Saio dos melhores livros de Virginia Woolf com uma sensação de plenitude. Não recordo uma história, mas sei que o livro fez sentido. Cada frase, cada parágrafo, contribuiu para uma imagem global – e, neste caso, o termo «imagem» não é aleatório – que nenhuma sinopse tem o poder de encapsular. As melhores páginas de Virginia Woolf têm a lógica de uma melodia ou - cá vamos novamente - de uma pintura. Isto não acontece por acaso: Woolf deixou apontamentos que mostram a intencionalidade do efeito. Em The Waves (um livro difícil), a estrutura esforça-se por replicar os padrões do pensamento humano. Em Mrs. Dalloway e, acima de tudo, em To the Lighthouse (Rumo ao Farol), a intenção é mesmo replicar o efeito de uma pintura, na qual os detalhes podem revelar génio bastante para que se pare a analisá-los, mas onde acima de tudo interessa a sensação geral, frequentemente obtida aumentando a distância em relação à tela, num efeito similar a tantos acontecimentos na vida humana. A intenção é tão explícita que Lucie Briscoe, uma das personagens, vai realmente pintando um quadro enquanto observa o que se passa. No parágrafo final, termina-o. Encontrou uma imagem que, podendo não ter interesse nem fazer sentido para qualquer outra pessoa (ou até mesmo para ela, noutro instante), podendo transmitir uma mensagem difícil de aceitar (a da inutilidade da vida, por exemplo), fecha algo; permite um momento de compreensão. E não apenas todos os bons finais são momentos de compreensão como momentos de compreensão são tudo o que se pode desejar de uma pintura, de um livro, da vida.
Quickly, as if she were recalled by something over there, she turned to her canvas. There it was - her picture. Yes, with all its greens and blues, its lines running up and across, its attempt at something. It would be hung in the attics, she thought; it would be destroyed. But what did that matter?, she asked herself, taking up her brush again. She looked at the steps; they were empty; she looked at her canvas; it was blurred. With a sudden intensity, as if she saw clear for a second, she draw a line there, in the centre. It was done; it was finished. Yes, she thought, laying down her brush in extreme fatigue, I have had my vision.
(Lamento, mas não tenho uma versão em português.)
1. A vantagem de jogar em casa
Por fim, ensina-me a construir gaiolas para os coelhos e dá-me conselhos e indicações sobre a comida, como tratar as doenças e essas coisas. E fala-me um pouco da cobrição:
– Tens de meter a fêmea onde está o macho, e nunca o contrário. Nunca o macho onde está a fêmea.
– E por que razão? – pergunto.
– Porque aí o macho encontrará duas novidades com que se entreter, uma fêmea e um território novo. É demasiado. Ficará confuso, e isso não é nada bom nestas situações, pois, ao fim e ao cabo, é ele quem tem de tomar a iniciativa – diz o Der Warming, dando-me uma cotovelada cúmplice. – E se não acontecer nada passados dois minutos – continua -, separa-os, porque isso quer dizer que não é o momento adequado do ciclo da coelha e podem pegar-se. Na pior das hipóteses, ela pode arrancar-lhe as bolas num instante.
– A fêmea onde está o macho – repito.
– Isso mesmo; se ele jogar em casa, correrá tudo bem.
– Mas então será a fêmea que ficará confusa – digo.
– Não importa; isso até pode ser uma vantagem – diz.
2. Os golos metidos fora valem mais
Quando chego a casa, mostro-lhes os coelhos e, antes que eu tenha tempo de reagir, o pai junta o macho a uma das fêmeas.
– A fêmea onde está o macho – protesto – disse o Der Warming. O macho tem de jogar em casa.
– Que parvoíce – diz. – Isso não quer dizer nada se ele for um verdadeiro macho.
3. Saltando os preliminares e indo directamente aos penáltis
E é um verdadeiro macho. Salta logo para cima da coelha, agarra-se bem ao seu pescoço com os dentes e monta-a – aprendi que se diz assim –, para, em seguida, lançar um grunhido e cair de lado.
4. O nível adequado de celebração (sim, sou sportinguista)
Ela, no entanto, não parece muito afectada e continua a comer.
Edição Cavalo de Ferro (2016), tradução de João Reis.
Adenda: Citada na badana do livro, a opinião da crítica Lisa Garsdal, no jornal dinamarquês Politiken, acerta em cheio no alvo: Não há absolutamente nada para rir no original thriller caseiro de Erling Jepsen; simplesmente, não se consegue evitar.
Na verdade, contando com sábados e domingos, foram nove dias. E até consegui sair de casa na maioria deles.
(«Outra» porque em Dezembro dá-me dá-me frequentemente para estas coisas.)
(Leitores simultaneamente muito curiosos, desocupados e míopes podem clicar nas imagens para aceder ao Sapo Fotos, onde têm a opção de vê-las em tamanho maior.)
(Devia alinhavar umas palavras sobre algumas das obras. Mas antes preciso de descobrir se António Costa ainda é primeiro-ministro e, em caso afirmativo, se Arménio Carlos já ascendeu a ministro do Trabalho. Dependendo da resposta, posso decidir fechar-me em casa mais uma semana a ver filmes do Harold Lloyd e do Buster Keaton.)
O que é que nos fazia pensar que, se alguém não nos consegue amar, é porque está magoado, deficiente, com algum tipo de disfunção? E nos casos em que nos substituem por um deus, ou uma virgem em pranto, ou o rosto de Cristo num pano sagrado - aí tratamo-los por doidos. Iludidos. Regressivos. Estamos tão convencidos da nossa própria bondade, e da bondade do nosso amor, que não suportamos acreditar que haja algo que seja mais digno de amor do que nós, mais digno de devoção. Os cartões de felicitações dizem muitas vezes que toda a gente merece amor. Não. Toda a gente merece água limpa. Nem toda a gente merece amor a toda a hora.
Zadie Smith, Dentes Brancos. Edição D. Quixote (2002), tradução de Manuel Cintra.
Pois não. Mas dói, aceitá-lo. E recusar fazê-lo talvez constitua parte do que nos faz humanos. Como, de resto, desejar amar.
Feira do Livro do Porto, 2015.
(Ainda pensei que fosse uma piada inteligente da organização da Feira mas a editora existe.)
Os noruegueses eram idolatrados. Mais do que ele realmente queria ser, porque eram idolatrados não pelo seu valor enquanto indivíduos mas pela sua desejada nacionalidade.
Dag Solstad, Novel 11, Book 18. Tradução minha partir da versão inglesa de Sverre Lyngstad.
O narrador do livro refere-se à sensação que encontrou na Lituânia mas julgo que ela pode ser estendida a vários outros países. Sendo que, em pelo menos um deles, quando se debate o assunto é obrigatório esconjurar a ameaça de depressão com um comentário imediato sobre as vantagens do Sol e das temperaturas amenas.
Não sei quantos anos após a praga começar a alastrar, possuo finalmente um livro editado segundo o Acordo Ortográfico. Ofereceram-mo e não tive coragem para o recusar nem, depois, para o deitar fora. Coloquei-o num cantinho da estante, junto a outros. Inicialmente senti receio de que eles o ostracizassem mas agora estou convencido de que nada acontecerá: os livros são tolerantes (mesmo aqueles cujo conteúdo não o é). Procurei agir com normalidade (até o folheei durante uns instantes) mas desconfio que ele percebeu que nunca o lerei.
De certa forma, porém, o teatro avant-garde e as operetas tinham uma coisa em comum para ela, nomeadamente que o conteúdo significava nada, a mascarada tudo.
Dag Solstad, Novel 11, Book 11. Tradução minha a partir da versão inglesa de Sverre Lyngstad.
O novo livro de Michel Houellebecq, Soumission (tradução de «Islão») acabou de chegar às livrarias mas é discutido pela intelligentsia francesa há várias semanas. Nele, com o apoio de PSF e UMP, o candidato de um imaginário partido muçulmano (a Fraternidade Muçulmana) derrota Marine Le Pen na segunda volta das eleições presidenciais de 2022 e começa a implementar um regime patriarcal baseado na religião que (porque as mulheres são empurradas de volta às tarefas domésticas) até faz diminuir a taxa de desemprego. Houellebecq defende a plausibilidade do aparecimento de um partido assim com o facto da maioria dos muçulmanos (já cerca de 10% da população francesa) não se identificarem com os existentes: os valores tradicionais do Islamismo afastam-nos da esquerda enquanto a política económica e de imigração os afastam da direita.
Houellebecq é um polemista formidável, que admite desprezar o Islamismo (despreza um pouco menos o Cristianismo e o Judaísmo apenas porque atribui valor literário à bíblia) mas também é alguém que toca frequentemente em assuntos que mereciam discussão menos entrincheirada do que a permitida pela força castradora do politicamente correcto. No livro anterior, apresentava uma França – e uma Europa – dependente do turismo, museu a céu aberto completamente irrelevante na cena mundial - uma visão que se vem tornando cada vez menos irrealista. Para além de temas habituais na ficção literária (as desilusões associadas ao processo de envelhecimento, por exemplo), é possível encontrar nas suas obras, bem como em algumas das suas entrevistas, uma preocupação (à primeira vista curiosa, em alguém que parece acreditar em tão pouco) com a barbárie a que a progressiva substituição de valores partilhados e intangíveis pela apatia, pelo individualismo e pelo medo de ficar mal visto pode conduzir a sociedade europeia. De resto, é esta perda de valores que justifica outro tema recorrente do francês: o carácter cada vez mais utópico das relações amorosas duradouras, baseadas em monogamia sexual, que tradicionalmente estruturavam a sociedade. Num toque irónico, o cenário apresentado em Soumission, de progressiva conversão ao Islamismo da sociedade francesa (sendo que a conversão - ou, mais propriamente, a resignação – de ateus e agnósticos parece fácil de conseguir porque os movem valores práticos, materiais), resolve essa questão, pelo menos a um nível superficial.
Acima de tudo, é preciso demonstrar que a mesma liberdade individual que terá desempenhado um papel no desvanecimento dos tais valores intangíveis (ninguém é condenado à fogueira por recusar Deus, as mulheres podem ser independentes, etc., etc.) é, em si mesma, suficientemente forte e agregadora. Deixar claro que, com ou sem atentados, fazemos questão de viver normalmente num certo estilo de sociedade. Embora – convém referi-lo – não haja insulto superior a esse.
Nota: Ainda não li Soumission mas apenas vários textos sobre ele.
A fúria é uma estranha forma de vida, mas não mais estranha do que o fado, talvez um fado virado do avesso.
Asbjorn tinha faro, esse era o seu grande talento, eu nunca encontrara alguém com tanta certeza de gosto como ele, mas qual o seu uso, à parte constituir o centro em torno do qual girava a vida estudantil? A essência do faro é julgamento, para julgar tem que se estar de fora, e esse não é o lugar da criatividade.
Karl Ove Knausgaard, Min Kamp 1. Tradução minha, a partir da versão inglesa de Don Bartlett.
Pois não. É o lugar do crítico.
Não, como todos os aspirantes a paladino dos pobres ao longo da história humana, Sugar tem de confrontar-se com uma verdade humilhante: os oprimidos podem desejar ser ouvidos mas se uma voz de uma esfera mais privilegiada falar em seu nome revirarão os olhos e troçarão do sotaque.
Michel Faber, The Crimson Petal and the White. Tradução minha.
O final feliz – através de uma reinicialização do sistema informático de Elysium, toda a gente ganha acesso a cidadania total e serviços de saúde gratuitos num passe indolor – podia ter nascido numa rábula perdida de Cheech e Chong (“Los Ilegais no Espaço”?). Trata-se de um enorme intensificador de auto-estima para aquelas pessoas brancas e ricas que dependem de mão-de-obra imigrante barata – as suas empregadas domésticas e jardineiros e amas – mas querem sentir-se bem consigo mesmas.
Nonsense irritante como este pode explicar por que motivo a classe trabalhadora não usa a expressão “Liberal de Hollywood” como elogio. A sensação quase universal de que Hollywood é um Elysium com melhor segurança e código de vestuário mais relaxado não é apenas um produto da fábrica de propaganda da Fox News – ou do TMZ – mas o resultado de um modo particular de autocongratulação em que a indústria do entretenimento tende a mergulhar.
A minha mulher quer um cão. Já tem uma bebé. A bebé tem quase dois anos. A minha mulher diz que a bebé quer o cão.
Há já muito tempo que a minha mulher quer um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que não podia ser. Mas agora a bebé quer um cão, diz a minha mulher. Talvez seja verdade. A bebé é muito chegada à minha mulher. Vão juntas para toda a parte, agarradas uma à outra com muita força. Pergunto à bebé: – És a filha querida de quem? És a filha querida do papá? – E a bebé responde: – Mamã –, e não se limita a dizer isto uma vez, repete-o vezes sem conta: – Mamã mamã mamã. – Não vejo porque é que hei-de comprar um cão que me vai custar cem dólares só para fazer a vontade ao raio da bebé.
A raça do cão que a bebé quer, diz a minha mulher, é um Cairn terrier. Os cães desta raça, diz a minha mulher, são presbiterianos como ela própria e a bebé. No ano passado, a bebé era baptista, isto é, a minha mulher levava-a duas vezes por semana ao Programa de Apoio às Mães da Primeira Igreja Baptista. Este ano é presbiteriana porque os presbiterianos têm mais baloiços e escorregas e essas coisas. Acho isto uma grande pouca-vergonha, e já o disse. A minha mulher é presbiteriana de gema desde a infância e diz que assim não faz mal; nos seus tempos de criança, ia à Primeira Igreja Presbiteriana de Evansville, no Illinois. Eu não ia à igreja porque era a ovelha negra. Os meus pais tiveram cinco filhos, e os rapazes revezavam-se no papel de ovelha negra, o qual foi ocupado pelo mais velho durante uns tempos enquanto estava na sua fase de bebedeiras ao volante ou outra coisa qualquer, e depois ficou mais cinzento quando arranjou um emprego ou então quando fez a tropa, nem sei ao certo, até que finalmente se converteu numa ovelha branca quando casou e teve um neto. A minha irmã nunca chegou a ser a ovelha negra porque era rapariga.
Ninguém cresce, apenas fica cansado.
Ele era um adulto consciente de que não podia ter tudo, tal como uma mulher alegre e ao mesmo tempo deprimida em seu nome.
Trout, aliás, escrevera um livro acerca de uma árvore de dinheiro. Tinha notas de vinte dólares como folhas. As suas flores eram títulos do tesouro. O seu fruto eram diamantes. Atraía seres humanos que se matavam uns aos outros em torno das suas raízes e davam excelente fertilizante.
Kurt Vonnegut, Slaughterhouse-five. Tradução minha.
pois os pensamentos, sejam quais forem os aspectos positivos que possam enunciar-se a seu respeito, têm uma grande fraqueza, nomeadamente, que dependem de uma certa distância para efeito. Tudo o que se encontra no interior dessa distância está sujeito às emoções.
Karl Ove Knausgaard, Min Kamp 1 (A Death in the Family). Tradução minha a partir da versão inglesa.
(Não faço promessas, que me deixam irritadiço, mas tentarei voltar a Knausgaard num dos próximos dias.)
Demasiado duro? Está bem, acabo com uma nota positiva: para além de ser bastante melhor ler as obras no original (e uma tradução para inglês não é necessariamente pior do que uma tradução para português), a implementação do acordo permitiu-me melhorar a leitura do francês e descobrir que consigo ler espanhol. Pelo que se calhar até devia estar agradecido a quem mo impôs. Obrigadinho. Ou melhor: thanks; merci; gracias.
Adenda
Ela diz que que um chulo vai lá almoçar, e também um traficante de droga, ambos em plena luz do dia. Apontou-mos, com muitos sussurros excitados. O chulo vestia um fato de três peças e parecia um corretor da bolsa. O traficante de droga tinha um bigode cinzento e roupa de ganga, como um sindicalista dos velhos tempos.
Margaret Atwood, O Assassino Cego. Tradução minha.
Quero dizer que ele não a amava? De maneira menhuma. Ele amava-a; de certa forma era-lhe devotado. Mas não conseguia alcançá-la, e sucedia o mesmo do lado dela. Era como se tivessem bebido uma qualquer poção fatal que os manteria afastados para sempre, apesar de viverem na mesma casa, comerem à mesma mesa, dormirem na mesma cama.
Como seria – sentir desejo, ansiar por alguém que está ali mesmo em frente aos olhos, dia após dia? Nunca o saberei.
Margaret Atwood, The Blind Assassin. Tradução minha.
Seria um casamento normal, daqueles que não evoluem para o ódio, apenas para a incapacidade de comunicar, na sequência do desvanecimento dos (ilusórios, de resto) interesses em comum.
É o que ninguém sabe acerca de ti que te permite conheceres-te a ti mesmo.
Don DeLillo, Ponto Ómega.
Edição Sextante, tradução de Paulo Faria.
Yes, that was done then, accomplished; and as with all things done, become solemn.
Virginia Woolf, To The Lighthouse.
Será mesmo com todas as coisas? Não haverá por vezes apenas alívio, até um pouco de desprezo? Uff, acabou, não penso mais nisto. Considerem-se, como exemplo, quase todas as tarefas domésticas ou muitas das associadas a qualquer emprego. E, na maioria dos casos em que a solenidade inegavelmente existe – ao terminar algo para que se fica um instante a olhar com orgulho, até uma pitada de estranheza por se ter conseguido chegar a bom porto –, não será ela efémera, depressa substituída por embaraço? Não, afinal ainda não estava pronto, podia ter feito melhor. No fundo, não deverá a solenidade ser conferida por (e lida nos olhos ou escutada nas palavras de) quem, não tendo feito, avalia o trabalho (e – muito importante – se respeita)? Por outras palavras: durante quanto tempo terá Virginia Woolf olhado para a versão final de To the Lighthouse com a solenidade com que eu ainda olho?
No final de Orgulho e Preconceito, depois de aceitar a proposta de casamento de Mr. Darcy, recusada meses antes com base no quão desagradável e orgulhoso ele era, Elizabeth Bennet diz que, em tais casos, ter boa memória é imperdoável. Certíssimo. Todavia, não é apenas antes do casamento que ter boa memória é imperdoável; é-o muito especialmente depois. Aliás, ter boa memória é quase sempre imperdoável.
Lá em Baixo, como Uma Vizinha
Se eu não fosse eu e me ouvisse lá em baixo, como se fosse uma vizinha, a falar com ele, diria para comigo que me sentia muito feliz por não ser ela, por não dizer as coisas como ela diz, com uma voz como a voz dela e opiniões como as suas opiniões. Mas não posso ouvir-me lá em baixo, como se fosse uma vizinha, não posso ouvir como não devo falar, não posso sentir-me feliz por não ser ela, como sentiria se pudesse ouvi-la. Por outro lado, uma vez que ela sou eu, não lamento estar aqui em cima, onde não posso ouvi-la como se fosse uma vizinha, onde não posso dizer para comigo, como diria se estivesse lá em baixo, como me sinto feliz por não ser ela.
Amigos Maçadores
Só conhecemos quatro pessoas maçadoras. Os nossos outros amigos parecem-nos muito interessantes. Todavia, a maior parte dos amigos que achamos interessantes acham-nos maçadores: o mais interessante é o que nos acha mais maçadores. Desconfiamos dos poucos que adoptam de certo modo uma posição de meio-termo, com os quais partilhamos um interesse recíproco: sentimos que, a qualquer momento, poderão tornar-se demasiado interessantes para nós – ou nós, demasiado interessantes para eles.
Lydia Davis, Contos Completos. Edição Relógio D'Água (em português pré-AO), com tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende.
Duas raparigas de mini-saia sentam-se entre espelhos e sorrisos, de unhas pintadas de cinco cores diferentes, embora iguais nas mãos e nos pés, expostos, como gemas polidas, nas sandálias com um palmo de salto. Encomendam saladas e desembainham os smartphones. Não trocam palavra. Teclam em silêncio, nos seus iPhones, não se sabe o quê. Mensagens, números?
A chegada da comida desperta-lhes sorrisos. Debicam com pauzinhos, mergulham de novo nos telemóveis. Uma delas sabe inglês suficiente para perceber a pergunta – Já leram Mo Yan, que acaba de ganhar o Nobel da Literatura?
“Quem? Yang? Shang? Ichan? Não sei o que é. Um escritor?” O café fica no interior do Centro Comercial KK, que ocupa cinco andares de um edifício de 100, todo em vidro e luzes que acendem e apagam formando as palavras e números de anúncios de empresas e produtos, ao longo dos 442 metros de altura da frontaria.
“Shong? Bem, nós não costumamos ler livros”, explica Liu, aka Jane, falando pelas duas. Ou mais. O café está cheio de jovens com roupas estudadamente modernas e caras, agarrados aos telemóveis ou tablets. “Quando andava a estudar só tinha tempo para ler os livros da escola. Agora que já trabalhamos, usamos os tempos livres para vir ao centro comercial, ou jogar no telemóvel”, continua Jane (na China, os jovens que aprendem inglês adoptam um nome inglês).
Liu (jane) e Song, de 22 e 21 anos, trabalham num SPA. Vieram para Shenzhen há dois anos. Na aldeia-natal de cada uma, nas províncias de Hunan e Hubei, os pais dedicam-se à agricultura. Nos primeiros tempos na grande cidade, as duas raparigas trabalharam numa fábrica. Depois subiram na escala social. Agora têm dinheiro para estar no centro comercial. Um nome. Só um nome de um escritor chinês: “Não sei. Mao Zedong?”
Amy, 25 anos, Relações Públicas numa grande empresa de telemóveis, a Huawei, tem a mesma dificuldade em nomear um escritor. “É mais fácil jogar jogos. Os livros são muito complicados”.
Zheng, 24 anos, finalista de Medicina em Nanjin, também nunca ouviu falar do nome. Nem num nem no outro. “Prémio quê? Não sei o que é”. Tirando os compêndios clínicos, Zheng orgulha-se de nunca ter lido um livro.
Shenzhen é uma cidade recente. Há 30 anos um pequena aldeia, hoje tem 14 milhões de habitantes, graças às reformas de Deng Xiaoping e à criação de uma Zona Económica Exclusiva. Representa a nova China, eufórica com o desenvolvimento. Em toda a cidade, é possível visitar centenas de centros comerciais, e milhares de lojas de telemóveis baratos, mas não assistir a um concerto ou peça de teatro. Shenzhen não parece precisar de vida cultural.
“Mo Yan? Conheço sim. Escreveu livros sobre o período da guerra com os japoneses”. Yang Woo, 59 anos, é oriundo de Guangzhou, a antiga Cantão, e proprietário, em Shenzhen, de um restaurante de peixe na Avenida Huaqiang, a Meca da electrónica. Admite sem problemas que deve o seu êxito empresarial muito ao facto de ser membro do Partido Comunista. “Mo Yan é um escritor muito interessante, que promove os valores da harmonia. Se o Nobel é importante? Não. A China não precisa disso”.
Reportagem de Paulo Moura, no Público de ontem.
Ou, em meia dúzia de palavras: capacidade de concentração, de elaborar raciocínios ponderados, de enfrentar o silêncio e a solidão. No fundo, de desacelerar e pensar. Consigam lá isto com a internet.
Denis Johnson é menos conhecido do que outros escritores americanos actuais mas não devia sê-lo (tem companhia nesse clube: Norman Rush, por exemplo). Sonhos e Comboios é o segundo livro dele que leio, após o volume de contos Filho de Jesus, publicado há um par de anos pela Ahab (em Portugal está também editado Coluna de Fumo, vencedor do National Book Award em 2007, e, segundo parece, a Relógio d'Água prepara-se para lançar Anjos, o primeiro romance que publicou, em 1983). Se os contos de Filho de Jesus tinham uma demão de surrealismo, de realidade distorcida, esta pequena novela de oitenta páginas, não dispensando visões nem sonhos (aparecem logo no título, embora o sentido do original, Train Dreams, seja ligeiramente diferente do português), ancora-se acima de tudo num realismo seco, preciso, sem enfeites nem justificações excessivas, onde muitas personagens são delineadas em três ou quatro frases.
A história é simples: Robert Grainier, nascido provavelmente em 1886, no Utah ou talvez no Canadá, classificado como órfão apesar de ninguém saber realmente o que aconteceu aos seus pais, ganha a vida trabalhando primeiro nas obras que ajudam a levar a civilização ao interior americano e mais tarde, quando o corpo já não aguenta esforços físicos intensos, auxiliado por uma carroça e duas éguas, como transportador de pessoas e objectos. Grainier é um homem solitário e de poucas falas, que vive numa cabana isolada na floresta. Tem arrependimentos: uma vez participou na tentativa de linchamento de um chinês, de outra deixou morrer um homem ferido que encontrou nas montanhas, após este lhe contar como, anos antes, abusara de uma sobrinha de doze anos que o irmão dele acabara por matar à paulada depois de a saber grávida. Grainier pensa que estes actos talvez expliquem a dureza do acontecimento mais importante da sua vida; o acontecimento que lhe levou mulher e filha e desencadeou as tais visões. Tirando isso, a sua vida parece nada ter de extraordinário. Como, de resto, o livro. Num primeira análise, Sonhos e Comboios é apenas o relato da vida de um homem simples que, apesar de ter chegado a ver Elvis Presley de relance (à porta da sua carruagem de comboio privativa), lidou sempre com pessoas tão simples e anónimas quanto ele, ainda que ocasionalmente alvo de acontecimentos peculiares, como o fulano que foi baleado pelo próprio cão; o relato da vida de um homem que nunca chegou a ver o mar e andou de avião apenas uma vez, que não conheceu os pais e teve relações sexuais com uma única mulher. E, todavia, sem que o leitor perceba bem como, é também um livro que acaba por espelhar (ou talvez exsudar) muitas das alterações de quase um século de história norte-americana. Oitenta páginas sublimes.
Nota: a ortografia é pré-AO (ou não teria comprado a edição nacional).
Denis Johnson, Sonhos e Comboios.
Edição Relógio d'Água, tradução de José Miguel Silva.
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