiro pensar em pessoas com níveis mais elevados de estrogénio.) Se Santana se queixava dos companheiros de partido darem pontapés na incubadora onde o seu jovem governo lutava pela sobrevivência, Sócrates não faz mais do que acusar, vociferante, direita e esquerda de terem desligado a máquina que mantinha a respirar o seu velho governo exangue. Mas Santana obteve 28,7% dos votos em 2005. Ganhe ou perca, Sócrates deve conseguir mais. Parece que preferimos berros a lamúrias.
É precisamente sobre isso que converso um dia com A., um velho inglês que vive aqui há muitos anos: a força da Europa e da sua cultura reside, ao contrário do que acontece com outras culturas, na capacidade crítica, sobretudo de autocrítica. Na sua capacidade de analisar e pensar, numa busca e numa insatisfação constantes. O espírito europeu reconhece as suas limitações, aceita a sua imperfeição, é céptico, duvida, põe tudo em causa. Há outras culturas às quais falta este espírito crítico. Mais ainda – têm tendência para a superioridade, para considerarem que tudo o que as distingue é perfeito; por outras palavras, não conseguem ser autocríticas. Estão constantemente a responsabilizar outras pessoas e outras forças (maldições, diversas formas de domínio estrangeiro) pelas desgraças. Os representantes destas culturas vêem na crítica uma ofensa pessoal, uma tentativa consciente de os humilhar, uma forma de os maltratar. Se lhes disser que a sua cidade está suja, é como se lhes dissesse que eles próprios estão sujos, ou têm as orelhas mal lavadas, o pescoço e as unhas carregadas de sujidade. Em vez de estarem disponíveis para a crítica, arrastam atrás de si todo o tipo de traumas, complexos, sentimentos de ódio, indignação, insatisfação e manias. Isto leva a que cultural e estruturalmente eles não sejam capazes de desbravar o terreno do progresso, e sejam incapazes também de ter em si vontade para a mudança e o desenvolvimento.
Será que as culturas africanas (em África, há tantas como religiões) pertencem a estas culturas inatingíveis e sem poder de crítica? Africanos como Sadig Rashid começaram a reflectir sobre isso, pois querem encontrar uma resposta para a pergunta: por que razão é que África está a ficar para trás na grande corrida dos continentes?
Ryszard Kapuscinski, Ébano – Febre Africana.
Edição Campo das Letras (2001), tradução de Maria Joana Guimarães.
A pergunta aplica-se a outras zonas do mundo, não apenas a África. Em grande medida, aplica-se a Portugal. E a possível explicação também. Kapuscinski, um dos maiores repórteres de sempre, talvez exagerasse ao considerar a capacidade de autocrítica europeia assim tão elevada. Ou, pelo menos, talvez se referisse a uma Europa um pouco diferente da actual, uma Europa próspera e optimista, onde as razões para medos e nacionalismos estavam historicamente baixas. Seja como for, se, ao pensar em «Europa», Kapuscinski incluía Portugal, então enganava-se redondamente. Sempre encaixámos mal as críticas e raramente fazemos autocrítica (dizer que as coisas estão mal, como se fosse apenas culpa alheia, não é autocrítica). Talvez a nossa ligação a África (se aceitarmos – e poucas pessoas sabiam tanto sobre África como Kapuscinski – que os africanos também são assim) tenha algo a ver com o assunto. Ou talvez nos seja inato. Seja como for, nos últimos anos esta característica agravou-se. Viu-se reforçada por um Primeiro-Ministro que encara as críticas como ofensas pessoais (ainda por cima, julgando-se um líder insuperável, toma-as como ataques ao país) e é totalmente incapaz de admitir erros. Perante o aplauso de muitos, que lhe elogiaram e ainda elogiam as tácticas, Sócrates reforçou a nossa incapacidade para a autocrítica, a ideia que temos de que reconhecer enganos é sinal de fraqueza. Ao fazê-lo, tornou-nos menos evoluídos, menos disponíveis para aprender e melhorar. Esperemos que não o suficiente para estarmos já incapazes de o perceber.
Dois amigos encontram-se. Um deles exclama: «Ei, ouvi dizer que tinhas morrido!» O outro solta uma gargalhada. «Não, como vês estou bem vivo.» «Impossível. O tipo que me contou é muito mais fidedigno do que tu.»
Tchan-tchan. Obrigado, vocês são o melhor público do mundo. O homem era mesmo estúpido, hã? Mas vamos à parte sem graça. Obviamente, esta anedota não foi inventada em Portugal. O primeiro tipo (o que não acredita nem nas palavras do outro nem nos próprios olhos) nunca poderia ser português – nós só somos assim brutalmente honestos com inimigos declarados ou pessoas com quem contraímos matrimónio há mais de cinco anos (er, não, agora não vou desenvolver este ponto). Todavia, há algo em que bastantes portugueses são iguaizinhos a ele e basta analisar as sondagens para o constatar. Por cá, trinta e tal por cento das pessoas (ou para aí metade desse valor depois de retirar militância e clientelas) também recusam a realidade que têm à frente dos olhos. Com a subtil agravante de que parecem continuar a acreditar (ou, no mínimo, a querer acreditar) num dos homens menos fidedignos que já nasceram neste país. E todos os trinta e tal por cento menos um (o próprio; ou talvez menos dois – convém não esquecer Silva Pereira) sabem que assim é.
«Show me the PROGRAM!»
Já agora, Sr. Primeiro-Ministro: «You can't handle the truth.»
A naturalidade com que, de forma inteiramente justificada, se acusa hoje um Primeiro-Ministro de mentir diz imenso sobre o Primeiro-Ministro em questão (de tal modo que há muito deixou de valer a pena ouvir o que ele diz) mas também sobre o estado do país. Os malefícios desse Primeiro-Ministro – Sócrates, José Sócrates – vão muito para além das áreas da política e da economia. Com inestimável ajuda dos seus apaniguados, ele reforçou (em alguns casos, talvez tenha mesmo feito renascer) todos aqueles defeitos que sempre tantos apontaram aos portugueses: a chico-espertice, o facciosismo acéfalo, a incapacidade para distinguir o essencial do acessório e cumprir objectivos, a recusa em assumir responsabilidades, a fuga às regras sempre que elas não convêm e as queixas estridentes quando são os outros a fazê-lo, a propensão para distorcer os dados, como se dessa forma se conseguisse alterar a realidade, o encanto parolo com a «modernidade», os sonhos megalómanos que tentam compensar um mal disfarçado complexo de inferioridade, a singeleza com que se encara o favorecimento de «amigos», a tendência para o autoritarismo e para o desprezo pelo outro, expresso abertamente apenas quando este tem menos poder. A bem dizer, Sócrates tornou-os oficiais.
Ó meus filhos: por que insistis em andar por aí em blogues, caixas de comentários de jornais online, áreas de cafézinho das mais variadas empresas, táxis e tascas típicas a comparar as medidas do plano de resgate (sejam elas exactamente quais forem) com as do PEC IV? O PEC IV garantia-nos o empréstimo de 78 mil milhões de euros? Não? Bem me parecia. Ide então em paz e evitai as conclusões apressadas (e os montículos de bosta de cão espalhados pelos passeios que, quando pisados, são causa de muita obscenidade verbal).
«Se ganharmos, prometo-vos, da forma difusa que tão bem me serviu no passado, que faremos exactamente o mesmo que temos feito, com resultados ainda melhores.»
«Se eles ganharem, garanto-vos que farão mudanças, com resultados catastróficos.»
De repente, surgida do nada, tive a visão de um ménage à trois entre Sócrates, Passos Coelho e Angela Merkel. Entrei em pânico, murmurei «The horror! The horror!» e nem consegui perceber quem fazia o quê a quem.
o FMI justifica os meios.
Sócrates tem razões para andar nervoso. Com a imagem que está a deixar nos líderes europeus, pode-lhe ser difícil obter um cargo internacional de relevo depois de sair do governo.
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