Samuel Spade's jaw was long and boney, his chin a jutting v under the more flexible v of his mouth. His nostrils curved back to make another, smaller, v. His yellow-gray eyes were horizontal. The v motif was picked up again by thickish brows rising outward from twin creases above a hooked nose, and his pale brown hair grew down - from high flat temples - in a point of his forehead. He looked rather pleasantly like a blond satan.
A tradução (de Baptista de Carvalho, para o nº 34 da colecção Vampiro original) é fraquinha:
O rosto de Samuel Spade era longo e ossudo e o seu queixo formava um pronunciado V, sob o V mais suave da boca. As narinas abriam-se, também sob a forma de um V mais pequeno. Os seus olhos verde-claros rasgavam-se horizontalmente, em forma de amêndoa. Sobranceiras a um nariz aquilino, viam-se duas rugas paralelas donde emergiam espessas sobrancelhas cuja configuração era, uma vez mais, a de um V bem vincado, caprichosamente invertido. O cabelo castanho-claro tinha como fronteira uma testa alta e despida de rugas sobre a qual avançara, como um istmo original, uma porção de cabelo que formava, assim, no centro, um «bico de viúva». À primeira vista, Spade tinha o aspecto agradável de um demónio saxão. Naquele momento, inquiria de Effie Perine:
- Que se passa, meu amor?
P.S.: O carácter pouco heróico de Sam Spade está bem presente na adaptação cinematográfica de 1941, realizada por John Huston, com Humphrey Bogart no papel principal. De resto, Huston poucas vezes mostrou heróis tradicionais nos seus filmes e o próprio Bogart - em 1941, ainda longe do nível de estrelato que viria a atingir - desempenhou frequentemente personagens antipáticas (recorde-se outra colaboração com Huston: O Tesouro de Sierra Madre). Se alguém vir um herói no Spade do filme, tal dever-se-á provavelmente ao charme que o cinismo possui e ao peso que, não obstante a carreira variada, o nome Bogart adquiriu.
Aviso: o texto da edição actual, cuja capa se reproduz acima, está em «acordês».
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(**) Segundo algumas opiniões, o destino da mulher fatal é precisamente ser punida pelo herói, que castigaria assim o uso de comportamentos pouco consentâneos com o tradicional papel feminino. Pode haver nesta interpretação algum fundo de verdade (um dos receios - mas também uma das fontes de excitação - dos homens sempre foi a possibilidade de as mulheres usarem o sexo como elemento manipulador) mas a generalização - e a inerente acusação de misoginia - parece-me um pouco abusiva.
O primeiro Nobel da literatura que é bom para cantarolar.
Nunca o audiolivro fez tanto sentido.
Será muito provavelmente de fora da Europa. Três anos seguidos para um europeu é impensável. Azar para Milan Kundera (que, ainda por cima, nasceu num país de Leste, tal como Alexievich, e não apresenta o enquadramento político adequado) e para uma das escolhas do Pedro Correia no Delito de Opinião: John Le Carré.
Os orientais também têm boas hipóteses. Após escolhas relativamente obscuras, este poderá ser o ano de Murakami, a opção popular.
A Oceania terá uma chance. Peter Carey, talvez. David Malouf. Tim Winton deverá ser demasiado «normal».
Tendo nascido na Índia, Salman Rushdie poderá igualmente ser uma hipótese. Nah, estou a brincar. Intelectuais suecos não são cartoonistas dinamarqueses.
Poderá ser Amos Oz. A menos que a Academia Sueca receie premiar um israelita, mesmo tendo ele uma obra que está longe de glorificar as políticas de Israel. Talvez possa premiá-lo salientando isso mesmo.
Rubem Fonseca? Não nasceu no continente ideal mas pelo menos não é europeu. Contudo, o estilo prejudica-o. Os suecos podem ver nos seus livros apenas violência e cinismo. Ou recear que outros o façam.
Poderá ser um transexual ou alguém com uma obra focada nas questões LGBT - ou, melhor, LGBTTQQFAGPBDSM, que não quero ser acusado de discriminação. Já vai sendo tempo, não é verdade?
Eis o grande problema do prémio Nobel da literatura: está cada vez mais político - e mais politicamente correcto. Não estou com isto a dizer que os laureados são maus escritores. De modo nenhum. Nunca se escreveu tanto, pelo que a escolha é vasta; a Academia não precisa de escolher maus escritores. Mas como levar a sério um prémio em que as conveniências parecem sobrepor-se a um juízo sincero?
E, todavia, cá andamos a ler e a escrever sobre ele; a discutir hipóteses; a arriscar vaticínios. Pior ainda, depois do anúncio fica-nos sempre a curiosidade de ler pelo menos uma obra do(a) laureado(a). Mas está certo: como poderíamos ter a certeza de que Kundera merece o prémio se não lêssemos também Modiano?
Houve uma época, ali pelo início da década de 1990, em que Ian McEwan era o meu escritor contemporâneo favorito. Depois as coisas alteraram-se um pouco (achei Amesterdão inconsequente e Expiação demasiado proustiano - ou talvez seja mais correcto classificá-lo como demasiado jamesiano - para o seu próprio bem) mas não pude deixar de o incluir entre as hipóteses para esta série. E então apercebi-me de que talvez pudesse fazer uma espécie de Do Princípio ao Fim dentro da obra dele, utilizando alguns temas nela recorrentes. É provável que corra mal mas até isso poderá ser adequado.
Não matei o meu pai, mas às vezes sinto que contribuí para isso.
O Jardim de Cimento (1978). Edição Gradiva (1989). Tradução de Cristina Ferreira de Almeida.
(Na versão original: I did not kill my father, but I sometimes felt I had helped him on his way.)
O Jardim de Cimento (primeiro romance de McEwan, depois de dois volumes de contos) relata a história de quatro irmãos que ficam sozinhos em casa após a morte dos pais. O pai propunha-se cimentar o jardim porque, na sequência de um ataque cardíaco, já não conseguia tratar dele e, ainda por cima, era forçado a ouvir constantemente piadas sobre o seu estado de degradação, a maioria provenientes de Jack, o filho de 15 anos, que narra a história. Para além de resolver o problema estético, argumenta o pai, o piso de cimento permitirá reduzir a entrada de lixo na casa. Morre, de segundo ataque cardíaco, enquanto mistura o cimento. Ao mesmo tempo e em vez de estar a ajudá-lo, Jack masturba-se no quarto, pensando na irmã mais velha. É este acto, juntamente com as piadas que fazia sobre o jardim, que levam Jack a considerar ter contribuído para a morte do pai. A situação complica-se quando, algum tempo depois, falece também a mãe, há muito doente. Sem saber como agir, temendo ser separados, os irmãos decidem manter segredo e enterrá-la na cave, tapando-a com o cimento. Nas semanas seguintes, sobrevivendo à custa da pensão que ela recebia, criam um ambiente e uma lógica próprios, nos quais as pulsões sexuais desempenham um papel crucial. O 'lixo' pode afinal não vir de fora.
Muitas pessoas detestam O Jardim de Cimento (leiam-se os comentários negativos na Amazon norte-americana, por exemplo). Entende-se porquê. O humor é negro e o ambiente malsão. Mas, na sua brevidade, o livro expõe gloriosamente a confusão adolescente acerca da definição de regras morais (particularmente de índole sexual) e da procura de um lugar no mundo, bem como o papel fundamental dos pais nesses processos. Entregues a si próprios, aqueles quatro irmãos definem regras próprias, em grande medida distorções das existentes fora de casa. (Há quem considere O Jardim de Cimento uma espécie de O Senhor das Moscas em ambiente familiar e altamente sexual.) A própria relação entre Jack e Julie (a irmã mais velha) não passa afinal da encenação instintiva dos jogos habituais entre adultos, aqui remetida ao ambiente mais restrito possível - o de um grupo de irmãos. Ao permanecerem na casa (e apesar de intrusões do mundo exterior, e de ocasionais excursões ao mundo exterior), eles conseguem manter algum controlo sobre as suas vidas. Estão juntos e em relativa segurança, ainda que as ameaças se acumulem e as hormonas se manifestem. No fundo, para pessoas que já nasceram, a casa dos pais é o local mais parecido que existe com o ventre materno.
(O bom senso aconselharia agora que eu aproveitasse a frase anterior para saltar directamente para o último livro de McEwan - ser-me-á impossível conseguir melhor ligação - mas não resisto a fazer algumas paragens suplementares.)
Depois de O Jardim de Cimento, McEwan publicou Estranha Sedução (1981). Por várias razões, o título original é melhor: The Comfort of Strangers. De visita a Veneza, um casal é atraído pelo lado misterioso e cosmopolita de outro casal. Estamos perante adultos mas, como no livro anterior, o impulso para criar um núcleo que faça sentido permanece. E os jogos macabros, agora num nível mais perigoso, mais adulto, também.
A seguir veio A Criança no Tempo (1987). O início tem pouco de memorável (qualquer coisa acerca do trânsito) mas a premissa é a inversão quase perfeita da que gerara O Jardim de Cimento. Um pai perde a filha no supermercado e tem de lidar com as consequências do desaparecimento. O seu casamento desmorona-se, as suas relações profissionais são testadas e a sua própria história é necessariamente reavaliada na sequência de toda a introspecção que ele não consegue deixar de levar a cabo. Ao contrário das crianças de O Jardim de Cimento, ele tem de lidar com o exterior. É um adulto, afinal. E, por sê-lo, deveria conseguir relativizar, colocar os eventos sob perspectiva. Mas, bem vistas as coisas, ninguém alguma vez deixa de ser uma criança – em especial perante acontecimentos que fazem nascer questões de culpa e de justiça. Por outro lado, ninguém alguma vez deixa de se avaliar com os olhos, plenos de expectativa, da criança que foi – o que só pode gerar desapontamento. Em O Jardim de Cimento, sem adultos, sem guias nem passado, as crianças construíam um mundo – deformado, com regras e pulsões malsãs, é certo, mas um mundo ainda assim; sem a criança, os adultos de A Criança no Tempo são incapazes de manter um mundo já criado. Tudo se altera. Tudo é questionado, incluindo a sua própria capacidade enquanto adultos.
N'O Inocente (1990), os jogos dos adultos abrangem a espionagem. Trata-se de um dos poucos livros de McEwan sem crianças mas a personagem principal substitui-as. Virgem, crédulo, transportado para um ambiente estranho (a Berlim do pós-guerra), rodeado por pessoas que parecem muito mais à vontade e saber muito mais do que ele (a experiência permite aos adultos fingir melhor), Leonard Marnham é uma versão crescida do Jack de O Jardim de Cimento.
Desde que perdi os meus num acidente de viação, quando tinha oito anos, passei a trazer debaixo de olho os pais das outras pessoas.
Cães Pretos (1992). Edição Gradiva (1993). Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.
Mais uma vez, a história é sobre orfandade, em sentido real e figurado. O narrador olha para os pais dos outros (perdoe-me Romana Petri o roubo do título de um dos seus livros) porque perdeu os seus. E vai olhar especialmente de perto para os pais da mulher. Ele procurou um sentido na política (marxista convicto, acreditou num mundo melhor, num mundo perfeito, criado pelos humanos mas sem os ‘defeitos’ humanos). A partir de certa altura, ela voltou-se para a religião (o campo por excelência do ideal). Num caso como no outro, o desejo é o de sempre: conferir um sentido à vida, construir um casulo de pessoas, lugares e conceitos que garantam sentido e protecção. Porém, como seria de esperar, os filhos ressentiram-se das obsessões dos pais: Liguei-me pelo casamento a uma família dividida, na qual os filhos, tendo em conta os interesses da sua própria preservação, tinham, até certo ponto, voltado as costas aos pais (p. 23). Os dois temas cruciais em McEwan: como os actos das crianças (ou dos adultos) influenciam os adultos (ou as crianças); a busca, por uns e por outros, de um ambiente de segurança. E, em corolário, como adultos e crianças são afinal duas faces da mesma moeda.
Poderia seguir daqui para a mentira da miúda em Expiação (2001), que nasce de uma visão incompleta (e altamente ficcional) do mundo e da lógica dos adultos, e gera terríveis consequências; para o colapso do dia meticulosamente planeado pelo neurocirurgião de Sábado (2005), que culmina com a invasão da sua residência e a ameaça à sua filha grávida; para a tentativa falhada de construir uma intimidade envolvendo o plano sexual (algo que, no fim de contas, separa as crianças dos adultos) em Na Praia de Chesil (2007); ou ainda para a juíza sem filhos, prestes a ver colapsar o casamento de mais de 30 anos e tendo que decidir da vida ou morte de um rapaz de 17 em The Children Act (A Balada de Adam Henry, 2014). Contudo, isto já vai longo e eu não pretendo escrever uma tese. Avancemos portanto - e finalmente - para o início do último livro de McEwan, publicado há menos de um mês.
E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os meus braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui. Fecho os olhos com nostalgia quando me recordo de como em tempos vogava dentro do meu translúcido saco físico, a flutuar como num sonho, na bolha dos meus pensamentos, pelo meu oceano pessoal em cambalhotas em câmara lenta, colidindo docemente com os limites transparentes da minha clausura, a membrana reveladora que, embora as abafasse, vibrava com as confidências dos conspiradores num vil empreendimento. Isso foi durante a minha juventude despreocupada.
Numa Casca de Noz (2016). Edição Gradiva (2016). Tradução de Ana Falcão Bastos.
(O título original - Nutshell - é novamente preferível, por incluir a ideia de súmula.)
Poderia ser um truque barato e ineficaz, mas resulta. Numa revisitação de Hamlet (em 2016 assinalam-se os 500 anos da morte de Shakespeare), acompanhamos os solilóquios de um feto dentro do ventre materno, suscitados por aquilo que ouve e pelas imagens que vai construindo de um mundo que nunca viu. A mãe tem uma relação com o cunhado e, com ele, planeia matar o pai. O nascituro preocupa-se. Ainda no útero mas já ameaçado por actos de adultos – e, em particular, da mãe – , relembra com nostalgia tempos nos quais ainda não tinha consciência do que se passava (isto é, tempos em que, na famosa equação ser ou não ser, ainda estava do lado do não ser). Caso a mãe e o amante concretizem o plano, sairá do útero - o casulo de segurança por excelência - para um mundo que já lhe foi retirado (o pai estará morto, a mãe provavelmente presa). Ainda por cima, é impotente; nada pode fazer acerca do assunto. Excepto uma coisa: nascer. Simultaneamente uma vitória e uma rendição.
Na maior parte das vezes, um bom final é também um início, ainda que de algo desconhecido. Mesmo quando apresentam a morte da personagem principal – ou até uma catástrofe global, ao jeito de muita ficção científica da década de 1950 -, poucos finais serão dignos de ficar na memória se da personagem não subsistir um rasto e da história uma expectativa para o futuro.
Don DeLillo terminou o seu mais longo romance – Submundo – com uma única palavra: «Paz». Um desejo, mas também uma pausa após um caleidoscópio de mil páginas acerca de uns Estados Unidos sob a ameaça nuclear. Cormac McCarthy é mais negro. Em A Estrada, de 2006, a ameaça (qualquer que fosse; McCarthy não especifica e também não é preciso) concretizou-se. Acompanhamos um adulto e uma criança, pai e filho, através de um mundo de cinzas, regressado à barbárie. Por causa do filho, o pai tenta adiar a morte. Mas as únicas personagens de McCarthy que a morte nunca parece atingir são as que personificam o mal (ou talvez seja mais exacto escrever a ausência de valores éticos, ou ainda as forças primodiais - e amorais - que ligam os humanos aos seus antepassados selvagens e aos restantes seres vivos). Personagens como o juiz Holden de Meridiano de Sangue e o assassino Anton Chigurh de Este País não é para Velhos. Em A Estrada, e não obstante os actos de crueldade que vai praticando, o pai é demasiado humano para sobreviver. O filho humaniza-o. Morre, pois. E é somente após a morte do adulto - ameaçador com a sua arma de fogo e o seu desespero - que, para surpresa e alívio do leitor, um grupo de pessoas se aproxima e toma conta do miúdo. Abre-se uma fresta de esperança. A humanidade ainda tem uma hipótese, num futuro que nunca será igual ao passado. Será outra coisa, outra realidade a extrair dos mistérios da vida, que em muito ultrapassam o ser humano - como o último parágrafo deixa evidente:
Outrora existiam trutas nos regatos das montanhas. Víamo-las paradas na corrente cor de âmbar, com a fímbria branca das barbatanas a ondular mansamente na água veloz. Cheiravam a musgo quando as segurávamos na mão. Luzidias e musculosas e a contorcerem-se. No dorso tinham desenhos vermiformes que eram mapas do mundo no seu devir. Mapas e labirintos. De uma coisa que não podia ser recriada. Cuja harmonia não podia ser reposta. Nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram mais antigas do que o homem e nelas ressoava um mistério.
Da edição da Relógio D’Água (2007), com tradução de Paulo Faria.
Na versão original:
Once there were brook trout in the streams in the mountains. You could see them standing in the amber current where the white edges of their fins wimpled softly in the flow. They smelled of moss in your hand. Polished and muscular and torsional. On their backs were vermiculate patterns that were maps of the world in its becoming. Maps and mazes. Of a thing which could not be put back. Not be made right again. In the deep glens where they lived all things were older than man and they hummed of mystery.
Teria treze anos. Acabei o teste de Geografia em pouco mais de metade do tempo disponível. Como não era possível sair antes da hora, saquei da pasta o livro Duplo Crime na Rádio, de Rex Stout (editado na saudosa colecção Vampiro), e pus-me a ler. A professora (muito aprumadinha mas, a esta distância, pouco marcante) não gostou. Perguntou-me se estava certo de já ter acabado e se não achava melhor rever as repostas. Disse-lhe que sim e que não, respectivamente. Já não me recordo da nota que tive mas creio ter sido ligeiramente pior do que seria de esperar (modéstia à parte, à época era bom aluno), o que, evidentemente, só pode atribuir-se a despeito. Contudo, lembro-me do prazer que extraí do livro, o primeiro que li com essa personagem peculiar, Nero Wolfe.
Wolfe terá sido um dos últimos detectives clássicos, que descobriam o assassino quase exclusivamente através do raciocínio - das «celulazinhas cinzentas», como lhes chamava Hercule Poirot. Gordo, apaixonado por comida e orquídeas, raramente saía de casa e mais raramente ainda deixava os casos pertubarem-lhe a hora das refeições ou o tempo destinado a cuidar das orquídeas. Era o seu assistente, Archie Goodwin, quem calcorreava as ruas de Nova Iorque e visitava os apartamentos dos suspeitos. Archie, sendo em grande medida um puro Watson (ao ponto de narrar as aventuras), talvez ainda assim fizesse a ligação à modernidade: era altivo mas boa pessoa, céptico mas disposto a correr riscos, mordaz mas não agressivo, fisicamente apto mas intelectualmente mediano. Digamos a mistura de uma parte de Philip Marlowe com três de inúmeras personagens de livros e séries televisivas desde então (as NCIS actuais, por exemplo).
Já não lia um livro de Stout há décadas quando, no ano passado, aproveitei uma promoção da Amazon e comprei um para o Kindle. Encontrei um estilo de escrita bastante menos básico do que temia e obtive um prazer quase tão elevado quanto recordava.
Faz hoje 40 anos que Rex Stout morreu.
Lytton Strachey, o amigo de Woolf com quem ela esteve comprometida a certo ponto, teve numerosas relações homossexuais, muito embora também ele tenha assentado num arranjo de longa duração, no seu caso com Dora Carrington, uma jovem mulher que o adorava, e o marido dela, Ralph Partridge, que ele adorava.
Sandra M. Gilbert, introdução a Orlando, de Virginia Woolf, edição Penguin Classics. Tradução minha.
Resta a questão: quem adorava a Dora? Desde que Ralph a adorasse, era o triângulo perfeito.
Asbjorn tinha faro, esse era o seu grande talento, eu nunca encontrara alguém com tanta certeza de gosto como ele, mas qual o seu uso, à parte constituir o centro em torno do qual girava a vida estudantil? A essência do faro é julgamento, para julgar tem que se estar de fora, e esse não é o lugar da criatividade.
Karl Ove Knausgaard, Min Kamp 1. Tradução minha, a partir da versão inglesa de Don Bartlett.
Pois não. É o lugar do crítico.
Começa-se pelo estúdio, onde não se pode entrar porque o piso (uma espécie de linóleo) é o original. Ibsen tinha a secretária junto à janela; escrevia de frente para as árvores do parque e quase directamente de costas para um gigantesco quadro retratando August Strindberg, o seu rival sueco. Ibsen comprara a pintura não por apreciar Strindberg (que passara de seu admirador a crítico feroz) mas por desejar sentir-se permanentemente desafiado. Começava a escrever às nove da manhã e parava às onze e meia, ainda que deixando uma frase inacabada. Gostava, aliás, de se interromper num período de inspiração porque isso lhe permitia recomeçar igualmente inspirado. Saía de casa e percorria umas centenas de metros até um café onde tinha mesa reservada. Lia o jornal, observava as pessoas. Embora constituísse motivo de curiosidade para muita gente, ninguém o abordava. Em 1900, depois do primeiro de três derrames cerebrais, tornou-se-lhe difícil percorrer o trajecto até ao café. O rei ofereceu-lhe então uma chave para o parque do palácio (hoje público), que podia visitar sempre que desejava.
Ibsen autorizara a colocação de um piano no apartamento mas detestava música, considerando-a uma distracção. Apenas a nora tinha autorização para usar o piano de forma regular. Até mesmo o compositor Edvard Grieg, que criou a música para Peer Gynt, tê-lo-á utilizado somente uma vez. Também há uma pequena biblioteca no apartamento mas, pelo menos nesta fase da vida, Ibsen não gostava de ler. Defendia que o realismo que buscava era encontrado observando as pessoas, não através da leitura. Era Suzannah quem lia. À noite, lia em voz alta para ele ouvir.
Em quase todas as peças a partir de Casa de Boneca se percebe como Ibsen detestava a hipocrisia da vida familiar e social: aquelas mentiras, aqueles ajustes, aquelas ideias feitas que, no fundo, então como agora, são a base da convivência humana. As suas últimas palavras (assumindo que, ao estilo de O Homem que Matou Liberty Valance – e como é estranho meter um western neste texto – a lenda não ultrapassou a realidade) são por isso mesmo perfeitas. Agonizando na cama após mais um ataque, aparentemente sem noção do que se passava à sua volta, reagiu às informações da enfermeira para um visitante, segundo as quais ele estava a melhorar, abrindo os olhos e resmungando: «Pelo contrário.» Voltou a tombar inconsciente e morreu no dia seguinte, 23 de Maio de 1906.
Qualquer pessoa pode poupar as 95 coroas (mais umas quantas para chegar a e sobreviver em Oslo) e encontrar esta informação na Internet (por exemplo, aqui, a partir de agora). E, contudo, é diferente ouvi-la no local, olhando para o retrato de Strindberg, ou para os livros, ou para a banheira, que a guia jura ser a original, recuperada depois de ter andado a servir de bebedouro para animais numa quinta algures, onde Ibsen tomava dois banhos diários (era um dos seus grandes prazeres), ou para os quartos, incrivelmente espartanos quando comparados com as restantes divisões da casa. Subitamente, que apenas sejam autorizadas visitas guiadas faz todo o sentido. E que nesta apenas se encontrassem uma chinesa com tendência para o mutismo, uma belga pouco faladora, uma alemã bastante silenciosa e um português que também pouco disse pareceu tornar tudo ainda mais perfeito. Vozes e risos e passos destruiriam o ambiente. Bom, que a guia não debitasse a informação de forma demasiado ensaiada e fosse uma norueguesa loura, com pouco menos de trinta anos de idade, pouco mais de um metro e setenta de altura (Ibsen, norueguês de outros tempos, media um e sessenta e um), corpo esbelto e sorriso pertencente àquela traiçoeira categoria de sorrisos que deixam um homem sentindo-se imundo quando se atreve a questionar-lhes a genuinidade, também terá ajudado. Olhando para ela falando com entusiasmo, não pude deixar de pensar que Ibsen estava certo: observar as pessoas ao vivo é extremamente agradável. Pelo menos certas pessoas.
Mas não era na guia que eu pensava ao passar de novo perto do piano e abandonar o apartamento. Bailava-me no cérebro a ideia pouco original (para quê entrar por caminhos desconhecidos?) de que todos os génios são simultaneamente indivíduos normais, com vidas chatas e apartamentos banais (ainda que com vistas bonitas), e pessoas contraditórias, frequentemente auto-destrutivas. No fundo, que todos os génios têm uma apreciável dose de loucura. (A de Strindberg, acrescente-se en passant, era ainda maior do que a de Ibsen.) Infelizmente para mim, nem o sol que entretanto surgira em Oslo me abriu esperanças de o inverso também ser verdade. Mas outra coisa talvez seja. No apartamento encontra-se a cadeira onde Suzannah morreu em 1914. Suzannah detestava a ideia de morrer deitada. Quando sentiu o fim aproximar-se (na velhice e na doença, é sempre a morte que se aproxima, não os humanos que se aproximam dela), passava as noites sentada na cadeira. Uma manhã não acordou. Se os génios têm invariavelmente uma dose considerável de loucura, os seus parceiros necessitam pelo menos de uma boa pitada.
Fotos pescadas no Bing (é proibido fotografar no interior do apartamento).
Em 1879, no final de Uma Casa de Bonecas, do norueguês Ibsen, Nora abandona o lar (incluindo os filhos) após perceber que nunca passara de uma boneca, de um troféu servindo os interesses do marido. Foi um escândalo, apesar de Nora não ter vontade de abandonar os filhos. Na Alemanha, obrigaram Ibsen a alterar o final.
Em 1953, no final de Monika e o Desejo (ou, em versão mais conforme o original, Verão com Monika), do sueco Bergman, Monika abandona casa e família (incluindo o filho) por não desejar aceitar as responsabilidades da idade adulta. O filme também suscitou alguma polémica mas mais na sequência das cenas de nudez e do pormenor de Monika não ter as axilas depiladas do que em resultado de Monika abandonar o filho por não aceitar viver uma vida manietada por ele.
Em 1966, em Persona, também de Bergman, a enfermeira Alma conta a história de Elisabet, a actriz que se recusa a falar, defronte desta. Elizabet engravidou por lhe terem dito que a falta de instinto maternal a tornava pior actriz e depois recusou o filho. O filme foi discutido mas não parece ter existido polémica em torno dos motivos de Elisabet: egoísmo (antes de engravidar), repulsa (depois).
Se Elisabet engravidou voluntariamente e Nora amava os filhos, sensivelmente por alturas de Persona a pílula fez com que o problema de Monika deixasse de ser uma inevitabilidade, transformando os filhos numa escolha prévia. Mais do que contra os homens (para quem, fora do âmbito de um casamento desejado e financeiramente estável, os filhos também sempre constituíram um pesadelo, embora – a injusta vantagem masculina – nem sempre uma responsabilidade), a liberdade sexual feminina foi conquistada contra a maternidade. Ibsen, personalidade complexa que aos dezoito anos engravidou uma rapariga dez anos mais velha e nunca manteve contacto com o filho, sabia-o – ou, pelo menos, intuiu-o. Bergman, que viveu num tempo em que estilhaçar tabus era quase um pré-requisito para se poder ser levado a sério, também. Que a sociedade (pelo menos a sociedade que já ouviu falar das peças de Ibsen e dos filmes de Bergman) pareça tender a aceitar que a ligação entre uma mãe e um filho pode, naturalmente, quase sem discussão, ser subjugada à ideia da liberdade individual e da busca por uma felicidade cada vez mais ilusória (porque centrada em elementos externos: fama, riqueza, beleza, consumo, ...), bom, esse é um daqueles assuntos que as noções do politicamente correcto vêm transformando num tabu, numa época em que parecem restar tão poucos (um sério problema para a arte, que, exceptuando uma ou outra tímida tentativa para redefinir o conceito de inocência – no cinema, fiquemos por Malick –, pouco mais faz do que insistir em efeitos de choque cada vez mais gastos ou em jogos de interpretação quase aleatória, com pouco evidentes ligações ao real). De forma mais genérica: até que ponto são os valores necessários numa sociedade «desenvolvida»? E que valores? Sendo certo que há vantagens numa sociedade não manietada pelos mais tradicionais: as noções de culpa desvanecem-se pois, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba no mesmo barco. Não há culpados mas também não há inocentes. A outra personagem feminina de Persona, a tal enfermeira chamada Alma, não abandonou qualquer filho; abortou um.
Há uns meses, uma tal Wendy Jones deixava comentários como este nas páginas da Amazon britânica: «This is just not literature! It's a good attempt, undoubtedly, and on the right track, and had the author have lived longer he may well have written something of lasting value.» Apesar de todos sabermos que na internet se encontram as opiniões mais absurdas que é possível imaginar expressas da forma mais convicta em que é possível exprimi-las, quando se levava em conta que o objecto da crítica era o livro Crime e Castigo, de Fiódor Dostoievski, generosamente agraciado por Wendy com uma estrelinha, era inevitável pensar: não pode ser a sério. Não era. Pesquisavam-se outros comentários de Wendy (por incrível que pareça, eu até tenho uma vida – não é é muito boa) e concluía-se que ela sabotava o sistema de recomendações da Amazon conscientemente e com indisfarçado gozo. Por exemplo:
- Justificava a atribuição de uma estrela a Where's Wally com a circunstância de não ter conseguido encontrar Wally;
- Escrevia sobre Calmer, Easier, Happier Parenting: The Revolutionary Programme That Transforms Family Life: «Great book, but doesn't recommend Valium. I would have thought Valium was the obvious answer» (para ser sincero, eu também) e sobre Short-Term Couples Therapy: The Imago Model in Action (seja lá isso o que for): «not particularly helpful for one night stands»;
- Admitia ter comprado um determinado livro por a capa combinar com a decoração da sala;
- Afirmava ter adorado Emma, de Jane Austen, porque a personagem principal lhe lembrara a apresentadora de um reality show britânico;
- Propunha-se fazer uma viagem ao Egipto com o filho, parando em todas as tabernas mencionadas no livro Asterix e Cleópatra, esperançada de vir a encontrar o nariz da Esfinge (partido por Obélix, como é do conhecimento geral);
- Confessava que o juízo negativo que faz de Beloved, de Toni Morrison, está afectado pela inveja: Morrison ganhou o Nobel, Wendy ainda não;
- Escrevia sobre Tess of the d'Ubervilles, de Thomas Hardy: «I was disappointed. I was very disappointed. Lo, I lay down on the carpet and cried, yeah, I wailed. I took a pillow unto myself and let out a moan that fair shook the walls. There was a torment of disappointment that came over me, and I was lost.»
* Pesquisem, pesquisem, que afinal eu também o fiz.**
** Não, apesar do elefante africano (ou, para acomodar espíritos progressistas, da elefanta africana) ser o mamífero terrestre com período de gestação mais longo, este apenas ronda os 22 meses;***
*** Não, as princesas e as actrizes de Hollywood têm gravidezes que a intensidade da cobertura mediática faz parecer longas mas, na verdade, são de duração normal;****
Why not leave their private sorrows to people? Is sorrow not, one asks, the only thing in the world people really possess?
Vladimir Nabokov, através do professor Timofey Pnin, resmungando contra a psicanálise (um dos seus ódios de estimação) em Pnin, meio século antes da criação das redes sociais.
«Quero confessar-me, senhor padre… Não tenho a certeza de ser capaz… Poderá, senhor padre…? Tenho um marido…»
…?
«Peço desculpa? Oh, não, de forma nenhuma. Claro que somos casados. O órgão tocava e eu usava um véu branco, comprido. Havia incenso e lírios. E eu disse ‘sim’, e toda a gente estava feliz, e a mamã chorava e…»
…?
«Só um momento. Já lá chego. Eu era pobre. Tinha olhos grandes e tranças compridas. Ele chegou num carro. Era grande e tão forte. Foi comigo até ao cimo de uma colina e, na sua voz clara, forte, falou acerca do futuro. Tinha tantos planos. Eu brincava com os botões reluzentes do seu uniforme. Eu gostava de lhes tocar com a minha face e de me ver reflectida neles como num espelho.»
…?
«Sim, sim, senhor padre. Claro que sabia que era vaidade. Peço perdão. E então casámos.»
…?
«Não, de maneira nenhuma. Ele não mudou depois do casamento. Ele sempre foi firme mas também muito atencioso. Claro, tivemos os nossos desentendimentos mas nada de grave. Estávamos quase sempre juntos, ele praticamente nunca me deixava.»
…?
«Mas, senhor padre, como pode dizer isso? Francamente… Sim, ouvi falar disso mas ele não é assim. Nunca. De maneira nenhuma.»
…?
«Talvez. Não sei. Mas quem se veio confessar sou eu, não é ele. Eu é que estou aqui a precisar de ajuda… Preciso do seu conselho… Preciso de con… solo… Não, não estou a chorar. Agarre-me na mão, senhor padre.»
…?
«Sim. Claro que me casei com ele por estar apaixonada. Onde é que errei? Pergunte a qualquer pessoa sobre ele. Todos lhe dirão como é respeitado, capaz, digno.»
…?
«Perdão?»
…?
«Não, nunca. A sério, nunca. Nunca lhe fui infiel, nem sequer nos meus pensamentos. Tenho sido uma mulher fiel. Acredita-me, senhor padre?»
…?
«Não.»
…?
«Não.»
…?
«Mais uma vez, não.»
…?
«Então a que propósito vem isto? Padre, estou aqui… Não, é impossível acreditar. Depois de sete anos a viver com ele…No Verão passado fomos de férias. Eu convenci-o a descansar um pouco. Ele tem um emprego importante, muito trabalho, enorme responsabilidade, o país inteiro… Uma manhã, ao pequeno-almoço, estávamos sentados um em frente do outro. Atrás dele havia uma janela aberta. Através dela eu conseguia ver o jardim, árvores… O papel de parede da sala tinha um padrão de florzinhas, dezenas de milhar de florzinhas cor-de-rosa. Quando ele levantou o copo eu olhei para ele. Não havia nenhuma intenção especial no meu olhar. E então apercebi-me…»
…?
«O que vi? Como foi possível que, durante sete anos, tenha partilhado a mesa e a cama com ele e só agora… Aconselhe-me, senhor padre, porque se é um pecado…»
…?
«Foi só nessa altura que percebi que ele era feito de plasticina.»
…?
«Sim. Todo ele. É todo artificial. Inclinei-me para ver. Os meus olhos deviam estar muito abertos de espanto porque ele pousou o copo e perguntou calmamente: ‘O que se passa?’ Não, desta vez não estou enganada. Ele sempre foi feito de plasticina. Todo ele! Como, oh, como é que nunca reparara antes? E agora o que vai acontecer?»
…?
«Uma anulação do casamento? Mas, senhor padre, isso é impossível – temos filhos!»
Lá em Baixo, como Uma Vizinha
Se eu não fosse eu e me ouvisse lá em baixo, como se fosse uma vizinha, a falar com ele, diria para comigo que me sentia muito feliz por não ser ela, por não dizer as coisas como ela diz, com uma voz como a voz dela e opiniões como as suas opiniões. Mas não posso ouvir-me lá em baixo, como se fosse uma vizinha, não posso ouvir como não devo falar, não posso sentir-me feliz por não ser ela, como sentiria se pudesse ouvi-la. Por outro lado, uma vez que ela sou eu, não lamento estar aqui em cima, onde não posso ouvi-la como se fosse uma vizinha, onde não posso dizer para comigo, como diria se estivesse lá em baixo, como me sinto feliz por não ser ela.
Amigos Maçadores
Só conhecemos quatro pessoas maçadoras. Os nossos outros amigos parecem-nos muito interessantes. Todavia, a maior parte dos amigos que achamos interessantes acham-nos maçadores: o mais interessante é o que nos acha mais maçadores. Desconfiamos dos poucos que adoptam de certo modo uma posição de meio-termo, com os quais partilhamos um interesse recíproco: sentimos que, a qualquer momento, poderão tornar-se demasiado interessantes para nós – ou nós, demasiado interessantes para eles.
Lydia Davis, Contos Completos. Edição Relógio D'Água (em português pré-AO), com tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende.
Denis Johnson é menos conhecido do que outros escritores americanos actuais mas não devia sê-lo (tem companhia nesse clube: Norman Rush, por exemplo). Sonhos e Comboios é o segundo livro dele que leio, após o volume de contos Filho de Jesus, publicado há um par de anos pela Ahab (em Portugal está também editado Coluna de Fumo, vencedor do National Book Award em 2007, e, segundo parece, a Relógio d'Água prepara-se para lançar Anjos, o primeiro romance que publicou, em 1983). Se os contos de Filho de Jesus tinham uma demão de surrealismo, de realidade distorcida, esta pequena novela de oitenta páginas, não dispensando visões nem sonhos (aparecem logo no título, embora o sentido do original, Train Dreams, seja ligeiramente diferente do português), ancora-se acima de tudo num realismo seco, preciso, sem enfeites nem justificações excessivas, onde muitas personagens são delineadas em três ou quatro frases.
A história é simples: Robert Grainier, nascido provavelmente em 1886, no Utah ou talvez no Canadá, classificado como órfão apesar de ninguém saber realmente o que aconteceu aos seus pais, ganha a vida trabalhando primeiro nas obras que ajudam a levar a civilização ao interior americano e mais tarde, quando o corpo já não aguenta esforços físicos intensos, auxiliado por uma carroça e duas éguas, como transportador de pessoas e objectos. Grainier é um homem solitário e de poucas falas, que vive numa cabana isolada na floresta. Tem arrependimentos: uma vez participou na tentativa de linchamento de um chinês, de outra deixou morrer um homem ferido que encontrou nas montanhas, após este lhe contar como, anos antes, abusara de uma sobrinha de doze anos que o irmão dele acabara por matar à paulada depois de a saber grávida. Grainier pensa que estes actos talvez expliquem a dureza do acontecimento mais importante da sua vida; o acontecimento que lhe levou mulher e filha e desencadeou as tais visões. Tirando isso, a sua vida parece nada ter de extraordinário. Como, de resto, o livro. Num primeira análise, Sonhos e Comboios é apenas o relato da vida de um homem simples que, apesar de ter chegado a ver Elvis Presley de relance (à porta da sua carruagem de comboio privativa), lidou sempre com pessoas tão simples e anónimas quanto ele, ainda que ocasionalmente alvo de acontecimentos peculiares, como o fulano que foi baleado pelo próprio cão; o relato da vida de um homem que nunca chegou a ver o mar e andou de avião apenas uma vez, que não conheceu os pais e teve relações sexuais com uma única mulher. E, todavia, sem que o leitor perceba bem como, é também um livro que acaba por espelhar (ou talvez exsudar) muitas das alterações de quase um século de história norte-americana. Oitenta páginas sublimes.
Nota: a ortografia é pré-AO (ou não teria comprado a edição nacional).
Denis Johnson, Sonhos e Comboios.
Edição Relógio d'Água, tradução de José Miguel Silva.
Os seus pais recordam-lhe uma coisa que uma vez o poeta Gil de Biedma lhe disse no pub Tuset, de Barcelona. Uma relação íntima entre duas pessoas é um instrumento de tortura entre elas, quer sejam pessoas de sexo diferente ou do mesmo. Todo o ser humano tem dentro de si uma certa quantidade de ódio para consigo mesmo, e esse ódio, esse não conseguir aguentar-se a si mesmo, é algo que tem de ser transferido para outra pessoa, e a pessoa que se ama é aquela para quem melhor se pode transferir.
Enrique Vila-Matas, Dublinesca.
Edição Teorema, tradução de Jorge Fallorca.
Há um post no Delito de Opinião que apenas em parte encaixa neste blogue pacato onde pouca gente deixa comentários. Se desejarem lê-lo, dêem um salto até lá. Podem usar um dos seguintes links mas cuidado com os outros:
O caso de Virgília tinha alguma gravidade mais. Ela era menos escrupulosa que o marido: manifestava claramente as esperanças que trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortesias, atenções e afagos que poderiam render, pelo menos, um codicilo. Propriamente, adulava-o; mas eu observei que a adulação das mulheres não é a mesma cousa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã, – ou ainda de enfermeira, outro ofício feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um quid, um fluido, alguma cousa.
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Será precisamente pela superior garantia de «servilidade» que muitos homens até preferem a adulação de outros homens. Por isso e por tradicionalmente constituir uma demonstração mais evidente de poder. Quanto à adulação feminina, consegue, de facto, ser parecida com afecto: resta saber se por exclusiva responsabilidade das mulheres, se por leituras enviesadas e quase sempre de índole sexual (aliás, muito pouco coadunáveis com a imagem de uma mãe ou de uma irmã) dos homens. Ainda assim, é importante manter presente que vivemos tempos muito diferentes dos de Machado de Assis. Tempos em que as mulheres agem frequentemente de formas parecidas com as dos homens e em que os homens dão excelentes enfermeiros.
É isso tudo, salvo que a razão a que Chesterton submeteu as suas imaginações não era precisamente a razão, mas sim a fé católica, ou seja, um conjunto de imaginações judaicas submetidas a Platão e Aristóteles.
Recordo duas parábolas que se opõem. A primeira consta no primeiro tomo das obras de Kafka. É a história do homem que pede para ser admitido na lei. O guarda da primeira porta diz-lhe que lá dentro há muitas outras e que não há sala que não esteja custodiada por um guarda, cada um mais forte que o anterior. O homem senta-se a esperar. Passam os dias e os anos e o homem morre. Na agonia pergunta: «Será possível que em todos estes anos que estive à espera ninguém tenha querido entrar senão eu?» O guarda responde-lhe: «Ninguém quis entrar porque só para ti estava destinada esta porta. Agora vou fechá-la.» (Kafka comenta esta parábola, complicando-a ainda mais, no capítulo nove d'O Processo.) A outra parábola está no Pilgrim's Progress, de Bunyan. A multidão fita cobiçosa um castelo guardado por muitos guerreiros; na porta está um guarda com um livro para escrever o nome daquele que for digno de entrar. Um homem intrépido aproxima-se desse guarda e diz-lhe: «Anote o meu nome, senhor.» A seguir saca da espada e lança-se sobre os guerreiros e recebe e devolve feridas sangrentas, até abrir caminho por entre o fragor e entrar no castelo.
Chesterton dedicou a sua vida a escrever a segunda das parábolas, mas algo nele propendou sempre para escrever a primeira.
(Obras Completas de Jorge Luís Borges, Vol. II, Editora Teorema (1998), tradução de José Colaço Barreiros.)
Devo confessar que me lembrei deste texto por causa dos últimos dois parágrafos – dos quais, aliás, me lembro frequentemente. Aplicando-se na perfeição à vida de Chesterton, aplicam-se também à da maioria das pessoas, dediquem-se à escrita de romances ou de e-mails, sejam crentes ou agnósticas. Passamos a vida procurando viver (ou procurando convencer-nos de que vivemos) a segunda parábola mas, na verdade, poucos de nós conseguem deixar de viver a primeira. E talvez duas das melhores formas de encaixar a percepção dessa incapacidade passem por aceitar a existência de desígnios superiores, os quais é mais produtivo aceitar do que combater, e por usar o humor, esse excelente método de controlar ilusões e megalomanias. Chesterton usava ambas. Serão mais perigosas (para os outros e para si próprias) as pessoas incapazes de usar qualquer delas.
Há-de correr bem.
Li num fórum Internet a afirmação categórica de um leitor sobre a personagem de Littell: «Max Aue soa a verdadeiro porque é o espelho da sua época.» Nada disso. Soa verdadeiro (para certos leitores fáceis de enganar) porque é o espelho da nossa época: niilista e pós-moderna, para não dizer mais. Em nenhum momento é dito que essa personagem adere ao nazismo. Pelo contrário, ela assume um desprendimento por vezes crítico face à doutrina nacional-socialista, e nisso não se pode dizer que reflecte o fanatismo delirante que reinava na sua época. Em contrapartida, esse desprendimento exibido, esse ar indiferente de quem já passou por muito, esse mal-estar permanente, esse gosto pela argumentação filosófica, esse amoralismo assumido, esse sadismo amargo e essa terrível frustração sexual que o corrói… é claro!, como é que não percebi antes? De súbito começo a ver claro: Les Bienveillantes é «Houellebecq entre os nazis», pura e simplesmente.
Laurent Binet, HHhH.
Sextante Editora, tradução de Manuela Torres.
Há poucos anos, pouco tempo antes da sua morte, o grande germanista e estudioso de Kafka, Eduard Goldstücker, descreveu-me como ele e outros fiéis comunistas em Praga foram cercados em Dezembro de 1951 no início de uma nova onda de «processos de Moscovo» estalinistas. Quando ele pediu para saber por que razão tinha sido preso, a resposta veio com um sorriso irónico: «Isso é o que você vai ter de nos dizer.»
John Banville, Imagens de Praga. Edições Asa (2005), tradução de Teresa Casal.
O século XX não foi fácil para os checos e para os seus «primos» eslovacos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o país nem sequer existia. Depois, a Checoslováquia entrou no que Kundera chamou, de modo quiçá um tudo-nada forçado, «tripla repetição do número vinte». Ganha a independência em 1918, perdeu-a em 1938, quando os líderes dos países vencedores da Guerra se assustaram com as ameaças de Hitler. Em 1948, o país aceitou o comunismo para vinte anos depois perceber que não estava autorizado a introduzir-lhe mudanças – muito menos a abandoná-lo. O poder imposto pelos tanques soviéticos instalou-se em força em 1969 e apenas caiu em 1989. Três vezes vinte. Pelo meio, ainda existem os dez anos que vão de 1938 a 1948. Os anos da ocupação nazi, da perseguição aos judeus, do Reichsprotektor Reinhard Heydrich, uma figura que me fascina tanto como o proverbial olhar do réptil e a que talvez ainda volte – mas aconselho desde já a leitura de HHhH, de Laurent Binet, que a Sextante publicou há pouco mais de um ano. As contas são fáceis de fazer: os checos passaram três quartos do século em guerra ou numa paz regida pelo medo. Medo do próprio governo, medo de governos vizinhos, medo de proferirem uma palavra imprudente ou mal interpretada. Talvez nós, portugueses, devêssemos pensar nisto quanto justificamos pechas nacionais com os quarenta e oito anos de Salazar.
Mas não é minha intenção comparar ditaduras nem estados de alma colectivos. Prefiro centrar-me no génio de Kafka. Permitam-me só mais algumas datas: Kafka morreu em 1924 mas O Processo, escrito cerca de dez anos antes, foi publicado pela primeira vez apenas em 1925. Kafka era judeu e falante de alemão, o que, já na época de início da Primeira Grande Guerra, não constituía combinação fácil. Mas Hitler e Estaline, os campos de concentração e o gulag, a Gestapo e o KGB (e a Státní Bezpečnost, a polícia secreta checa dos tempos comunistas), tudo ainda fazia parte do futuro. Porém, Kafka adivinhava. Ainda que se diga que ele achava os seus enredos mais divertidos do que assustadores ou proféticos, o universo de Kafka é o universo do totalitarismo e, mais especificamente, do totalitarismo moderno. Tão moderno, de facto, que, talvez ironicamente para quem abominava a nascente psicanálise (Kafka apreciava a loucura e detestava que se pretendesse curá-la), é, acima de tudo, um totalitarismo psicológico. Kundera outra vez, em Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira): «Se lermos assim O Processo, ficaremos, desde o início, intrigados com a estranha reacção de K. à acusação: sem nada ter feito de mal (ou sem saber o que de mal fez), K. começa logo a comportar-se como se fosse culpado. Tornaram-no culpado. Culpabilizaram-no.» E Kundera mostra como K. segue o processo psicológico típico de alguém que sente estar a agir como culpado sem o ser. Um processo interior, por contraponto ao outro, exterior, que dá nome ao livro, e que tem cinco estádios: Luta vã pela dignidade perdida, Prova de força, Socialização do processo, Autocrítica, Identificação da vítima com o seu carrasco. Na literatura, antes de Kafka, um inocente podia ceder e confessar crimes que não cometera, podia ser formalmente culpado mas, perante si mesmo, mantinha-se inocente. Em Kafka, a culpa é imposta do exterior e é aceite. K., a personagem de O Processo, irá (no estádio 4, o da autocrítica) examinar a sua vida à procura do momento em que se tornou culpado. Já não duvida que o é. Num regime totalitário, o acusador não precisa de conhecer a culpa do acusado antecipadamente. Precisa de, em conjunto com o acusado, a descobrir (releiam, por favor, o excerto de Banville sobre a réplica do interrogador comunista em 1951) pois sabe que toda a gente é culpada de alguma coisa – quanto mais não seja, de um pensamento. E, se até a própria culpa pode vir a ser aceite como real, quão fácil é aceitar a culpa alheia? O poder num regime totalitário vive de pessoas que aceitam a culpa alheia. Se foi preso, alguma coisa terá feito. Reacção apenas humana; reacção decididamente kafkiana. O corolário, como se viu (como Kafka viu), é se fui preso, alguma coisa terei feito. (Em 1984, de Orwell – a quintessência do livro sobre totalitarismo, mas convenhamos que o inglês já assistira a muito no quarto de século que decorrera desde a morte de Kafka – há uma personagem que aceita prisão e castigo e ainda se recrimina por, alegadamente, ter criticado o Grande Irmão enquanto dormia.)
Em Portugal, dizemos frequentemente que, ao ler-se Eça, pode ver-se o país actual. É verdade. Os bons escritores são intemporais – e globais. Mas, ainda assim, Eça descreveu a época em que viveu. Kafka descreveu os cinquenta anos que se seguiram à sua morte. E esperemos que não outros tantos, no nosso futuro.
Houve uma vez um homem chamado Johann Friedich Struensee. O início não é este mas podia ser. O verdadeiro início é:
Johann Friedich Struensee foi nomeado médico real do rei dinamarquês Christian VII no dia 5 de Abril de 1768; quatro anos mais tarde foi executado.
Começa, pois, com a eliminação de todas as esperanças. Claro que o relato é histórico (há páginas na Wikipedia sobre as personagens) mas é também pouco conhecido – e o leitor poderia esperar um final feliz. Enquist, escritor sueco nascido em 1934 e – como podemos andar tão distraídos? – quase desconhecido em Portugal, faz questão de esclarecer imediatamente que tal não sucederá.
Ao assumir o trono dinamarquês, Christian VII é um miúdo de dezasseis anos saído de uma educação severa. Está assustado, tem períodos de demência, provavelmente é esquizofrénico. Sente atracção pelas ideias iluministas e chega a corresponder-se com Voltaire, dando esperanças ao francês de que a mudança possa começar naquele pequeno e atrasado país da Escandinávia. Mas Christian é demasiado inconstante e demasiado fraco. Os seus períodos de lucidez são raros. Aceita casar com a prima Caroline Matilda (ou Mathilde, como ficou conhecida na Dinamarca), irmão do rei inglês George III (ou Mad King George). Ela tem quinze anos e um espírito forte. O casamento é uma série de mal-entendidos. Por desinteresse e medo de Christian, só é consumado ao fim de vários meses. Mesmo depois, Christian anda mergulhado numa melancolia feroz. Numa tentativa para que lhe passe, levam-lhe uma prostituta, Anna Catharine Beuthaken, conhecida como Bottine Caterine por ter como padrasto um sapateiro. Christian apaixona-se. Isso é inaceitável e ela é forçada a afastar-se de Copenhaga. Numa tentativa atabalhoada para a encontrar, Christian parte em viagem por vários países europeus. Em Londres tenta assistir a uma representação de Hamlet mas tal é evitado pois seria demasiado arriscado confrontá-lo com um príncipe dinamarquês tombando na loucura (acaba por ver Richard III). Em Paris encontra-se com Diderot mas não com Voltaire. É nesta viagem que Struensee está pela primeira vez ao seu lado. Diderot explica a Struensee que talvez o rei não seja louco mas, se o for, então a doença deixa um vazio no centro do poder. Quem quer que ali entre tem uma oportunidade maravilhosa. Struensee sabe que as palavras lhe são dirigidas. Que é ele quem pode «entrar».
Médico, iluminista, viera para ser o médico do rei. Acaba a controlá-lo. Torna-se seu primeiro conselheiro. Redige decreto após decreto que o rei assina quase sempre sem ler. Envolve-se com a rainha. São dois seres inteligentes e fortes, perdidos numa corte hostil. As cenas de sexo são – bom, nos livros as cenas sexo são sempre ridículas, não é verdade?
Ele deixou-se ficar imóvel dentro dela, esperando pelo bater da sua pulsação.
Pouco a pouco começara a perceber que o prazer mais intenso era encontrado quando esperava pelo bater da pulsação nas profundezas dela, quando as membranas de ambos respiravam e se moviam ao mesmo tempo, suaves, pulsantes. Era maravilhoso. Ele gostara de aprender a esperar por ela. Ela nunca precisara de dizer nada, ele aprendera isso quase de imediato. Podia ficar deitado quase imóvel, durante muito tempo, com o seu membro profundamente dentro dela, ouvindo as suas membranas, como se os corpos de ambos tivessem desaparecido e apenas permanecessem os sexos. […]
Ele dormira com muitas mulheres, e ela não era a mais bela. Mas nenhuma o ensinara a esperar pelo ritmo das membranas e pelas pulsações mais íntimas do corpo.
Ou talvez não, talvez nem sempre sejam ridículas. Numa entrevista, Enquist garantiu que, ao escrever as cenas de sexo, estava tão bem informado que era como se partilhasse o quarto com eles. Talvez sim, talvez não. O que importa?
Struensee avança mas sabe que está perdido. Avança certo de que o farão parar. É em parte por isso que não avança para a reforma mais importante: a que aboliria a servidão. Legisla a abolição da lei contra o adultério, a abolição da pena de morte para crimes de roubo, a proibição da tortura, a criação de um fundo de protecção para filhos ilegítimos, a redução das pensões supérfluas dos funcionários públicos («supérfluas» está no livro), a transferência das tarifas de Øresund do Tesouro Real para o Estado. Redige e faz o rei assinar centenas de decretos – mas não o mais importante de todos. Ainda assim, sabe que está perdido. Não só por questionar os poderes instituídos mas também porque aqueles que pensa estar a defender não o compreendem. E, na verdade, Struensee age como um déspota – um déspota iluminado mas um déspota. Seria possível de outra forma, vários anos antes da Independência Americana, vinte anos antes da Revolução Francesa?
Guldberg é a quarta personagem principal. Pequeno, pouco atraente, filho de um cangalheiro, julga-se guardião da pureza numa corte atolada em deboche. Imagina relatos históricos começados com a frase “Houve uma vez um homem chamado Guldberg”, ao jeito das sagas islandesas, onde a grandeza de um homem não é avaliada pela sua aparência. Detesta a rainha. Detesta-a particularmente desde o dia em que ela, casada mas ainda à espera da visita do marido, dando crédito a um rumor antigo segundo o qual Guldberg fora castrado em criança, o questionou sobre como era viver sem desejos. O rumor é falso. Perante a jovem rainha de ombros nus e «seios quase expostos», Guldberg sente-se humilhado. Ela julga-o um ser incompleto. Guldberg não lhe perdoará. Nem a Struensee, que ela aceita na cama. E que condena, ao fazê-lo. Porque é mais fácil eliminar Struensee por manter relações sexuais com a rainha do que por causa das reformas políticas. A História é quase sempre o resultado de lutas menores – pelo poder individual, pela paixão, pelo prazer da vingança, pela vaidade. Guldberg sabe-o. Enquist também. É por isso que este livro, sendo um romance histórico, é acima de tudo um romance. Centrado nestas quatro pessoas. Tudo o resto vem por acréscimo. Um romance em que o conhecimento da maioria dos factos (repito-o: estão disponíveis na net e Enquist não os esconde logo de início) em nada diminui o prazer que se obtém ao lê-lo.
Pensei em terminar com uma piada, escrevendo que, duzentos anos depois de Shakespeare escrever Hamlet, algo continuava podre no reino da Dinamarca. Mas seria patético, uma forçada tentativa de humor. Parece-me mais significativo mencionar algo que Enquist refere cedo: que ainda hoje, duzentos e quarenta anos decorridos sobre os acontecimentos, não existe nenhum monumento dedicado a Struensee na Dinamarca.
Per Olov Enquist, A Visita do Médico Real. Edição Ahab (em português pré-AO), tradução de Mário Semião e Maria João Freire de Andrade.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Clarisse Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.
Disponível em edição Relógio d'Água.
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