como sobreviver submerso.

Segunda-feira, 25 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 4

Forças do Mercado

 

«E agora?»

«Agora vamos fazer brinquedos iguais para todas as crianças e distribui-los», respondeu o duende barbudo, com o gorro do Pai Natal enfiado na cabeça. Alguns dos outros duendes haviam de dizer que ele podia não acreditar em hierarquias, mas tratara logo de se apoderar dos símbolos do poder cessante.

«Sem o Pai Natal e sem as renas? Como os vamos transportar? E como é que vamos pagar os materiais?»

«Como é que ele fazia?»

«Nos últimos anos, o negócio cresceu por causa dos patrocínios. Da Coca-Cola e outras multinacionais.»

«Isso não pode ser. Esses contratos têm de ser rasgados.»

«E então onde é que vamos buscar o dinheiro?»

O duende barbudo coçou a barba. Apercebeu-se de que ela tinha um nó, mas resistiu a desfazê-lo naquele momento.

«Se calhar», disse lentamente, «até nem seria má ideia aproveitarmos o dinheiro da Coca-Cola para boicotarmos a lógica capitalista da distribuição de brinquedos. Temos é que manter a morte do velho em segredo.»

Toda a gente concordou quase imediatamente que era isso mesmo que se devia fazer.

A princípio, até pareceu que ia resultar. Manteve-se secreta a morte do Pai Natal em todas as comunicações, incluindo com a Coca-Cola, e fizeram-se as encomendas aos fornecedores como de costume. Mas depois o presidente da Coca-Cola exigiu falar pessoalmente com o Pai Natal. O duende barbudo pegou no telefone e disse: «Ho-ho-ho!», ao que o presidente da Coca-Cola respondeu: «Você não é o Pai Natal. O que se passa aí?» O duende barbudo inventou uma desculpa que envolvia uma doença tropical grave («provavelmente apanhou-a na viagem do ano passado»), mas o presidente da Coca-Cola não ficou convencido e enviou uma equipa de consultores ao Pólo Norte. Sem quaisquer hesitações ou remorsos, mas com mais dificuldade do que teriam antecipado (eram criaturas surpreendentemente resilientes), os duendes mataram-nos. Dias depois, contudo, chegou outra equipa. Como a primeira, era constituída por gente ainda nova, vestindo aquele tipo de roupas que as pessoas nas latitudes mais temperadas pareciam achar ser adequada para a neve. Houve de imediato muitas perguntas básicas e tomada de apontamentos, mas depressa os duendes lhes puseram fim através do mesmo método que haviam usado dias antes. Perante os corpos caídos na neve, ligeiramente triste por não ter conseguido evitar fazer um rasgão numa parka que, embora pouco adequada ao Pólo Norte, era bonita e de boa marca, o duende barbudo resmungou: «Não é possível que continuem a enviá-los. Afinal, quantos consultores pode ter a Coca-Cola?» Mesmo nesses tempos já antigos, verificou-se que tinha ainda bastante mais. Os duendes foram-nos abatendo e finalmente eles deixaram de aparecer. (Num dado que merecia algum estudo – existissem consultores interessados em fazê-lo –, a Coca-Cola viria a apresentar os melhores resultados da sua história nos anos imediatamente seguintes a estes acontecimentos.) Estava-se então já em Dezembro e os duendes pensaram que o pior fora ultrapassado. Mas então a Coca-Cola enviou um telegrama avisando ter despachado uma carta registada a denunciar o contrato de financiamento. Na carta, que chegou dias depois no comboio Expresso Polar, acrescentava-se que, em resultado de uma alínea existente no contrato («cuja cópia se anexa»), a Coca-Cola podia indefinidamente, se assim o entendesse, usar a imagem do Pai Natal na sua publicidade. O duende barbudo ficou tão furioso que chegou a arrancar pêlos da barba, mas nada havia a fazer. Realizou-se uma última reunião geral, que decorreu aos berros, com muitos lamentos e acusações. Não havia dinheiro para pagar aos fornecedores, que ainda só haviam enviado uma pequena parte dos produtos e se recusavam a enviar o resto. Pior: também não havia dinheiro para pagar salários. Alguém mencionou um velho mito segundo o qual o Pai Natal teria um tesouro escondido algures e procedeu-se a uma busca desesperada, com muita destruição de instalações e de equipamento, mas, se o conteúdo da gaveta de uma mesinha-de-cabeceira do quarto do Pai Natal ainda suscitou risos e piadas deselegantes («Alguém tem andado a portar-se mal...», «Agora percebe-se o ‘ho-ho-ho’ que se ouvia durante a noite…», «Com este frio, as pilhas hão-de durar pouco», «Também se arranja em tamanho XS?»), nada de valor significativo foi encontrado. Nessa altura a raiva dos duendes voltou-se contra o duende barbudo, que tentou fugir. Foi apanhado, morto à paulada como se fosse uma foca e espetado num pau. Dizem que era tão resiliente que as barbas lhe continuaram a crescer durante meses.

 

E foi assim que, nesse ano, pela primeira vez, o Pai Natal não visitou as casas dos meninos bem comportados durante a noite de Natal. Muitas crianças ficaram tristes e muitos pais irritados. Tendo retirado os anúncios em que usava a imagem do Pai Natal no início de Dezembro, as vendas da Coca-Cola não foram afectadas. No ano seguinte, os pais já não confiaram no Pai Natal e adquiriram brinquedos que, durante a noite, pé ante pé, foram colocar debaixo da árvore ou pendurar na chaminé, consoante a tradição de cada sítio ou país. Naturalmente, os pais mais ricos compraram presentes mais caros. Como, de forma geral, os pais preferiram manter a ilusão das crianças, continuando a falar-lhes no Pai Natal, a Coca-Cola voltou a usar a imagem dele na publicidade.

No Pólo Norte, os vestígios da aldeia do Natal desapareceram. Os duendes espalharam-se pelo planeta. Às vezes, vê-se um ou outro por aí (na Irlanda, são confundidos com leprechauns e, em Portugal, há conhecedores desta triste história que defendem que alguns comentadores televisivos de reduzida estatura ainda são «crianças do Pólo»). Quanto ao destino de Rodolfo, não existem certezas. Mas todos os anos as televisões mostram a saída do Pai Natal da Lapónia, no seu trenó puxado por renas. Se o Pai Natal é claramente um velhote com barbas e barriga postiças, as renas são verdadeiras. E a da frente parece estar sempre a caminhar com cuidado extremo. Algumas pessoas suspeitam que tal se deve ao esforço que tem de fazer para não levantar voo. Há também quem diga que, por vezes, o nariz dela brilha como se fosse uma lâmpada. Mas outras pessoas defendem que aquele estilo de passada é a forma normal das renas caminharem e que o brilho se deve apenas a gelo na ponta do nariz e a televisores mal regulados. É possível que nem a Coca-Cola conheça a verdade.

 

FIM



publicado por José António Abreu às 11:11
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Domingo, 24 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 3

Revolução

 

Foi em meados de Outubro, e o duende barbudo havia de dizer que fazia todo o sentido ter sido naquela altura. O dia amanheceu com uns amenos vinte e três graus negativos, mas soprava um vento fresco vindo de Sul (no Pólo Norte o vento vem sempre do Sul e tende a criar remoinhos) que se metia pela gola das camisolas e arrefecia o nariz e a ponta das orelhas. O Pai Natal despediu-se da Mãe Natal com um beijo e um mau pressentimento. Ela disse: «Põe o gorro e não comas porcarias.» No Pólo Norte, havia poucos legumes e vegetais, mas ela dizia sempre aquilo.

Ao chegar à fábrica, o Pai Natal descobriu que pouco mais de uma dúzia de duendes comparecera ao trabalho. Tentou parecer bem disposto, esboçou mesmo um «ho-ho-ho» que saiu pouco convincente, e, porque não valia a pena dizer-lhes para irem trabalhar (faltava muita gente essencial para operar as máquinas e, de resto, quantos brinquedos poderia fazer aquele conjunto de gatos pingados?) ficou a conversar com eles, a explicar-lhes que não podia alterar assim as regras de um momento para o outro, a pedir-lhes que o ajudassem a convencer os colegas a esperarem pelo início do ano seguinte, altura em que poderiam discutir a questão mais calmamente. A certa altura, começou a repetir-se, mas continuou a falar porque – sentiu um bocadinho de vergonha ao percebê-lo – não queria deixá-los e ficar sozinho. Por um lado, sentia-se agradecido àqueles duendes, os mais fiéis, os poucos que continuavam a confiar nele; por outro, sabia que ia pôr-se a pensar na injustiça que tudo aquilo constituía e isso só lhe faria mal.

A conversa decorria há mais de uma hora quando se ouviu o ruído da multidão a aproximar-se. O Pai Natal foi à janela e disse «Oh-oh!» (Quando dizia apenas duas vezes, era sinal de preocupação.) Lá fora havia mais de uma centena de duendes. Tinham cartazes, mas – o que era muito mais preocupante – também tinham forquilhas, paus e machados. Embora a maioria fosse do sexo masculino, viam-se igualmente várias mulheres. Aos berros, o duende barbudo exigiu que o Pai Natal fosse lá fora. O Pai Natal hesitou. Leu alguns dos cartazes: O Natal é para Todos, Pai Natal - Símbolo do Imperialismo, Brinquedos Iguais para Crianças Iguais, A Chaminé dos Ricos é Mais Larga. Abriu a porta e saiu. O duende barbudo, brandindo uma forquilha, avançou dois passos e declarou que os trabalhadores haviam decidido tomar as instalações. O Pai Natal que se afastasse ou sofreria as consequências.

O Pai Natal tentou um «Oh-oh-oh!» pausado e em voz de desafio que não lhe saiu bem. Depois acrescentou: «O que é isto? Estão a expulsar-me da minha própria empresa? Fui eu quem pôs isto tudo de pé.»

Era a resposta errada. O duende berrou: «Só conseguiu fazê-lo com a ajuda de centenas de trabalhadores a quem sempre pagou uma ninharia! E para manter um sistema injusto, que privilegia os mais ricos! Não o voltaremos a avisar: saia da frente ou afastá-lo-emos à força.»

As caras dos duendes que haviam vindo trabalhar surgiram nas janelas, o que só pareceu irritar mais o duende barbudo. «Traidores!», gritou. «Preferem ficar do lado do capital em vez de se juntarem aos vossos camaradas!» E logo a seguir, sem dar hipótese ao Pai Natal de voltar a falar: «Em frente! À carga!»

Correu para diante, um bocadinho aos tropeções porque os pés se lhe enterravam na neve, com a forquilha apontando para a frente. Durante um instante, foi o único a mover-se, mas depois todos os outros o seguiram, largando os cartazes e agitando as armas.

O Pai Natal constituía um alvo fácil. Tentou desviar-se, mas a forquilha atingiu-o no joelho esquerdo. Era uma táctica antiga dos duendes quando batalhavam seres de maiores dimensões: atingi-los nas pernas, de modo a fazê-los tombar, e depois acabar com eles. Quase resultou mais uma vez. O Pai Natal soltou um único «Oh!» abafado, rodopiou, quase caiu, mas, de forma surpreendentemente ágil para alguém tão velho e tão volumoso, conseguiu manter-se em pé e fugiu a coxear para o interior da fábrica.

O que se passou a seguir foi tão violento que mais vale não descermos a um nível de pormenor muito grande. O ataque à fábrica incluiu o arremesso de cocktails molotoff, feitos com óleo de foca, e, porque tudo isto era novidade para os duendes e alguns haviam percebido mal as instruções do duende barbudo, também de alguns pudins molotof. Com as instalações a arder, o Pai Natal e os duendes que tinham ido trabalhar foram obrigados a sair e os restantes lançaram-se a eles. O duende barbudo voltou a atacar o Pai Natal com a forquilha e desta vez espetou-lha na perna direita. O Pai Natal caiu e depois já não teve hipótese. A última coisa que disse foi um «Oh» muito baixinho e prolongado.

 

Os duendes olharam para as renas. Via-se que elas sentiam o perigo. Mantinham-se juntas, de cabeça erguida, orelhas espetadas, narinas a tremer, como que detectando o odor a sangue espalhado pela neve.

«O que lhes vamos fazer?» perguntou um dos duendes.

«Não podemos confiar nelas» disse o duende barbudo. E acrescentou: «Temos de as matar. De resto, a carne dá-nos jeito.»

Dirigiu-se para o redil. Os outros seguiram-no.

As renas pareciam atordoadas e nem tentaram voar. Limitaram-se a correr de um lado para o outro. À medida que iam sendo atingidas nas pernas por machados ou facas, caíam e eram rapidamente abatidas. Só depois de estarem todas mortas, a neve mais vermelha do que branca, é que os duendes se aperceberam de que Rodolfo não estava entre elas. Procuraram-no, mas em vão. Rodolfo, a rena preferida do Pai Natal, conseguira escapar.

Mais tarde, alguns duendes viriam a manifestar remorsos pela morte das renas, mas nenhum recusou a sua parte da carne.

 

A Mãe Natal julgava-se bondosa e, por isso, muito apreciada, mas tal não era inteiramente verdade. Bastantes duendes, especialmente do sexo feminino, achavam-na falsa, demasiado habituada aos benefícios de ser casada com o Pai Natal e nada preocupada com as dificuldades deles. Claro que apenas o diziam quando ela não estava presente, pelo que a Mãe Natal continuava a manter a ilusão. No dia da revolta, as coisas passaram-se tão depressa que ela nem chegou a perceber a verdade.

Fora às traseiras buscar um par de costelas de alce e preparava-se para as meter na frigideira previamente untada com gordura de foca quando o duende barbudo e outros dois duendes entraram sem bater à porta. A Mãe Natal achou isto muito estranho. Mas depois pensou que o Pai Natal devia ter sofrido um acidente e nem chegou a criticar o duende barbudo e os outros dois duendes pela falta de respeito. Perguntou apenas: «Aconteceu alguma coisa ao meu Nico?» (Só costumava chamar-lhe assim quando estavam sozinhos, mas naquele momento, com a preocupação, escapou-lhe.)

Ligeiramente surpreendido por ela não se ter apercebido de nada, o duende barbudo disse: «Em nome da Revolução, vimos prendê-la.»

A Mãe Natal franziu a testa. «Em nome da quê? Agora não tenho para brincadeiras, tenho que fazer o almoço.»

Voltou-se outra vez para o fogão e tratou de colocar as costeletas na frigideira. Como a gordura de alce já estava quente, começaram imediatamente a ouvir-se estalinhos.

O duende barbudo dissera aos outros que não iam magoar a Mãe Natal, apenas prendê-la num barracão até ser decidido o que fazer com ela. Dissera-o porque não queria suscitar discussões e porque lera ser esse o procedimento correcto a ter com familiares do líder deposto. Mas a verdade é que também lera que, mais tarde, eles deviam ser executados a tiro, o que o deixara com muitas dúvidas sobre a lógica do processo (infelizmente, o livro era vago neste ponto). Deixar a Mãe Natal viva significava correr o risco de que ela conseguisse manobrar os duendes que fossem entretanto perdendo o ímpeto revolucionário. E seguir o procedimento do livro criava ainda um problema logístico: por imposição da Coca-Cola, preocupada com a possibilidade de reportagens negativas, as armas de fogo verdadeiras estavam proibidas no Pólo Norte e até as de brinquedo eram fabricadas em quantidades cada vez menores.

Assim, quando a Mãe Natal lhe voltou as costas para tratar das costeletas, o duende barbudo viu uma oportunidade para acabar de imediato com o assunto. Deitou a mão ao atiçador da lenha que estava pousado ao lado do fogão (não há gás canalizado no Pólo Norte), saltou para cima de uma cadeira, e acertou com ele na cabeça da Mãe Natal. Ela ficou muito surpreendida, mas durante pouco tempo, porque ele lhe bateu mais duas vezes logo a seguir, fazendo-a cair no chão.

Então o duende barbudo saltou da cadeira e, perante o ar espantado – e até um bocadinho horrorizado  - dos outros dois duendes, disse: «Pronto. Agora a Revolução está completa. Se alguém perguntar, ela tentou fugir.»

Cheirou o ar, onde já se notava o odor das costeletas a fritar, e pensou que a Mãe Natal podia ter muitos defeitos, entre os quais uma total indiferença pelas injustiças sociais, mas que sabia cozinhar, lá isso sabia.

 

O capítulo 4 (de 4) será publicado amanhã às 11 horas e 11 minutos.



publicado por José António Abreu às 10:32
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Sábado, 23 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 2

Contestação

 

Nessa noite, o Pai Natal percorreu devagar os menos de cem metros que separavam a fábrica de brinquedos da sua casa. Estava muito preocupado. Sentia necessidade de conversar com alguém e ponderou contornar a casa e ir ter com Rodolfo ao cercado das renas. Mas acabou por entrar, deparando com a Mãe Natal a costurar mais um gorro vermelho com uma borla branca. Todos os anos obrigava o marido a levar pelo menos duas dúzias de gorros no trenó. Dizia-lhe: «Não faz mal levares a mais, faz mal é levares a menos. Já sabes que o vento te arranca sempre alguns da cabeça e que perdes mais uns quantos a descer pelas chaminés. E também sabes que, sem a cabeça protegida, te constipas imediatamente. Não queres passar outra Passagem de Ano na cama, pois não?» Ela tinha razão, mas o Pai Natal detestava vê-la fazer os gorros porque não conseguia deixar de se sentir uma criança pequena e irresponsável, que era preciso proteger.

Sentou-se ao lado dela e contou-lhe o que sucedera. A Mão Natal ouviu-o enquanto cosia a borla à ponta do gorro, e depois disse: «Não há-de ser assim tão grave.» Espetou a agulha numa almofadinha pequena que colocou dentro da caixa de costura e pousou o gorro no braço da cadeira. «O jantar é outra vez foca.»

 

Depressa começou a ficar evidente que a situação era grave. Nos cinco meses que passara no Pólo Norte, o duende barbudo conseguira arregimentar meia dúzia de duendes para as suas ideias. Falava-lhes dos direitos do proletariado (por vezes dizia «os direitos dos mais pequenos contra os grandes», o que, considerando o tamanho dos duendes, era uma forma duplamente traiçoeira de espicaçar os ânimos), da redistribuição da riqueza, do colocar o poder ao serviço do povo. O Pai Natal julgava ter sempre tratado os duendes com respeito. Desde logo, não haveria certamente muitas empresas no mundo que dessem emprego a tantas pessoas que, mesmo não o sendo, apresentavam características parecidas com as pessoas com deficiências de crescimento. Mas o duende barbudo – um tudo-nada baixo, mesmo para os padrões dos duendes, facto que, matutava por vezes o Pai Natal, talvez não se encontrasse totalmente desligado do fervor com que defendia as suas ideias políticas – dizia-lhes que reparassem como eram explorados; como, nas semanas anteriores ao Natal, as horas extraordinárias eram numerosas e mal pagas; como as refeições eram pouco variadas e nem sequer incluíam Coca-Cola, apesar do contrato chorudo que o Pai Natal tinha com a empresa; como não dispunham de seguro de saúde nem de plano de poupança para a reforma; como certas máquinas e utensílios – martelos, serrotes, baldes, pincéis – eram comprados sem levar em atenção o tamanho dos duendes. Enfim, enchia-lhes a cabeça com ideias que, para muitos ali no Pólo Norte, constituíam inteira novidade. E resultava. À noite, em casa, os casais de duendes discutiam-nas, olhando para os filhos pequenos – mesmo muito, muito pequenos -, deitados nos berços ou brincando no chão. Perguntavam-se o que aconteceria se o Natal passasse de moda ou o Pai Natal decidisse reformar-se. No dia seguinte, vinham ter com ele e exigiam escolas e universidades para os filhos e planos de poupança reforma para eles próprios.

Mas se os meses anteriores à conversa entre o Pai Natal e o duende barbudo haviam sido difíceis, tudo se complicou muito mais logo a seguir.

Três ou quatro dias após a conversa, o Pai Natal soube que o duende barbudo convocara uma reunião da comissão de trabalhadores e conseguira convencer a maioria dos duendes que faziam parte dela a exigir alterações na política da empresa. O Pai Natal não ficou surpreendido; o duende barbudo soubera rodear-se de gente que não lhe faria frente e na comissão de trabalhadores estavam apenas duendes facilmente influenciáveis e não muito espertos. A comissão exigiu uma reunião com o Pai Natal, mas esta até correu bem ao Pai Natal, que teve apenas de prometer estudar formas de aumentar ligeiramente («dentro dos prazos e do orçamento disponíveis») o número de brinquedos mais caros e distribuir esse acréscimo pelas crianças mais pobres. O duende barbudo não gostou nada do resultado da reunião e, nos dias seguintes, tratou de convencer toda a gente de que as promessas vagas do Pai Natal eram insuficientes. Uma semana depois, o Pai Natal recebeu um pré-aviso de greve. Ainda não se entrara no período de trabalho mais crítico do ano e o Pai Natal, depois de procurar nos livros o que era suposto dizer naquelas ocasiões (era inexperiente no assunto, uma vez que se tratava da primeira greve na história da fábrica de brinquedos do Pólo Norte), suportou a paragem com declarações de respeito pelos direitos dos trabalhadores. O problema é que a esta primeira greve seguiu-se outra, que até incluiu uma manifestação em frente à fábrica, com gritos de ordem e arremesso de pedaços de gelo e de bolas de neve (no Pólo Norte é difícil arranjar pedras). No dia seguinte, alguém fez explodir um pequeno armazém cheio de carros de bombeiros que haviam sobrado do ano anterior. O Pai Natal estava convencido de que o bombista fora o duende barbudo, mas não tinha provas. As opiniões extremaram-se e o Pai Natal tentou aproveitar as reticências de alguns duendes, que não aprovavam o uso da violência, mesmo que ela fosse apenas dirigida contra sobras de inventário. Não resultou. O duende barbudo foi-os convencendo de que o Pai Natal estava a ser hipócrita e quase todos acabaram do lado dele.

E depois veio o dia fatídico.

 

O capítulo 3 (de 4) será publicado amanhã às 10 horas e 32 minutos.



publicado por José António Abreu às 10:56
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Sexta-feira, 22 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 1

Injustiça

 

Como seria de esperar, foi o duende barbudo admitido cinco meses antes e que rapidamente exigira a formação de uma comissão de trabalhadores quem primeiro se apercebeu do facto ao examinar os planos de produção. Bateu à porta do gabinete do Pai Natal e perguntou-lhe sem rodeios: «Por que é que as crianças ricas recebem brinquedos mais caros? Não deviam ser todos do mesmo preço? Ou até ao contrário: os brinquedos melhores para as crianças pobres, que as ricas já têm suficientes?»

Os olhos do Pai Natal, sentado atrás da grande secretária onde, por esta altura do ano, se empilhavam sempre enormes pilhas de papel com nomes, moradas, relatórios de comportamento e listas de brinquedos disponíveis, conseguiam ainda assim estar a um nível ligeiramente mais elevado do que os do duende barbudo, que permanecia em pé entre a secretária e a porta. Devido aos montes de papel, o Pai Natal quase nem lhe via a barba, parecida com a dele próprio mas totalmente preta. No entanto, via-lhe os olhos, e estes mostravam uma firmeza tão grande que o Pai Natal se sentiu de repente muito pequenino – mais pequeno do que o duende barbudo. Consciente de que chegara o momento, usou a resposta preparada durante anos: «Tentamos dar às crianças os brinquedos que elas pedem. É esse o nosso compromisso e é isso que faz a felicidade delas. É verdade que as crianças ricas pedem coisas mais caras, mas deveríamos desiludi-las? São apenas crianças.»

O Pai Natal testara aquele argumento na Mãe Natal várias vezes e ela sempre parecera achá-lo bastante sólido. Mais importante: experimentara-o também em Rodolfo, cujo nariz se iluminara por um instante, sinal inequívoco de admiração ou de alegria (ou de constipação, mas o Pai Natal escolhera sempre momentos em que Rodolfo andava de boa saúde). O duende barbudo, todavia, não pareceu impressionado (o Pai Natal sabia que não o devia ter contratado; sentira-o imediatamente após tê-lo feito) e disse que aquele não era um bom argumento; que, evidentemente, as crianças mais pobres pediam coisas mais baratas porque era aquilo que conheciam e que imaginavam ao seu alcance; que, ao fazer a vontade às crianças mais ricas, estas habituavam-se a ter todos os seus desejos satisfeitos e a conseguirem sempre tudo sem esforço, o que as transformava em adultos sem respeito pelos outros; que, sendo o Natal uma época do ano em que se procura transmitir um imagem de respeito, igualdade e paz, e procurando o Pai Natal transformar-se no símbolo desses ideais – aqui o duende acrescentou qualquer coisa sobre «o que, pelo menos numa fase intermédia, talvez seja útil, porque sempre retira protagonismo à Igreja» –, devia procurar corrigir as injustiças em vez de as reforçar; finalmente, que os tempos haviam mudado e que já era altura de essas mudanças chegarem ao Pólo Norte.

Enquanto o duende barbudo falava (o que sucedeu durante bastante tempo, embora tudo o que ele disse se encontre no parágrafo anterior), o Pai Natal procurava descobrir um modo de lhe dizer que não iria alterar regras que vinham funcionando tão bem há já dezenas de anos só para satisfazer os desejos revolucionários de um duende que – o Pai Natal já o percebera – gostava mais de falar do que de trabalhar. Incapaz de arranjar um argumento que fosse simultaneamente firme e amigável, permaneceu calado, olhando o duende barbudo nos olhos. Este acabou por ser forçado a perguntar: «Então? Vai alterar as regras este ano?»

«Não posso. É demasiado tarde.»

«Não é demasiado tarde. Os brinquedos ainda estão por fabricar.»

«Mas as encomendas de material têm de seguir nos próximos dias. Não há tempo para as alterar.»

«Não é preciso alterá-las. Quando muito, apenas corrigir quantidades. E depois refazer as listas de entrega, fazendo corresponder os brinquedos mais caros às crianças mais pobres.»

«Como se isso fosse fácil… Os brinquedos mais caros demoram mais tempo a produzir, até ao Natal já não há tempo. E também são mais caros. Não temos orçamento para alterar assim as quantidades.»

O duende barbudo ficou um instante em silêncio. Depois apontou para um cartaz na parede.

«Isso são tudo desculpas. O que você não quer é chatear a Coca-Cola. A sua fama disparou quando eles o começaram a apoiar. Quanto é que lhe pagam por ano?»

O Pai Natal sabia que estava em terreno cada vez mais perigoso. Para gente como o duende barbudo, a Coca-Cola era um símbolo de tudo o que ia mal no mundo.

«Isso não vem ao caso. A Coca-Cola é o nosso principal financiador, sim, e tem o direito de usar a nossa imagem. Mas isso não quer dizer que mandem em nós.»

Não era inteiramente verdade. O contrato estabelecia regras; qualquer alteração nas mesmas tinha de ser discutida entre ambas as partes e a Coca-Cola dispunha de um número incrivelmente elevado de advogados, que arranjavam sempre imensos problemas.

O duende barbudo disse: «Não acredito em si. Mas também não interessa. Vou convocar uma reunião da comissão de trabalhadores. E pode ter a certeza de que se tomarão medidas para alterar esta injustiça.»

Depois virou costas e saiu do gabinete. Foi o princípio do fim.

 

O capítulo 2 (de 4) será publicado amanhã às 10 horas e 56 minutos.



publicado por José António Abreu às 11:22
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Segunda-feira, 18 de Abril de 2016
Sobrepressão
Tem vindo a surgir aqui mais um conto muito desagradável.

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publicado por José António Abreu às 20:17
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Sábado, 23 de Janeiro de 2016
Ficção com voto nulo (mas útil)

 

Há aqui um conto com espírito eleitoral. Quer dizer, mais ou menos. Se não me der a preguiça, talvez origine uma série. Mas provavelmente dará. E portanto não.

 


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publicado por José António Abreu às 16:52
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Quinta-feira, 31 de Dezembro de 2015
Ano Novo
Há aqui um conto de Ano Novo. Bom 2016.

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publicado por José António Abreu às 16:52
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Sábado, 4 de Julho de 2015
Ide antes passear à beira-mar ou num jardim
Há aqui um conto novo. Mas é demasiado triste.

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publicado por José António Abreu às 14:56
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Segunda-feira, 13 de Abril de 2015
Viajante moderno

Nas deslocações frequentes e muitas vezes prolongadas que fazia a países em quase todos os continentes, nunca levava bagagem. Tinha tudo na nuvem.



publicado por José António Abreu às 20:42
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Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014
Conto de Ano Novo

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Os quatro homens e as duas mulheres deslizaram suavemente uns até junto dos outros e abraçaram-se. Um dos americanos mantinha o olhar no painel de instrumentos.

«OK. Já chega. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Os dois americanos trocaram um high-five. Os dois russos bateram no ombro um do outro e abraçaram a colega russa. A italiana, mais efusiva, fez questão de abraçar toda a gente.

«OK. Já chega. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Excepto por uns quantos sorrisos, ninguém se manifestou. Um dos russos perguntou: «Dá tempo para abrir a garrafa?»

O americano que vigiava o painel abanou a cabeça. «Não. Ainda estamos em 2015 mas não vai durar.»

Ficaram todos em silêncio durante algum tempo.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Oh, que se lixe. Feliz Ano Novo.»

Ninguém se mexeu. Ouviu-se uma voz: «Alfa, tudo bem?»

O americano respondeu: «Tudo normal.» Depois acrescentou: «Da próxima vez abrimos a garrafa.»

Passaram alguns minutos. A italiana disse qualquer coisa sobre uma tradição milanesa. A russa comentou que em Vozdvizhenka os costumes eram mais asiáticos do que europeus. Um dos americanos perguntou: «Isso é mesmo ao lado da Coreia do Norte, não é? Como é que eles celebram a passagem do ano?» A russa não sabia. O outro americano disse: «Vêem The Interview na internet.» Os americanos riram, a italiana também.

Instalou-se o silêncio. Apesar do espaço ser exíguo, os três russos formavam um grupo ligeiramente à parte. Nas últimas semanas, os dois homens, pilotos da força aérea, vinham-se perguntando qual a forma adequada de lidar com os americanos, agora que os problemas na Ucrânia haviam levado não apenas a um arrefecimento nas relações entre os dois países como a uma crise económica na Rússia. A colega, engenheira, tendia a contemporizar. Dizia que a política não era para ali chamada.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«Feliz Ano Novo. Acho que podemos abrir a garrafa.»

O outro americano disse: «Mas a passagem ainda não é definitiva.»

Um dos russos disse: «Para a Rússia, é.»

O americano que anunciava as passagens replicou: «Essa é uma posição egoísta. Se era para ser assim, mais valia não nos termos reunido.»

O outro americano resmungou entre dentes: «E ainda faltam cinco meses.»

A italiana tentou contemporizar: «Alora, calma.»

O primeiro americano disse: «Podes falar. Itália também está quase. Aliás, já está.»

A italiana sorriu e levantou os braços, numa celebração irónica. O americano cedeu e deixou escapar um sorriso.

O russo que falara antes disse: «Estamos a demorar demasiado.»

A russa aproveitou: «Pois estamos. Fica para a próxima.»

«дерьмо», resmungou o colega.

O silêncio caiu de novo. A italiana teve a impressão de que passavam horas sem ninguém o voltar a quebrar. Evidentemente, tratava-se apenas de uma sensação.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«2015 outra vez.»

O russo mais impaciente pegou na garrafa.

«Cuidado com a rolha. E não deixes sair champanhe. Parece que no ano passado deu merda.»

A italiana sorriu. «Deve ser giro beber champanhe em suspensão no ar.»

«Pois. O problema é quando atinge os instrumentos.»

Tudo correu bem e o champanhe pareceu suavizar o ambiente - de tal modo que, bastante mais tarde, o americano que anunciava as passagens admitiu: «Raios, distraí-me. Estamos outra vez em 2014.»

Ninguém lhe ligou.

 

«2015.»

«Oh, cala-te.»

 

 

A Estação Espacial Internacional tem a bordo seis astronautas: dois russos, uma russa, dois americanos, uma italiana. Demora 92,74 minutos a dar a volta ao planeta, rodando com uma inclinação orbital de 51,65º. Como o movimento rotacional da Terra é bastante mais lento, na noite de passagem de ano a Estação vai ficando cada vez mais tempo em fusos horários que já se encontram no ano que entra, antes de voltar a fusos ainda no ano que sai. Isto se não me enganei na lógica da coisa. Em qualquer dos casos: Feliz Ano Novo, Happy New Year, Felice Anno Nuovo e С Новым годом.


publicado por José António Abreu às 10:10
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Domingo, 30 de Dezembro de 2012
Um facto

«Quero confessar-me, senhor padre… Não tenho a certeza de ser capaz… Poderá, senhor padre…? Tenho um marido…»

…?

«Peço desculpa? Oh, não, de forma nenhuma. Claro que somos casados. O órgão tocava e eu usava um véu branco, comprido. Havia incenso e lírios. E eu disse ‘sim’, e toda a gente estava feliz, e a mamã chorava e…»

…?

«Só um momento. Já lá chego. Eu era pobre. Tinha olhos grandes e tranças compridas. Ele chegou num carro. Era grande e tão forte. Foi comigo até ao cimo de uma colina e, na sua voz clara, forte, falou acerca do futuro. Tinha tantos planos. Eu brincava com os botões reluzentes do seu uniforme. Eu gostava de lhes tocar com a minha face e de me ver reflectida neles como num espelho.»

…?

«Sim, sim, senhor padre. Claro que sabia que era vaidade. Peço perdão. E então casámos.»

…?

«Não, de maneira nenhuma. Ele não mudou depois do casamento. Ele sempre foi firme mas também muito atencioso. Claro, tivemos os nossos desentendimentos mas nada de grave. Estávamos quase sempre juntos, ele praticamente nunca me deixava.»

…?

«Mas, senhor padre, como pode dizer isso? Francamente… Sim, ouvi falar disso mas ele não é assim. Nunca. De maneira nenhuma.»

…?

«Talvez. Não sei. Mas quem se veio confessar sou eu, não é ele. Eu é que estou aqui a precisar de ajuda… Preciso do seu conselho… Preciso de con… solo… Não, não estou a chorar. Agarre-me na mão, senhor padre.»

…?

«Sim. Claro que me casei com ele por estar apaixonada. Onde é que errei? Pergunte a qualquer pessoa sobre ele. Todos lhe dirão como é respeitado, capaz, digno.»

…?

«Perdão?»

…?

«Não, nunca. A sério, nunca. Nunca lhe fui infiel, nem sequer nos meus pensamentos. Tenho sido uma mulher fiel. Acredita-me, senhor padre?»

…?

«Não.»

…?

«Não.»

…?

«Mais uma vez, não.»

…?

«Então a que propósito vem isto? Padre, estou aqui… Não, é impossível acreditar. Depois de sete anos a viver com ele…No Verão passado fomos de férias. Eu convenci-o a descansar um pouco. Ele tem um emprego importante, muito trabalho, enorme responsabilidade, o país inteiro… Uma manhã, ao pequeno-almoço, estávamos sentados um em frente do outro. Atrás dele havia uma janela aberta. Através dela eu conseguia ver o jardim, árvores… O papel de parede da sala tinha um padrão de florzinhas, dezenas de milhar de florzinhas cor-de-rosa. Quando ele levantou o copo eu olhei para ele. Não havia nenhuma intenção especial no meu olhar. E então apercebi-me…»

…?

«O que vi? Como foi possível que, durante sete anos, tenha partilhado a mesa e a cama com ele e só agora… Aconselhe-me, senhor padre, porque se é um pecado…»

…?

«Foi só nessa altura que percebi que ele era feito de plasticina.»

…?

«Sim. Todo ele. É todo artificial. Inclinei-me para ver. Os meus olhos deviam estar muito abertos de espanto porque ele pousou o copo e perguntou calmamente: ‘O que se passa?’ Não, desta vez não estou enganada. Ele sempre foi feito de plasticina. Todo ele! Como, oh, como é que nunca reparara antes? E agora o que vai acontecer?»

…?

«Uma anulação do casamento? Mas, senhor padre, isso é impossível – temos filhos!»

 

Sławomir Mrożek, conto Um Facto, inserido na colectânea O Elefante.
Traduzido por mim, com base na versão inglesa da Penguin (tradução a partir do polaco por Konrad Syrop).


publicado por José António Abreu às 01:15
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Domingo, 25 de Dezembro de 2011
Primeiro balanço

«Então, a noite de Natal foi boa?»

«O normal. Mas o meu Pai Natal não passou.»

«A sério? Começamos bem…»

«Pois.»

«O que é que lhe aconteceu?»

«Morreu. Ataque cardíaco ontem ao fim da tarde. Não fomos avisados.»

«Caraças. Enfim, menos mal. Sempre é uma boa razão. Mas é uma merda que o plano de contingência não tenha funcionado.»

«Não fomos avisados. Tínhamos uns tipos novos prontos para avançar.»

«Não funcionou. Não fomos avisados, não funcionou. Bom, vamos lá. Qual é a taxa, este ano?»

«Setenta e oito vírgula sete por cento.»

«Merda, é menos que o ano passado. Estamos a falhar mais.»

«O pessoal é cada vez pior. E também é verdade que lhes aumentámos o número de casas.»

«Foda-se, antes até tinham tempo para ir para ter sexo com as mães depois de deixarem os presentes aos filhos. Não estamos em tempo disso.»

«Aumentava a natalidade…»

«Não é essa a nossa função. Mostra lá os números.»

«Das residências previstas cobrimos setenta e oito vírgula três por cento, como te disse. Para já, temos um vírgula oito por cento de presentes entregues incorrectamente.»

«Alguns casos graves?»

«Coisas de miúdas entregues a rapazes, um sistema de jogos com óculos 3D entregue a um miúdo cego, trinta e seis pares de luvas oferecidos a crianças sem mãos e, pior (mas acontece todos os anos), dois mil cento e dois pares de meias deixados a miúdos sem pernas. Globalmente, não é mau.»

«Pois, suponho que não.»

«O pior…»

«Sim?»

«Parece que houve confusão com dois lotes de brinquedos.»

«Pronto, lá vamos nós. Então?

«Num dos casos é mais ou menos o costume: anjinhos que vinham com cruzes suásticas e acabámos por deixar seguir.»

«Merda. E o outro?»

«Tudo indica que oferecemos vibradores e outros brinquedos sexuais a uns milhares de miúdas que ainda nem dez anos têm.»

«Estás a gozar.»

«As caixas vinham misturadas com as dos brinquedos de cozinha.»

«Merda. Merda, merda, merda. A fazer asneiras destas como é que podemos esperar manter os patrocínios? A Coca-Cola detesta confusões, pá. Ainda por cima, não é a primeira vez. Lembras-te do ano em que decidiram oferecer às miúdas uma boneca com as cores e o logótipo deles, para as levar a beber tanta Coca-Cola como os rapazes e que alguém decidiu escrever nas caixas para os mercados hispânicos – bem gostava de descobrir o filho da puta mas a verdade é que também não reparámos antes de as distribuirmos – Cocaína, la Heroína de Coca-Cola? Nem sei como escapámos de um processo. Será que não é propositado, pá? A Pepsi ou os islâmicos….»

«Desta vez não me parece. Foi só porque as caixas vinham misturadas e ninguém percebeu que king size battery operated vibrating dildo não se referia a uma varinha mágica.»

«Varinha mágica… pelo amor de Deus. Bom, pode ser que as mães até fiquem satisfeitas e não nos chateiem muito. E o resto?»

«O resto correu bem. Tirando o facto de termos perdido mais Pais Natais.»

«Diz-me.»

«Treze caíram do trenó em pleno voo, vinte e seis morreram asfixiados em lareiras acesas, quatro foram mortos pelas renas (aparentemente revoltando-se na sequência de maus tratos – é capaz de haver um caso com contornos sexuais), sete foram atropelados por aviões, um foi atropelado por um comboio, seis…»

«Um comboio

«Sabes como eles às vezes cedem aos pedidos das renas e pousam em cima dos vagões para que elas descansem um pouco entre zonas de distribuição? Aliás, temos quase sempre uns acidentes devido a túneis. Este ano foram, hmmm, quarenta e nove, mas só oito resultaram em morte do Pai Natal.»

«Oito. Impressionante..»

«Não é muito, considerando a nossa abrangência geográfica. Pelo menos foi melhor do que no ano passado.»

«Ok, está bem, mas e o atropelado?»

«Foi em Portugal. Os comboios estavam parados por causa de uma greve e o gajo decidiu seguir pelos trilhos. Pelos vistos, a adesão não era de cem por cento.»

«Filhos da puta dos latinos, nunca levam as coisas a sério. Continua.»

«Seis despenharam-se por causa de tempestades, três acertaram em campanários e similares, catorze foram mortos a tiro (cinco dos quais no Texas) e ainda não temos informação de cento e dois.»

«O nosso prémio do seguro vai disparar.»

«Não são piores resultados do que no ano passado.»

«E o trabalho que foi conseguir a renovação no ano passado… Mas enfim, estamos cá para isso, não é? E acidentes não mortais?»

«Er, bom, o panorama não é melhor. No total, temos quase cinco mil acidentes. A maioria são coisas ligeiras como fracturas de dedos e braços na sequência de quedas, queimaduras tanto por causa das lareiras como por causa do frio (há pelo menos um Pai Natal que vai perder o nariz) e entorses ao descer do trenó. Mas também há situações mais graves como traumatismos cranianos, fracturas expostas e dois casos previsíveis de paraplegia.»

«Foda-se.»

«Pois. E, já no campo das doenças, ainda temos umas centenas de gripes e pelo menos trinta pneumonias.»

«Mais nada?»

«Há os desaparecidos mas já te falei deles. Cento e dois, até ao momento em que saí lá de baixo.»

«Alguns casos especiais?»

«A maioria será desvio de material, como de costume. Vamos descobri-los para aí no Rio de Janeiro, tentando vender barretes de lã e Ferreros Rocher na praia de Ipanema. Mas desconfiamos que pelo menos vinte foram presos. Faziam a distribuição em países de maioria não-cristã: Irão, Iémen, Sudão…»

«Então podes acrescentá-los às vítimas mortais.»

«Talvez não. Já temos trocado alguns.»

«Eu sei. Custa-nos um balúrdio em assinaturas da Hustler. E as renas?»

«Cerca de onze mil baixas. Mais dois por cento que no ano passado.»

«Se o Greenpeace sabe, estamos fodidos. Bom, mais alguma coisa?»

«Nada de… Desculpa, é o meu. Deixei-o ligado para o caso de chegarem informações importantes.»

«Atende.»

«Sim?... Eu mesmo… Diga… Não! Mas… OK, deixe lá. Obrigado.»

«O que foi agora?»

«Podemos ter um problema diplomático.»

«Conta.»

«Um dos desaparecidos…»

«Sim?»

«Passou-se. Está no topo do minarete da mesquita de Meca a gritar ‘ho-ho-ho’.»

«Merda.»

«E não é tudo.»

«Então?»

«Além de ‘ho-ho-ho’, grita ‘chamem-me Maomé’.»

«Merda, merda.»

«E…»

«Ainda há mais?»

«Tirando as barbas e o barrete, está nu.»

«Merda, merda, merda.»

«E...»

«Foda-se, ainda há mais?»

«Está a beber uma Coca-Cola



publicado por José António Abreu às 15:48
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Sábado, 21 de Maio de 2011
O poder das personagens

Logo no início (sabia perfeitamente que os inícios dos livros são fundamentais), pensara escrever: «Tinha cabelo preto comprido e vestia uma saia branca curta» mas enganou-se e escreveu: «Tinha cabelo branco curto e vestia uma saia preta comprida». Depois de o acabar, espantava-se que o livro tivesse ficado tão diferente do que imaginara.



publicado por José António Abreu às 22:28
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Sexta-feira, 31 de Dezembro de 2010
23:59:59

Às 23:59:59 do dia 31 de Dezembro todos os relógios pararam na Nova Zelândia, Fiji, Kiribati e outras ilhas do Pacífico. As pessoas, que já levantavam os braços para festejar a passagem do ano, ficaram imóveis nas ruas, nos restaurantes e nas casas, sem saber o que fazer. Exactamente duas horas mais tarde aconteceu o mesmo em Sydney e noutras cidades da costa Leste australiana. Depois foi a vez das cidades da Austrália central e do Japão. Cinco horas após o início do fenómeno, os relógios pararam em Perth, em Hong Kong, em Xangai, em Pequim. Entretanto, já os governos estavam reunidos e as forças militares em alerta máximo. Quando, outras cinco horas decorridas (dez desde o momento em que os primeiros relógios haviam parado), os ponteiros se aproximaram da meia-noite em Moscovo, São Petersburgo, Bagdade e Nairobi, as pessoas continuavam a sair para as ruas mas já mantinham uma atitude de expectativa. O salto das 23:59:58 para as 23:59:59 foi o último que os ponteiros dos segundos efectuaram. O mesmo se passou sessenta minutos depois em Helsínquia, Bucareste, Jerusalém, Damasco, Cairo, Maputo, Pretória. Nas cidades e aldeias, as pessoas continuavam a sair para as ruas mas faziam-no agora por curiosidade e medo, para estarem juntas de outras quando os relógios parassem, e não já para festejarem a passagem do ano. Especialistas avançavam teorias nas rádios e televisões. Questões climáticas, excesso de magnetismo, uma arma desconhecida. As comunicações dependentes de sistemas de contagem do tempo bloqueavam. Deixava de se conseguir telefonar ou navegar na internet. Enquanto, com a inexorabilidade de um relógio em perfeito funcionamento, o tempo deixava de ser contado na Europa e em África, muitos olhos voltavam-se, desconfiados, para os Estados Unidos. O presidente americano fez uma declaração ao país e ao mundo garantindo que o seu país nada tinha a ver com o assunto. Por todo o lado, cientistas verificavam os mecanismos dos principais relógios, faziam medições de tudo aquilo em que conseguiam pensar (da intensidade do campo magnético, dos níveis de radioactividade, do grau de vibração da superfície terrestre) e vigiavam o cosmos, pois era opinião de muita gente que um tal acontecimento só podia ter origem no espaço: a Terra, afirmavam vozes apocalípticas um pouco por todo o planeta, estava prestes a ser atacada. Questionavam-se os fabricantes de relógios mas estes não tinham respostas: a Suíça era um país em estado de choque. Começando por cidades como o Rio de Janeiro, Brasília e Montevideu, também no continente americano os relógios foram deixando de funcionar às 23:59:59. Buenos Aires, Recife, Salvador. Manaus, La Paz, Halifax. Toronto, Nova Iorque, Quito. Manágua, Cidade do México, Minneapolis. A última região do continente a ser afectada foi o Alaska, com os relógios em Anchorage parando exactamente vinte e duas horas após o mesmo ter sucedido aos relógios de Auckland. Uma hora mais tarde encravaram os últimos relógios ainda funcionais do planeta, em arquipélagos do Pacífico como a Polinésia Francesa e Samoa. Começou então um período em que não era possível medir o tempo pelos meios habituais pois todos os relógios, independentemente do tipo de mecanismo que os fazia operar (mecânico, de quartzo, atómico, de água) haviam deixado de funcionar. Passou-se algum tempo que, pela primeira vez em séculos, não foi dividido em horas, minutos e segundos. A noite caíra de novo na Nova Zelândia onde, com excepção das crianças, ainda ninguém pregara olho. As pessoas já não estavam nas ruas mas reunidas em casa ou em bares, defronte de televisores. Discutia-se o que poderia estar por trás do acontecimento mas também muitos outros assuntos: dever-se-ia ir trabalhar no dia seguinte? Como acordar na altura certa? De que forma seriam garantidos os horários? Como marcar reuniões? E então, de repente, sem aviso nem espalhafato, os relógios recomeçaram a funcionar. Clique. Clique. Passaram para as 00:00:00 e depois para as 00:00:01 e depois para as 00:00:02 e não mais pararam. As pessoas entreolharam-se e muitas voltaram a sair para a rua e ergueram os olhos para o céu. Tudo parecia normal: a noite estava limpa, com o firmamento coberto de estrelas e a lua a brilhar. Progressivamente, com as mesmas diferenças horárias que se tinham verificado ao pararem, os relógios voltaram a trabalhar em todos os pontos da Terra. Na televisão, especialistas não se sabe bem em que assunto diziam que os relógios haviam estado parados exactamente vinte e quatro horas. Por razões que se desconhecem, nesse ano o tempo recusou comemorar a passagem do ano e saltou por cima do dia 1 de Janeiro. Ninguém sabe se acontecerá novamente.

 

À partida, nada indica que seja hoje. Mas às 23:59:59, milhares de milhões de pessoas irão suster a respiração e apenas exalarão quando os ponteiros dos relógios saltarem para a meia-noite.



publicado por José António Abreu às 00:00
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Sábado, 25 de Dezembro de 2010
Conto de Natal

Era de prever. Levava-a fisgada, claro. Logo que a sentaram ao colo do Pai Natal, na praça do Centro Comercial, olhou para cima, para a imensa barba branca, e franziu ligeiramente os olhos, numa expressão que o pai conhecia bem: usava-a sempre que um plano dava certo. O Pai Natal fez-lhe uma pergunta mas, em vez de responder, ela estendeu a mão, agarrou a barba e puxou com força. A barba afastou-se cerca de dez centímetros da cara do Pai Natal. Ela sorriu em triunfo. As crianças que aguardavam vez gritaram. O Pai Natal sobressaltou-se e quase a deixou cair. Isto fez com que ela largasse a barba que, pelo efeito do elástico, embateu com força na cara espantada do Pai Natal. Ele soltou um grito estranhamente agudo e tê-la-ia deixado cair dos joelhos se o pai não a estivesse já a agarrar. Quando a levou dali, ela não parava de dizer: «Não é verdadeira. É falsa. O Pai Natal é falso.»

Soube há pouco da história, durante o almoço de Natal. Fui ter com ela. Sentei-a no sofá a meu lado. «Tenho que contar-te um segredo.» E disse-lhe:

«Foi no ano passado. Estava tudo pronto no Pólo Norte: os presentes embrulhados e metidos no saco; o trenó com patins novos e a revisão dos cinco milhões de quilómetros efectuada; as renas bem alimentadas, bem penteadas e em excelente forma física: tinham andado a ser treinadas durante meses, fazendo provas de força contra ursos polares e voando até mais de um quilómetro de altura por várias vezes; as coordenadas GPS (é uma maneira de se encontrarem os sítios) de todas as casas onde residem crianças cristãs, crianças que, mesmo não sendo cristãs foram muito bonzinhas durante o ano ou podem vir a ser cristãs no futuro (o aumento do número de casamentos entre pessoas de diferentes religiões dificultou muito o trabalho de selecção do Pai Natal nos últimos anos) e crianças que, apesar de se terem portado mal, são familiares dos principais financiadores do Pai Natal, introduzidas no sistema de navegação do trenó, com a rota definida de modo a aproveitar os ventos e a evitar as tempestades. Tudo pronto, apesar das dificuldades encontradas durante o ano anterior.»

«Dificudades?»

«Sim. Muitas dificuldades. Tudo começou com os problemas de financiamento – quer dizer, era muito difícil arranjar dinheiro para fabricar os brinquedos. As empresas que costumavam dar dinheiro à empresa do Pai Natal, e embora os seus chefes tenham pedido muitas desculpas, tinham cortado nas doações. O aumento do preço dos combustíveis tinha levado a uma enorme subida da factura de energia, que é uma das fatias maiores dos custos de operar a partir do Pólo Norte. Tornou-se difícil pedir dinheiro emprestado aos bancos porque os spreads (sabes o que são spreads? Não importa, é uma coisa má que os adultos têm de suportar quando pedem dinheiro emprestado) eram cada vez mais elevados. A situação agravou-se ainda mais quando duas das três agências internacionais de notação (não posso evitar as palavras difíceis, querida, mas vais ver que no fim percebes) tinham baixado o rating da empresa de fabrico e distribuição de brinquedos do Pai Natal, por considerarem que uma empresa com problemas de localização e que não cobrava dinheiro pelos produtos que fazia estava especialmente mal preparada para enfrentar a crise. Em Março, o Pai Natal foi forçado ao despedimento colectivo de dois terços dos duendes, que ficaram muito zangados até porque não há mais empresas no Pólo Norte nem sistemas de segurança social.»

«Então o Pai Natal é mau?»

«Não, as pessoas às vezes têm que fazer coisas que parecem más mas é por um bom motivo. Se ele não fizesse isso todos ficariam no desemprego e os meninos do mundo inteiro não recebiam os presentes de Natal.»

«Ah.»

«Em Abril, o fabrico dos brinquedos foi transferido para a China, no que se revelou um terrível pesadelo logístico. O sistema de qualidade da empresa do Pai Natal obriga a que nenhum brinquedo para crianças com menos de três anos – tu já tens mais, não já? Já és uma menina crescida –, nenhum brinquedo, dizia eu, pode ter peças que possam ser engolidas e as tintas usadas em todos os brinquedos não podem fazer mal à saúde e, se possível, até devem ser gostosas e, assim, de modo a garantir a qualidade da produção, os duendes restantes eram forçados a muitas viagens à China, onde alguns desapareceram, não se sabe se por terem-se apaixonado por meninas orientais, acontecimento muito comum devido – é o que se pensa – a serem da mesma altura, se por terem sido mortos e servidos como pratos afrodisíacos em restaurantes de Pequim.»

«O que é afrosídiacos?»

«É a mesma coisa que ‘muito bom’. São pratos que dão um grande prazer durante muito tempo.»

«Como chocolate?»

«Exactamente. Como chocolate.»

«Ah. Mas então os chineses comem duendes?»

«Não se tem a certeza.»

«São maus?»

«Os chineses?»

«Sim.»

«Não. Quer dizer, mais ou menos. Mas podes estar descansada que eles não comem criancinhas. Isso era mais os russos. Acho eu.»

«Ahn?»

«Nada, esquece. Vou continuar a história, está bem?»

«Está.»

«O desaparecimento de tantos duendes deixou ainda mais trabalho para os restantes. Alguns exigiram subsídios de deslocação, que o Pai Natal foi obrigado a recusar porque as despesas com viagens tinham quadruplicado em relação aos anos anteriores e ele estava a tentar poupar para outra coisa: desde que tivera de dispensar o pessoal doméstico, a Mãe Natal exigia uma série de electrodomésticos para lhe facilitar a vida em casa e ameaçava passar a dormir noutro quarto, que era uma coisa que o Pai Natal não queria porque depois a rena Rodolfo ia querer dormir com o Pai Natal e o Pai Natal sabia que ela ressonava.»

«Como o papá?»

«Er, sim, provavelmente.»

«A mãe também diz que vai dormir para outro quarto.»

«Er, ok. Vamos continuar, está bem?»

«Está.»

«As despesas com viagens tinham então aumentado imenso, até porque não há companhias de aviação low cost (são as que fazem preços mais baratos) a operar no Pólo Norte. O único ponto positivo era que, com as milhas acumuladas, o Pai Natal esperava poder oferecer à Mãe Natal uma viagem de sonho às Maldivas (que são umas ilhas com praias bonitas) depois do Natal. A situação estava neste ponto quando os brinquedos chegaram da China e o Pai Natal teve mais uma péssima surpresa: o papel em que vinham embrulhados tinha a imagem de pequenos Confúcios, que é como se fosse um Deus chinês, em vez de Meninos Jesus. Foi preciso desembrulhar todas as prendas e voltar a embrulhá-las com um papel mais adequado: como já era Novembro e não havia dinheiro, usou-se papel de patrocinadores, lojas como a Toys ‘r’ Us e a Worten ou empresas como a Coca-Cola, que sempre manteve uma excelente relação com o Pai Natal. Para que tudo estivesse pronto a tempo, foi preciso readmitir parte dos duendes despedidos. Fizeram-se contratos com a duração de apenas um mês mas foi preciso pagar-lhes um valor muito elevado, quase o triplo do que eles ganhavam antes.»

«Bem feito.»

«Exacto. Chama-se a isto ‘economia de mercado’. Em meados de Dezembro chegou a última crise: a Mãe Natal, ainda sem os electrodomésticos que desejava, recusou-se a preparar a roupa vermelha e branca do Pai Natal. ‘Não a vou lavar à mão e secar à lareira’, disse. O Pai Natal contactou novamente as tais lojas de patrocinadores mas havia tempestades fortes nos céus da Europa e da América do Norte e era muito difícil fazer os electrodomésticos chegar ao Pólo Norte. Tentou convencer as renas a irem buscá-los mas elas recusaram. Se o tempo estava mau para os aviões, argumentaram, imagine-se o esforço que seria para elas. A menos, claro, que o Pai Natal pagasse a deslocação. Por uma questão de princípio, o Pai Natal recusou. Finalmente conseguiu que, por um preço quase tão elevado quanto o que as renas pediam, lhe enviassem por trenó puxado por cães (que são animais que trabalham por pouco dinheiro, desde que sejam levados a pensar que estão a divertir-se) uma máquina de lavar e outra de secar roupa de uma fábrica da Electrolux, perto de Estocolmo (que é uma cidade da Suécia, não muito longe do Pólo Norte). A Mãe Natal não ficou totalmente satisfeita (queria também uma máquina de lavar louça, um microondas e um ferro de engomar com caldeira) mas acabou por ceder e tratou da roupa do Pai Natal.»

«Ele não podia tratar dela sozinho?»

«Boa pergunta. E tens razão: ele devia saber fazer essas coisas. Mas o Pai Natal é velhote e nunca lhas ensinaram.»

«Mas podia aprender.»

«Talvez ainda aprenda. Vamos continuar, está bem? Estava, pois, tudo pronto na tarde do dia vinte e quatro. Foi então que o Pai Natal decidiu ir arranjar a barba e o cabelo, para estar bonito na noite mais importante do ano. Sentou-se na cadeira do barbeiro da pequena aldeia do Pólo Norte e, como costumava fazer, adormeceu de imediato. Nessa altura os duendes despedidos, há muito decididos a vingarem-se, invadiram a barbearia, arrastaram o barbeiro para a sala dos fundos e ataram-no com restos do fio de embrulho. Depois subiram para cadeiras e raparam o cabelo e a barba ao Pai Natal.»

«Então os duendes são maus?»

«Não. Às vezes as pessoas que têm pouco poder têm de defender os seus interesses e mostrar que não gostaram do que lhes fizeram. E eles não aleijaram o Pai Natal; apenas lhe cortaram a barba e o cabelo. Quando acordou e se viu ao espelho, o Pai Natal apanhou um grande susto e quase teve um ataque cardíaco (que era uma coisa que ele sabia poder acontecer-lhe, porque o médico lhe dizia há anos para comer menos e emagrecer). Saiu da barbearia a gritar e, enterrando as pernas na neve, observado por todos os habitantes da aldeia que se riam às gargalhadas, correu para casa. 'Está tudo perdido', lamentou-se. 'Não é possível que o Pai Natal não tenha barba nem cabelo. O que vou fazer?' A Mãe Natal não se alarmou. Foi buscar duas esfregonas de limpar o chão (uma nova, a outra já um pouco usada) e construiu uma cabeleira e uma barba falsas. Colou-as à cabeça do Pai Natal com fita adesiva e disse-lhe: 'Pronto, servem muito bem e até te dão um aspecto mais moderno.' O Pai Natal não ficou totalmente convencido mas nada podia fazer. Duas horas depois saiu para a sua volta da noite de Natal e desde então, enquanto o seu próprio cabelo e barba não voltam a crescer (vão ser precisos muitos anos), usa barba e cabeleira postiças. É por isso que elas se soltam quando alguém as puxa. Mas isso não significa que não se esteja perante o verdadeiro Pai Natal. E também já percebes por que é que ele fica envergonhado quando alguém faz o que tu fizeste.»

Os olhos dela estavam agora brilhantes. Receei que chorasse. Sorri-lhe.

«Mas tu não voltas a fazê-lo, não é? E vais ser especialmente boazinha para ele, quando o vires, não é?»

Fez que sim com a cabeça.

«Óptimo. E também há boas notícias, pequenina, sabes? Para agradecer à Mãe Natal, o Pai Natal ofereceu-lhe a melhor máquina de secar roupa, o melhor microondas e o melhor ferro de engomar com caldeira que encontrou. E hoje estão os dois a caminho das férias nas Maldivas.»

Depois de uma ligeira hesitação, sorriu. Achei melhor ficar por ali e devolvi-a aos pais. 



publicado por José António Abreu às 16:45
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Domingo, 12 de Dezembro de 2010
Escada rolante, elevador, metropolitano, rotunda (e as caminhadas do Sr. Tavares)

Bismarck e a escada rolante.

Os centros comerciais são espaços de luz e cor e movimento. Sem luz, cor e movimento um centro comercial está morto ou é outra coisa. Um centro de arte contemporânea, talvez. Em quase todos os centros comerciais há movimento horizontal e movimento vertical. O Sr. Bismarck gostava de movimento vertical e passava horas em centros comerciais a andar de escada rolante. Quando se sobe uma escada rolante a vida parece melhorar. Subir é melhorar. De resto, subir numa escada rolante não requer esforço. É subir na vida sem esforço. Claro que Bismarck também tinha de descer pois não existe uma escada, rolante ou não, num centro comercial ou noutro lugar, que suba sempre, até ao infinito. Mas Bismarck descobrira uma solução. Evitava a sensação de estar a fazer o percurso inverso – é particularmente dura a sensação de descer na vida pelo percurso inverso ao que se usou para subir – usando o elevador, onde encontrava frequentemente o Sr. Kloptonik.

 

Kloptonik e o elevador.

Não era por preguiça nem por hábito que o Sr. Kloptonik evitava as escadas quando podia usar o elevador. Não era também por preguiça nem por distracção que passava longos períodos a andar de elevador, para cima e para baixo, para cima e para baixo, mais para baixo ainda, para cima de novo, ao sabor das necessidades dos outros utilizadores, sem sair da cabina mais do que alguns segundos de cada vez. Kloptonik andava de elevador porque o elevador é um microcosmos que nos transfere da realidade de um piso para a realidade de outro piso. É uma passagem entre realidades paralelas. Verdadeiramente paralelas, uma vez que quase todos os pisos ligados por elevadores são paralelos entre si. (Raros edifícios têm pisos com distintos graus de inclinação em relação a um plano de referência.) Andar de elevador é como fechar os olhos num local e abri-los noutro. Como possuir a máquina das viagens no tempo do Sr. Wells, mas sem que o tempo se altere (ou apenas se alterando em poucos segundos e sempre para diante). Kloptonik encontrava muitas pessoas no elevador e gostava disso. Gostava até do ligeiro desconforto de estar tão perto de outras pessoas. Kloptonik tinha consciência de que o elevador também existe para nos fazer ter consciência dos outros e de nós mesmos. De certa forma, ter consciência dos outros é ter consciência de nós mesmos, pensava ele enquanto pelo canto do olho observava o decote de uma rapariga loura. Raramente fora de um elevador o Sr. Kloptonik tinha oportunidade de estar tão perto de raparigas atraentes. Ali, cheirava-as discretamente e olhava-as apenas um instante, o suficiente para que elas também o olhassem e depois desviassem o olhar. Kloptonik desviava então o seu, reprimindo um sorriso e a vontade de respirar fundo.

Para se deslocar para o emprego e para regressar a casa, que infelizmente ficava num prédio sem elevador, o Sr. Kloptonik usava o metropolitano. Um dia encontrou nele o Sr. Dürer. Segurava um livro aberto nas mãos mas tinha os olhos fechados.

 

Dürer e o metropolitano.

Dürer andava de metro porque fazê-lo lhe dava uma sensação de profundidade. Apesar de usado para deslocações no plano cartesiano, o metropolitano é o meio de transporte adequado para quem deseja profundidade. Nenhum outro meio de transporte excepto o submarino é mais profundo – e não é fácil arranjar bilhete para um submarino. As linhas de metropolitano são também muito parecidas em todo o lado: escuras, estreitas, com cabos agarrados às paredes passando velozmente do lado de fora dos vidros. Pode-se estar em Paris sem sair de Lisboa, matutava o Sr. Dürer. Andar de metropolitano é um método económico de exercitar a imaginação (e ter uma imaginação exercitada é ser profundo). Claro que algumas estações denunciam a cidade em que se está. E certas pessoas, pelo seu aspecto, também. Mas sair de um túnel para uma estação era sempre um momento de descoberta para o Sr. Dürer. Era como se nascesse para uma realidade inesperada, ainda que sempre a mesma, uma vez que Dürer já conhecia sobejamente todas as estações da cidade. Ou talvez, pensava ele, satisfeito por se sentir a pensar, ainda fosse mais inesperado por, independentemente daquilo que imaginava enquanto dentro do túnel, acabar sempre a sair na mesma cidade. Como a moeda do ilusionista que reaparece igual e, ainda assim, causa surpresa. Os túneis de metro levavam Dürer a explorar zonas profundas do cérebro a que raramente acedia enquanto à superfície, onde a quantidade de estímulos parece bloquear o acesso a essas zonas. Mas a possibilidade de usar a imaginação livremente, ao mesmo tempo que se é embalado pelo movimento das carruagens, era apenas um dos muitos aspectos que mostravam como o metropolitano é, em todos os sentidos literais e metafóricos, o meio de transporte mais profundo. Por exemplo: em poucos meios de transporte se lê tanto. É verdade que muitas pessoas tentam contrariar a profundidade do acto de leitura lendo jornais desportivos ou literatura «leve» mas, ainda assim, tal facto não basta para invalidar a tese. De resto, o Sr. Dürer já vira gente mergulhada em Homero e James Joyce. O próprio Dürer fazia questão de ler no metro. Como pensava muito, lia devagar. Mas acabara recentemente um livro e estava a começar outro. Nos primeiros parágrafos leu:

 

Aaronson e a primeira rotunda.

Todas as manhãs, um homem era visto, entre as sete e as sete e meia, a contornar a rotunda principal da cidade, rotunda onde desembocava sessenta por cento do tráfego.

Às sete da manhã o fumo dos automóveis era maior que ao fim da tarde, porém, mesmo assim, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis. E ali, no meio, correndo risco de vida, um homem. Aaronson.

(...)

Centenas e centenas de vezes em redor da mesma rotunda, como um carro que não soubesse o caminho, que hesitasse entre seguir por uma direcção ou outra; que se deixasse estar por ali, à roda, não arriscando, não tomando uma opção. Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás.

(...)

Ninguém gosta de ser humilhado e Aaranson (se fosse um automóvel) pelo menos não entrava na estrada errada. Trezentas voltas para ganhar balanço e depois o regresso a casa.

O livro fora escrito pelo Sr. Tavares.

 

Tavares e os passeios a pé.

O Sr. Tavares escrevia livros que críticos e leitores comuns de livros apreciados por críticos adoravam e fazia longos passeios pela cidade com uma mochila às costas. Caminhava a um ritmo muito forte. Explicava: Isso faz uma pessoa pensar de uma forma muito diferente do modo como se pensa sentado. Deixava os livros que escrevia em pousio durante anos antes de os publicar. Dizia gostar de viver em diferido. Tenho livros já terminados e há o que sai. O que sai é uma outra vida. É como estar noutra vida a olhar para os livros que estão a sair neste momento. Ainda assim, Tavares subia na vida.

 

Notas sobre escada rolante, elevador, metropolitano, rotunda (Posfácio)

1.

O movimento é hoje um pré-requisito. Uma pessoa parada é uma pessoa que não parece evoluir em qualquer sentido. Convém pois manter o movimento, mesmo quando o corpo está imóvel. Os meios de transporte mecânico são bons para este efeito. Mas mesmo passadeiras e bicicletas de exercício, que não saem do mesmo sítio por muito que se corra ou pedale, são úteis para instigar a sensação de movimento.

2.

O Sr. Bismarck sobe num meio que lhe permite ver que sobe. A visão é essencial para subir na vida. Mas aumenta a dor das descidas.

A surpresa é mais forte quando não se vê. E quando se vêem poucas coisas, como nos elevadores do Sr. Kloptonik, o que se vê tem mais força. Outra coisa que acontece é que quando não se vê, inventa-se. Cria-se. Aumenta-se a profundidade, por falta de horizonte. Como no metropolitano do Sr. Dürer. Mas é mais difícil subir na vida em meios em que não se vê que se está a subir. Para subir na vida é necessário viver no plano ortogonal, não apenas no cartesiano: o terceiro eixo, o dos z, é de extrema importância. Felizmente para o Sr. Tavares, o relevo da cidade faz com que esteja consciente das subidas e descidas.

3. 

O Sr. Tavares tem razão no posfácio do seu livro: a ordem, uma qualquer lógica que auxilie o ser humano a compreender o que o rodeia e o que lhe pode suceder, é essencial. A falta de ordem apavora. O pensamento desordenado assusta. Pessoas em grupos desordenados em vez de em filas tornam-se ameaças. Loucura é desordenação. Anarquia. A hierarquia pelo alfabeto não é, pois, uma brincadeira de crianças. Pode representar a salvação (já passaram a minha letra), uma condenação (sou eu!) ou representar ainda o tempo da ameaça suspensa (ainda não chegaram à minha letra). É por oposição a isto (mas não discordância) que as personagens deste texto, ao contrário das do livro do Sr. Tavares, não estão alfabeticamente ordenadas. Como o Sr. Tavares sabe perfeitamente, a ordem é essencial mas a dúvida pode ser mais criativa.

4.

Há outro motivo, mais prosaico, que pode muito bem ter sido o principal para a falta de ordenação alfabética das personagens: é muito difícil arranjar três nomes que precedam Aaronson no alfabeto.

 


Adenda 1: este post não passa de uma brincadeira inspirada pelo livro Matteo Perdeu o Emprego (Porto Editora, 2010), de Gonçalo M. Tavares, e pela entrevista deste incluída no número actualmente nas bancas da revista Ler. As passagens a itálico do ponto sobre Tavares e os passeios a pé foram retiradas da revista, as restantes do livro.
 
Adenda 2: este post esteve em pousio durante vinte e quatro horas.


publicado por José António Abreu às 22:49
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Domingo, 21 de Novembro de 2010
Sex shop

Diz que vai abrir uma sex shop oriental. Ou melhor, com produtos orientais. Mas não apenas chineses, que isso podia transmitir a ideia de material barato e sem qualidade. Explica que ainda existe muito mistério, muita construção de fantasias, em torno dos orientais – e especialmente das orientais. «Um vibrador com um nome que pareça oriental – flor de lótus, ou shinkansen, por exemplo – adquire logo uma aura especial.» E depois haverá roupa interior e objectos estranhos e cremes que até podem nada ter a ver com sexo («Estou convencido de que podia vender Atrix enfiado num tubo com a designação 'Sushi Pleasure Enhancer' sem dificuldades, pá. Está tudo na cabeça e os clientes iam achar que aquilo dava resultado. E mal não lhes fazia: deixava-lhes a pele mais suave.») mas que poderão ser vendidos por preços exorbitantes («A Chanel vende água perfumada a quinhentos euros o litro e nem é suposto ajudar nas erecções...») se as pessoas desconfiarem que sim. Planeia comercializar peluches eróticos («Serão fantásticos para festas de despedida de solteiro e tretas similares»), e convida quem o ouve a imaginar o divertido que será colocar um macaco japonês a ter relações sexuais com um panda chinês. Promete quimonos de cabedal, com incrustações metálicas, orifícios e fechos (não há trejeito de horror que o faça hesitar). Diz que disponibilizará objectos hi-tech, com chips, luzinhas, músicas (orientais, sempre orientais) que arrancarão nos momentos certos, câmaras microscópicas e ligação wi-fi para download imediato de imagens e vídeos para o Facebook. («Tudo made in Japan ou Korea ou, vá lá, Taiwan, mas nada made in China, que o rótulo faz diferença no preço que se pode cobrar.») Gosta de imaginar os clientes tentando descobrir como usar um vibrador vendido com o rótulo vibrador transversal. («'Transversal' por causa do que se costumava dizer do sexo das orientais, estás a ver? Mas claro que o vibrador vai igual aos outros; àqueles mais sofisticados, bem entendido.» E se lhe perguntarem como é que se usa? Sorri. «Fácil. Digo-lhes: experimente da forma em que está a pensar e depois vá inovando. Do que as pessoas precisam é de pensar que são ousadas, que estão a chegar mais longe do que o parceiro do lado... ou pelo menos tão longe quanto ele. Sabes o que se diz: o cérebro é o verdadeiro órgão sexual.») Quer instalar a loja num centro comercial («Reparaste que em nenhum dos principais há sex shops?») e já tem nome para ela. Gosta de o dizer depressa e em voz alta porque, garante, se obtém um efeito tipicamente oriental. «Vou chamar-lhe 'Glande e Clitóris', pá. Não é de génio?». Anda entretido a pensar no logótipo: não sabe se é melhor arranjar um símbolo oriental sugestivo, se colocar apenas um ponto de exclamação («com duas pintinhas em vez de uma, assim lado a lado, o que é que achas?») a seguir ao nome.



publicado por José António Abreu às 23:27
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Quarta-feira, 17 de Novembro de 2010
Espírito de contradição

Disse-me para virar à esquerda e virei à direita. Aconselhou-me a tomar a segunda estrada e optei pela terceira. Recomendou-me que abrandasse e acelerei. Instou-me a voltar para trás e segui em frente. Ordenou-me que saísse e continuei. Pediu-me para subir à montanha e desci ao vale. Disse: «Chegou ao seu destino.» Adoro um GPS que me conhece tão bem.



publicado por José António Abreu às 13:19
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Sexta-feira, 13 de Agosto de 2010
Artificialidade - história em duas partes

Primeira parte

Não gostava das mamas. Achava-as demasiado pequenas. Sentia-se tão insegura acerca delas que lhe perguntava repetidamente se não preferiria que fossem maiores. Ele respondia que não, que nem sequer gostava de mamas demasiado volumosas, e que as dela não eram pequenas, eram perfeitas, mas ela não acreditava. Menos de um ano após o casamento, decidiu colocar implantes. Ele resmungou. Não era necessário e, para mais, era caro. Mas ela estava determinada e ele acabou por ceder. Com as mamas novas, ela passou a comprar blusas e vestidos mais provocantes. Mas havia um problema: tinha uma cintura ligeiramente gorda. «Preciso de fazer uma lipoaspiração», declarou uma noite, cerca de seis meses depois da colocação dos implantes mamários. Ele argumentou que não tinham dinheiro suficiente, que andavam a adiar a compra de um carro desde o casamento, que o apartamento ainda quase não tinha móveis, que os juros do empréstimo podiam subir, mas foi inútil. Após a lipoaspiração, ela sentiu-se melhor durante uns tempos. Depois decidiu arranjar os dentes. «Mas o que têm os teus dentes de mal?», perguntou ele. «São tortos, e amarelos. Já viste os actores e os apresentadores de televisão americanos? Têm todos dentes fantásticos! Por que não hei-de eu ter uns assim?» Milhares de euros depois, ela tinha dentes falsos mas tão belos que sorria mesmo ao receber más notícias. Progressivamente, tirou todos os sinais do corpo, alisou a pele do pescoço, injectou botox nos lábios e em torno do olhos, colocou umas maçãs do rosto mais salientes, corrigiu a ligeira (ele nem a conseguia ver) proeminência das orelhas, fez uma rinoplastia para cortar dois milímetros ao nariz, e instalou seis piercings, um dos quais o fazia perder a erecção durante o acto sexual, por receio de lesões graves. Por fim, ele fartou-se. Após anos a visitá-la em hospitais, anunciou-lhe que a ia deixar. «Vais pedir o divórcio?», perguntou ela por entre os lábios inchados por mais um injecção de botox. «Não», respondeu ele, «não estou a pensar no divórcio.» Apesar dos anos já decorridos, requereu e conseguiu a anulação do casamento, alegando que aquela não era mais a mulher com quem casara, nem sequer uma verdadeira mulher, mas um ser artificial, quase totalmente sintético. À porta do tribunal, as últimas palavras que lhe dirigiu foram: «Lamento, mas eu preciso de verdadeiro contacto humano.»

 

Segunda parte

Livre para viver sem ser obrigado a levar em consideração desejos alheios, com o salário à disposição (ela não ganhava mal, mas ele ganhava melhor), ele instalou-se num apartamento e começou a mobilá-lo com os objectos que sempre sonhara ter. Na sala colocou um televisor de cinquenta e duas polegadas, ligado a um leitor de blu-ray, às três principais consolas de jogos e a um sistema de som surround com sete canais principais mais subwoofer. No quarto instalou um televisor e um sistema de som mais pequenos. Para a cozinha escolheu um combinado com ecrã de televisão e sintetizador de voz, capaz de cuspir cubos de gelo, gerir stocks e recomendar o consumo dos produtos mais saudáveis, e um microondas com sensores de humidade que adequavam tempo e potência da cozedura aos alimentos colocados no interior e um pequeno ecrã colorido onde surgiam gráficos, animações e a indicação dos parâmetros utilizados nos últimos cinquenta pratos cozinhados. Na casa-de-banho instalou uma banheira de hidromassagem com dezenas de jactos, programação digital e mais um ecrã de televisão. Passou a lavar os dentes com uma escova eléctrica e a barbear-se com uma máquina eléctrica de cabeça oscilante, que tinha um ecrã pequenino onde surgia a indicação de carga e do desgaste das lâminas. Comprou ainda uns auscultadores sem fios e outros com fio, um telemóvel novo, topo de gama, um computador, um iPod, um iPad, duas máquinas fotográficas e várias objectivas, uma câmara de vídeo e uma impressora de qualidade fotográfica. Adquiriu também um aspirador que trabalhava sozinho e uma passadeira de exercício possuidora do seu próprio ecrã de televisão, com dúzias de programas distintos simulando a corrida em sítios tão exóticos como a Quinta Avenida ou a Passagem de San Bernardino. Instalou sensores de presença ligados às luzes e um sofisticado sistema de comando que lhe permitia controlar quase todo o equipamento a partir do telemóvel. Por fim, comprou um carro com caixa automática, chave inteligente, sensores de luz e de chuva, alerta de mudança de faixa, sistema de navegação e de telefone com reconhecimento de voz, e capacidade para estacionar sem intervenção humana. Depois de tudo isto sentiu-se finalmente feliz. Quando pensava na mulher de quem se separara, abanava a cabeça, incapaz de entender como pudera aguentar tamanha artificialidade durante tanto tempo.



publicado por José António Abreu às 08:41
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Quarta-feira, 14 de Julho de 2010
Realismo paralelo

Jardim do Éden – A Descoberta da Gravidade.

Pastel sobre papel Hahnemühle Velour.

(Obra informalmente conhecida como Pandora.)

 

«Podemos começar já pela questão do prémio…»

«Como preferir.»

«Ficou satisfeito?»

«Seria hipocrisia dizer que me é indiferente. Mas não é fundamental. Não pinto para receber prémios.»

«Então por que o faz?»

«Porque sinto que tenho de o fazer. Porque tenho uma visão a transmitir.»

«Uma visão no mínimo polémica.»

«Espero bem que sim. É bom que a Arte incomode.»

«Há mesmo quem acuse o que faz de não passar de um truque.»

«Inveja. Repare: toda a Arte parte de uma visão do mundo. E a minha visão é diferente. É natural que haja quem não goste. Quem não consiga perceber.»

«A sua visão parte do facto de ser daltónico…»

«Sim, mas vai muito para além disso.»

«E de colorir o que pinta com cores aleatórias.»

«Não, não, não, não! Aleatórias, não. Eu pinto como imagino. Acrescento à realidade incompleta que me chega os elementos que lhe imagino adequados. E repare que não distingo a cor das tintas que uso. É um trabalho cem por cento mental, de nuances, da interpretação da adequação das possibilidades disponíveis à realidade desconhecida. Se bem que não devêssemos chamar-lhe realidade. É apenas a forma como a maioria das pessoas vê. Não é a realidade para um cão ou para um gato, por exemplo...»

«Não distingue mesmo qualquer cor?»

«Não. Tenho o que se chama 'visão acromática'. É uma condição bastante rara.»

«Parece quase orgulhoso disso.»

«Não devemos envergonhar-nos das diferenças. Devemos potenciá-las. Costumo dizer, correndo talvez o risco da imagem excessivamente doce, que a minha vida é como um sonho que vou colorindo com as cores adequadas a cada momento.»

«É uma ideia interessante. Mas não acha que é demasiado fácil delinear uma cena (e muitos dizem que o faz de modo básico) e depois colori-la com cores que parecem aleatórias? Céu verde, água vermelha, erva roxa... Não é quase como aqueles livros para crianças?»

«Já vi esses livros. Alguns têm muito potencial. Mas é totalmente diferente. As crianças subvertem o sentido das figuras quando lhes acrescentam cores diferentes daquelas que têm na realidade. A minha intenção, embora aceitando o lado polémico do que faço, não é subverter. É criar uma realidade minha, que faz sentido para mim e que, na minha cabeça, é a realidade.»

«É por isso que insiste em chamar-lhe ‘realismo alternativo’?»

«Realismo paralelo.»

«Peço desculpa. Realismo paralelo.»

«Porque não a vejo como uma alternativa. É um mundo paralelo. A alternativa é a monocromia.»

«Criou até uma associação com o nome 'Realismo Paralelo'.»

«Não fui apenas eu. Mas é verdade que fui um dos principais impulsionadores do projecto e desempenho actualmente o cargo de presidente.»

«A associação tem membros com outras, er, características, não apenas daltónicos...»

«Com certeza. Há imensas pessoas que, podendo até nem ter consciência disso, são realistas paralelos. Criam a sua própria realidade.»

«Políticos, por exemplo?»

«Desculpe?»

«Era uma tentativa de humor.»

«Ah. O humor é uma forma de evitar encarar as inseguranças. Nenhum artista pode permitir-se fazê-lo.»

«Não há humor no seu trabalho?»

«Depende do ponto de vista. Quando um quadro está completo, a interpretação – e, portanto, as inseguranças – são as de quem observa. Mas o artista tem de as enfrentar enquanto o cria. Não pode refugiar-se no humor. Seria demasiado fácil.»

«Não acha que há humor na sua obra 'Jardim do Éden - A Descoberta da Gravidade'?»

«Presumo que possa lá ser encontrado algum humor.»

«Não era sua intenção criá-lo?»

«O quadro é uma sobreposição espaço-temporal de vários mitos da ciência e da religião. Coloca questões. As respostas são livres.»

«Sabe que desde o filme Avatar lhe chamam 'Pandora'?»

«Prefiro não falar disso.»

«Muito bem. Voltemos à questão do que é ser realista paralelo, de que nos desviámos com a minha infeliz piada sobre os políticos. Será que podia explicar um pouco melhor em que se baseia o conceito?»

«Já lhe disse: na possibilidade de criar uma realidade paralela. Verdadeiramente paralela. Que nasça de características verdadeiramente diferentes das da maioria. Repare: quando um surdo compõe música, o resultado tem de ser diferente do que seria se fosse uma pessoa com audição a criá-la. Ele está a gerar algo paralelo à realidade da maioria das pessoas. Embora, claro, essa música, ou um quadro meu, entre na realidade das pessoas ditas normais e acabe portanto por fazer parte dela.»

«Hmmm, sim. Beethoven era um ‘realista paralelo’?»

«Beethoven perdeu a capacidade para ouvir mas não deixou de ser influenciado por ela. A sua obra reflecte esse facto. A nona sinfonia mantém muitos elementos do Beethoven com audição. Apenas é mais ruidosa.»

«Hmmm, estou a ver. É, de facto, uma visão polémica. Há, aliás, quem o acuse de radicalismo; de ostracizar tudo o que não encaixa na sua forma de encarar as questões.»

«De modo nenhum. Eu não ostracizo. Eu sou ostracizado. Mas não pode esperar que eu aprecie críticas de gente que não tem obra feita, ou que produz obras que nada trazem de novo.»

«Como é que sabe, se não as vê na sua plenitude?»

«É verdade, mas não preciso de ver as cores para perceber que nada têm de novo. Torna-se imediatamente óbvio que (usando um dos exemplos que deu há pouco) o céu é azul, como tem sido quase sempre ao longo dos séculos. Eu crio um céu diferente.»

«Cria até vários. Há pinturas suas com céus das mais variadas cores.»

«Com certeza. Na realidade paralela, o céu tem que combinar com todos os restantes elementos. Repare: você diz-me que o céu é azul e a erva é verde, certo? É essa a combinação que as pessoas conhecem e que tem sido pintada ao longo dos séculos. Muito bem, faz sentido, apesar de ser monótona. Mas se eu crio um céu castanho, não posso combiná-lo com erva verde. Seria ficar por uma realidade enviesada e não paralela. A cor da erva deve reflectir a cor do céu.»

«Mas a cor do céu também não é sempre a mesma, nas suas obras…»

«Evidentemente. Porque o céu está na minha cabeça. Ou, para ser mais preciso, a realidade cromática do céu está na minha cabeça. E a minha cabeça pode decidir atribuir-lhe uma cor por dia. É isto que me distingue das pessoas, enfim, não queria chamar-lhes ‘normais’ mas serve como ideia. Eu vejo realidades onde elas vêem apenas uma realidade.»

«Penso que há uma definição médica para isso.»

«Por favor. Está aqui para entrevistar-me ou para insultar-me?»

«Peço desculpa. Mas, nessa linha, quantas mais, enfim, digamos ‘deficiências’, tiver uma pessoa, melhor artista será.»

«Melhor artista poderá ser. Em teoria. Na verdade, as características diferenciadoras a que chama ‘deficiências’ só são úteis se a) o artista as utilizar de forma adequada e b) não forem excessivas, uma vez que o excesso tenderá a prejudicar a qualidade da obra. Deixe-me dar-lhe um exemplo: é difícil para uma pessoa sem braços pintar quadros (alínea b). E, infelizmente, quando resolve essa questão usando a boca ou os pés, tende a desperdiçar todo o potencial que possui em cartões de Natal sem qualquer interesse artístico (alínea a).»

«Sim, estou a ver. E é sempre o público que define quem tem qualidade?»

«O público, não diria. Pelo menos, o grande público. É muito difícil dizer quem define. Mas as coisas acabam por se impor.»

«Também por causa da polémica…»

«A polémica é já um reflexo da qualidade. Da capacidade de provocar emoções.»

«... e dos apoios que alguns artistas recebem e outros não. O que diz às pessoas que contestam os subsídios públicos que tem recebido?»

«É mesquinho e ridículo. Eu não vejo a cor do dinheiro. É-me indiferente se é público, se privado. Para mim, é todo… cor-de-rosa.»

«Cor-de-rosa?»

«Por exemplo. Sem quaisquer conotações políticas. Disse cor-de-rosa como podia ter dito outra cor qualquer. É nisso que se baseia a minha arte: na infinidade de possibilidades. As coisas mudam e eu adapto-me. Cor-de-rosa foi a cor que me pareceu adequada ao momento. Noutra altura poderá ser cor-de-laranja. Ou vermelho, ou azul. Qualquer cor. O que me interessa é a Arte.»

«Com certeza. O prémio vai mudar alguma coisa na sua vida?»

«Nada. Apenas dar-me um pouco mais de exposição. Talvez possibilitar-me vender mais algumas obras.»

«O que até poderá permitir-lhe dispensar os tais subsídios públicos…»

«Pensar assim é um erro. Os subsídios artísticos devem ser dados não somente em função das necessidades (repare que toda a gente considera ter algo a exprimir e, portanto, achar-se-ia com direito a subsídios) mas em função da obra, do valor acrescentado para o acervo cultural do país.»

«Mas isso deixaria de fora os jovens, pouco conhecidos.»

«Não se forem bons.»

«Voltamos então à questão de saber quem define o valor da obra…»

«Para a atribuição de subsídios, o Estado tem que chamar a si a questão, claro. E depois, porque é preciso que ela seja tomada por quem perceba do assunto, delegá-la.»

«Em quem?»

«Em valores firmados.»

«Mas isso não cria uma espécie de clube restrito e conservador, que decide muitas vezes em função do interesse e dos gostos dos seus membros, e que só apoia jovens com gostos similares ou, enfim, com cunhas?»

«É por interpretações como essas que o grande público tem uma visão distorcida do mundo dos criadores de Arte. O mundo da Arte não funciona dessa forma, não se baseia nessas realidades mesquinhas…»

«Baseia-se em realidades paralelas? É isso que lhe confere autoridade para falar em nome do ‘mundo da Arte’?»

«A verdadeira Arte é sempre paralela. E fiquemo-nos por aqui.»

«Porque aceitou fazer parte do júri do prémio do próximo ano?»

«Convidaram-me e achei que não podia recusar. A Arte também é interacção, cooperação, amizade, apreço.»

«Mas como poderá avaliar obras alheias sem lhes conhecer a cor?»

«De forma muito mais livre e descomprometida. Mas pensei que esta entrevista era sobre a minha obra…»

«E é, claro. Está a trabalhar em alguma coisa nova?»

«Sempre. E posso garantir-lhe que vai ser uma surpresa.»

«Diferente da série anterior, então, com os legumes com cores trocadas?»

«Não estavam ‘trocadas’. Receio que não tenha percebido nada do que lhe estive a dizer.»

«Peço desculpa. Mas o próximo projecto não vai ter nada a ver com isso, então?»

«Não. Terminei a série dos legumes. Um artista não pode repetir-se.»

«E não pode dar-nos uma pista?»

«Bom, só uma: fruta.»

«Fruta com cores, er, paralelas?»

«Fruta ainda nas árvores. Uma coisa mais campestre. Talvez sendo apanhada por pessoas de todas as cores (a Arte deve recusar a xenofobia e incentivar a igualdade). Mas já estou a falar demais…»

«Ficamos ansiosos.»

«Obrigado.»

«Terminámos. Agradeço-lhe imenso ter-me concedido a entrevista.»

«De nada. Estou sempre disponível. Já agora, vai para o centro?»

«Vou.»

«Dá-me boleia?»

«Claro. Tenho o carro mesmo aqui à porta. Nem queria acreditar na sorte…»

«Aqui costuma haver lugares. É o vermelho?»

«É. Espere lá: como percebeu a cor do carro?»

«Prática.»

«Mas isso não elimina tudo o que me esteve a dizer? Se afinal reconhece as cores…»

«Reconheço-as porque sou um ser inteligente, capaz de estabelecer associações. Ao longo dos anos fui aprendendo que certas tonalidades correspondem a certas cores. Mas eu não vejo essas cores. Eu não sei o que significa 'vermelho'. É apenas uma palavra. A minha visão do Mundo, fisiologicamente alterada como lhe expliquei, não inclui o verdadeiro vermelho. Mas também faz com tudo me seja possível, incluindo o realismo mais básico que acaba por ser essencial para sobreviver no mundo prosaico do dia-a-dia. Posso assim chamar 'vermelho' ao que me dizem ser vermelho. Foi o que acabei de fazer e isso não invalida o que lhe estive a tentar explicar. No limite, porque sou livre de fazer as correspondências entre cores e terminologia que bem entender, posso dizer que, quando pinto um céu que sei ser azul, de vermelho, estou na verdade a pintá-lo de azul. Do meu azul. A Arte é uma expressão pessoal, e na verdadeira Arte tudo é possível desde que exista capacidade, visão e ousadia. É, na realidade – qualquer que ela seja –, muito simples.»

«Er... pois, deve ser. Vamos, então.»



publicado por José António Abreu às 08:28
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Segunda-feira, 5 de Abril de 2010
Furgoneta

Viajo numa furgoneta velha, cor da ferrugem que tem. Uma Volkswagen Pão-de-Forma, não fosse o cliché e os níveis de poluição. Ando por muitos países, paro onde me apetece, meto conversa gestual com as pessoas e tiro fotografias com uma Leica M. No tejadilho da carrinha há uma antena discreta, no seu interior equipamento informático topo de gama e muitos livros – tantos que não preciso de cadeiras nem de cama, apenas de um colchão disposto sobre eles. Mantenho um blogue onde descrevo as viagens, mas minto acerca da minha localização. Quase sempre sob pseudónimo, publico fotografias fabulosas, que trazem o mundo siderado. No Tibete, sob o olhar atento de um militar chinês, um monge aponta para a furgoneta e, rindo-se, diz-me qualquer coisa que não percebo. Rio-me também, digo «Tashi delek» e ele parece satisfeito mas o militar continua desconfiado. Na Argentina, o condutor de uma carrinha de caixa aberta onde se pode ver um conjunto de boleadoras grita-me «Boludo!» quando me ultrapassa na estrada, e eu berro-lhe, pondo a cabeça de fora da janela, «Gracias!», o que o leva a erguer a mão esquerda no ar com o dedo médio espetado a apontar para cima. Encontro-o dez minutos mais tarde, num bar poeirento à beira da estrada, e acabamos a beber cerveja Quilmes e a discutir as hipóteses das selecções argentina e portuguesa no mundial de futebol (eu elogio Messi, ele elogia Ronaldo, eu estou pessimista quanto às chances de Portugal, ele garante que a Argentina será campeã). Passo da Indonésia para a Austrália num ferry que a internet me dissera não existir e fico dois dias parado no deserto a algumas centenas de quilómetros de Ayers Rock, lutando com aranhas e escorpiões que entram na carrinha pelos muitos buracos que ela tem, à espera que me tragam as peças de que necessito para poder continuar. No deserto do Saara fico trinta e duas vezes atascado nas dunas e sou libertado por um tuaregue que, após a quarta operação de socorro, me segue a cerca de cinquenta metros de distância no seu jipe Nissan, e se esforça por conter o sorriso de cada vez que pára ao meu lado, depois de eu ficar novamente preso na areia. Numa zona pouco habitada do noroeste do Irão sou cercado por uma patrulha militar que me acusa de trabalhar para os americanos, ou para os israelitas, ou para a Agência Internacional de Energia Atómica. Os computadores e a antena não ajudam mas consigo finalmente convencê-los de que os inspectores da Agência não andam em furgonetas ferrugentas e que o equipamento funciona tão mal que eu até pensava estar no Azerbeijão. Mesmo assim, depois de me autorizarem a seguir viagem, vejo-os a olhar para o céu com expressões apreensivas, como se esperassem a chegada de mísseis israelitas. Em pleno Inverno siberiano tento saber se, colocando correntes nos pneus da furgoneta, conseguirei atravessar o Estreito de Bering até ao Alaska. Todos me dizem que estou сумасшедший, ou pelo menos é isso que percebo, e, porque na realidade nunca estive tão são na minha vida mas quero mesmo visitar o Alaska, acabo por decidir lá chegar pelo outro lado. Numa estrada secundária portuguesa querem multar-me por não ter feito a inspecção da carrinha e por não trazer colete reflector, mas começo a falar uma mistura de cantonês e hebraico (as poucas palavras que sei em cada uma das línguas) e os elementos da GNR entreolham-se e resolvem mandar-me embora. Na Escócia, enquanto limpo a Leica sentado nas margens de um lago perto de Inverness, tiro inadvertidamente a primeira fotografia em décadas que parece mostrar Nessie com nitidez. Em todo o lado tentam vender-me sexo e droga e até armas mas recuso, excepto quando sinto que seria indelicado fazê-lo. Vivo de quê? É segredo. Se se soubesse, todos poderiam fazer o mesmo e as estradas ficariam sobrelotadas com carrinhas iguais à minha.

 

(Este post não inclui fotografias porque seria um desperdício utilizá-las apenas para ilustrar o texto. Usem a imaginação, acrescentem uma pitada de pôr-do-sol. E mantenham os olhos abertos porque elas vão surgindo por aí.) 



publicado por José António Abreu às 13:37
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Domingo, 28 de Fevereiro de 2010
Comunhão com a Natureza

«Toma alguma coisa?»

«Um café.»
«Prefere ir lá para dentro?»
«De maneira nenhuma. Gosto mais de estar ao ar livre. Aqui vê-se o mar, sente-se o vento. Adoro estar em comunhão com a Natureza»
«É que não está muito calor e o vento está forte.»
«Nada disso me incomoda.»
«Muito bem, então. Comecemos: desde quando é que a ecologia o interessa?»
«Desde que me lembro de ter consciência. Mas um dos primeiros momentos em que tive consciência foi quando era miúdo e tentei fazer uma festa a um gato.»
«Sim?»
«Foi aí que percebi que gostava de animais.»
«Ah. Estou a ver. Era o gato lá de casa?»
«Não. Era de um vizinho. Tinha um temperamento super-independente. Arranhou-me todo.»
«A sério?»
«Fiquei com três sulcos na mão direita e um na face. Ainda há poucos anos se via. Comecei a perceber nesse momento que a Natureza (os animais fazem parte dela, como é óbvio) deve ser respeitada.»
«Que idade tinha?»
«Uns três anos. Talvez quatro.»
«E pensou nisso assim, conscientemente?»
«Sempre fui precoce, sabe? Mas, para dizer a verdade, é uma ideia que se foi instalando progressivamente.»
«Não me diga: o gato arranhou-o mais vezes?»
«Com alguma gravidade, mais cinco.»
«Cinco vezes?»
«Sim. Percebi então que a Natureza, para além de ter que ser respeitada, quer ser deixada em paz.»
«É uma conclusão de grande perspicácia para uma criança.»
«Obrigado.»
«Foi o único problema que teve com animais, enquanto criança?»
«Não gosto do termo 'problemas'. Mas não. Também fui mordido sete vezes por três cães diferentes, apanhei uma doença por causa de uma picada de mosquito, fui ferrado por duas abelhas, levei duas marradas do carneiro do rebanho dos meus avôs, parti a perna direita quando um cavalo da polícia se espantou e me pisou, e a primeira vez que fui ao jardim zoológico, um macaco mordeu-me. Creio que estava com pena de que ele estivesse preso e tentei chegar-lhe. Também tentei chegar aos tigres e aos ursos mas os meus pais e a rede de protecção (detesto redes à volta dos animais) impediram-me. Ah, e tive um surto de piolhos mas isso não conta, não é?»
«Com essa consciência ecológica tão precoce, deve ter sido desagradável ter de os matar…»
«Pode ter a certeza. Fartei-me de chorar e de tentar fugir da minha mãe quando ela me queria pôr o produto na cabeça.»
«Não acha estranho, tantos acidentes?»
«Acho que foram um sinal.»
«Um sinal? Um sinal de quê?»
«Uma forma dos animais me alertarem para os seus problemas. Da Natureza me fazer prestar atenção.»
«Ahn, estou a ver. Avancemos um pouco. Foi já essa consciência que o fez tirar o curso de biologia?»
«Com certeza. Na adolescência eu já não tinha qualquer dúvida quanto à minha vocação. Mas tenho de confessar que o curso foi uma desilusão. Muito teórico. Eu queria era andar ao ar livre, em comunhão com a Natureza… Olhe para aquele cão. Que fantástico animal, não é? É um crime que provavelmente passe quase todo o dia preso num apartamento.»
«Vem para cá.»
«Os animais têm uma extraordinária capacidade de perceber em quem podem confiar.»
«Mas parece-me que…»
«…»
«…ele lhe vai urinar nas calças.»
«Bolas. Mas é natural, sabe? É a demonstração de que não me vê como uma ameaça. Se pensarmos bem no assunto, até é lisonjeiro. Repare que ele não urinou nas suas pernas…»
«Pois…»
«A sério que não me importo. A si o cheiro não o incomoda, pois não? É um odor perfeitamente natural.»
«Não, quase nem noto. Acho que o vento está a soprar deste lado.»
«Isto está-me sempre a acontecer.»
«Ah, sim?»
«É verdade. Como lhe disse, é um elogio.»
«Claro.»
«Está um vento fantástico, não está?»
«Um bocado forte demais para o meu gosto. Nestas últimas semanas tem sido terrível…»
«Ora, não diga isso. O vento é uma das mais maravilhosas formas de expressão da Natureza.»
«É uma boa maneira de ver a questão. Bom, voltemos ao ponto onde ficámos. O que fez quando acabou o curso?»
«Fiz um estágio nas Berlengas. Foi um período fantástico. Andava sempre coberto de excrementos de gaivota e fui bicado mais de uma dúzia de vezes. De uma delas quase fiquei sem o olho direito. Eram para ser três meses de estágio mas ao fim de um e meio, num dia de vento forte (olhe, um bocado como o de hoje), uma gaivota errou a trajectória, raspou-me na cabeça e eu caí num buraco e parti duas costelas e o braço esquerdo.»
«Tem a certeza de que a natureza gosta de si? Estão-lhe sempre a acontecer coisas desagradáveis…»
«Não brinque. Já lhe expliquei a lógica por trás de tudo o que acontece.»
«Claro, desculpe. Continue, por favor»
«Bom, depois de recuperar entrei para a Associação. Como sabe, temos duas vertentes: a de investigação e a de denúncia e activismo político.»
«Participou nas duas, segundo sei.»
«Todos os membros o fazem.»
«É capaz de nos contar alguns dos projectos em que esteve envolvido, em cada uma das áreas?»
«Com prazer. Nunca me esquecerei do tempo que passei em África a seguir um grupo de elefantes. Acabei por ser mandado de volta porque um deles, assustado (devíamos ter mantido uma distância maior, na verdade), carregou sobre mim e me partiu a perna esquerda. Em dois locais. Outra expedição de que me lembro bem foi uma viagem de barco às Selvagens que, infelizmente, acabou antes de lá chegarmos porque uma tempestade afundou o barco. Morreram dois colegas meus. Nunca recuperámos o corpo de um e do outro só recuperámos parte; o resto tinha sido comido por tubarões. (Eu gostava de morrer assim, sabe? Em contacto com a natureza e assegurando que a cadeia alimentar se mantém activa.) Estive também ligado a um projecto que estudou as plantas capazes de subsistir na Serra da Estrela durante o Inverno. Foi suspenso quando uma avalanche (deve lembrar-se disso; vocês noticiaram-na como a única avalanche na Serra da Estrela em não sei quantas dezenas de anos) nos apanhou. Fiquei preso e cheguei a entrar em hipotermia mas sobrevivi. Só me amputaram a ponta do nariz e andei umas semanas quase sem conseguir respirar porque um pedregulho que vinha no meio da neve me partiu seis costelas (as duas que já se tinham partido no acidente das Berlengas e mais quatro). Na Austrália acompanhámos um projecto cuja finalidade era tentar descobrir se não existirão ainda exemplares vivos do tigre-da-tasmânia. Um escorpião picou-me mas resisti bem ao veneno e só abandonei o projecto (que acabou por apenas descobrir uma nova espécie de canguru) quando um diabo-da-tasmânia (vêm sofrendo um terrível surto de tumores na boca, não sei se sabe) me mordeu. Foi ele que me levou estes dois dedos. Quer dizer, os dois dedos que antes aqui estavam…»
«Estou a ver… E no campo do activismo?»
«Participei em muitas acções de que toda a gente ainda se lembra. Protestei várias vezes contra o uso de peles. Numa delas utilizámos tinta vermelha para manchar casacos à saída dos Globos de Ouro da SIC. Levei uma bofetada da filha da mãe da Clara de Sousa e o curioso é que ela nem sequer estava com casaco de peles… Invadimos um matadouro de suínos para chamar a atenção para o modo como os humanos tratam os animais, criando-os em condições degradantes e assassinando-os de forma grotesca. (Nem deve ser preciso dizer que sou vegetariano mas preferia nem plantas ter de comer; infelizmente, somos forçados a comer alguma coisa, não é?) Voltando à invasão do matadouro: prendemos os trabalhadores numa câmara frigorífica e libertámos os porcos todos. Na confusão (eles estavam tão excitados, vendo-se em liberdade), fui atirado ao chão e alguns passaram-me por cima, partindo-me o braço direito e uma das costelas que se já tinha partido nas Berlengas e na Serra da Estrela. E, claro, manifestei-me na Dinamarca contra o aquecimento global, no pino do Inverno. Cheguei a destruir duas montras mas depois escorreguei num pedaço de gelo e cortei-me todo nos fragmentos de vidro. Houve ainda aquela vez em que...»
«Cuidado com a gaivo…»
«Ah!»
«Caramba, acertou-lhe em cheio. Deviam ter aqui um guarda-sol.»
«Não tem importância. Já lhe expliquei: estou habituado aos dejectos de gaivota. É verdade que se entranham no cabelo e o deixam empastelado. Mas acabo por nem ligar. Às vezes uso um capuz mas sinto-me a fazer batota com a Natureza.»
«E isso é que não pode ser...»
«Obviamente. Não está a ser irónico, pois não?»
«Claro que não. Desculpe. Quais são os seus planos para o futuro?»
«Continuar a lutar pelos direitos dos animais, por ecossistemas equilibrados e por políticas que assegurem a sobrevivência do planeta, claro. Sabe que, se mantivermos as políticas actuais, dentro de...»
«Sim, sim. Fizemos uma reportagem sobre isso na semana passada. Mas agora é capaz de ser mais difícil para si, não lhe parece?»
«Farei o que estiver ao meu alcance. E posso servir como símbolo da luta pelos direitos dos animais e da preservação da natureza. Como o Tom Cruise se tornou num símbolo contra a guerra do Vietname no filme Nascido a 4 de Julho. É por isso que aceitei dar a entrevista.»
«Claro. E eu agradeço-lhe que o tenha feito. Acabámos. Quer ajuda com a cadeira de rodas?»
«Não, obrigado. Já me vou habituando a ela. Está a ver como consigo manobrá-la? Não gosto dela (é um objecto artificial, de metal e plástico; horrível) mas tento integrá-la o melhor que posso na minha visão do mundo. Foi por isso que a pintei de verde.»
«Não falámos sobre o acidente que o obriga a usá-la porque já toda a gente o conhece. Foi muito noticiado.»
«Eu entendo. Vai para que lado? Para ali? Eu também.»
«Mas se quiser dizer alguma coisa sobre o assunto, esteja à vontade.»
«Digo-lhe o que digo sempre: as touradas são uma aberração que tem de acabar. Não me arrependo nada de termos invadido aquela herdade em protesto contra o destino dos touros. Que um me tenha acertado e partido a coluna é uma prova da raiva que eles próprios sentem.»
«Hum-hum. Claro. Olhe, obrigado mais uma vez. Bolas, o vento está cada vez mais forte. É melhor ter cuidado com esses degraus.»
«O quê?»

«CUIDA... Merda.»



publicado por José António Abreu às 16:12
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Sábado, 20 de Fevereiro de 2010
Os gestores e crise: 16
«A responsabilidade social também se aplica aos funcionários», disse o director de recursos humanos.
O administrador pareceu surpreendido. «Ah, sim? De que modo?»
«É suposto as empresas ajudarem-nos a melhorar os conhecimentos e a forma como se inserem na sociedade.»
«A sério? Ridículo. Já lhes damos emprego. Nos dias que correm podem considerar-se com sorte.»


publicado por José António Abreu às 10:00
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Sexta-feira, 18 de Dezembro de 2009
Amor e malas de senhora

«Quando começou?»

«Há quase um ano.»
«O que é que o levou a isto?»
«Não vai acreditar no que lhe vou dizer.»
«Por que diz isso?»
«Porque não vai.»
«Não tenho razão para duvidar do que me vai dizer. Aceitou falar comigo, dar a entrevista, tenho que assumir que vai dizer a verdade.»
«…»
«Ponha-me à prova. Diga lá: o que é que o levou a roubar carteiras de esticão?»
«O amor à minha mulher.»
«…»
«Está a ver? Não acredita.»
«Não. Acredito. Só fiquei surpreendido. Há-de admitir que não é uma justificação habitual.»
«Talvez…»
«Gostava que desenvolvesse a ideia. De que modo é que o amor à sua mulher o levou a roubar malas?»
«Como todas as mulheres, ela gosta de malas mas não temos dinheiro para as comprar. Então decidi roubar algumas para lhe oferecer.»
«Estou a ver… É uma ideia interessante. E como é que ela reagiu?»
«Primeiro ficou assustada. Mas depois gostou. Percebeu que eu o fazia por ela.»
«Há quanto tempo estão casados?»
«Quase dois anos.»
«E, diga-me lá outra vez, quando é que começou a roubar carteiras para lhe oferecer?»
«Há… dez meses e meio. Foi quando tive a ideia. Antes só assaltava automóveis. Agora faço as duas coisas. Uma por necessidade, a outra por prazer. Quer dizer, pelo prazer de lhe dar as carteiras.»
«Quantas já roubou?»
«Tem piada que pergunte porque realmente contamo-las, sabe? Até brincamos com aquela mulher do gajo que era ditador das Filipinas, não era?, que tinha dois ou três mil pares de sapatos. A gente ri-se e diz que a minha mulher há-de ter tantas carteiras como ela tinha sapatos.»
«Quantas já roubou até agora?»
«Cento e catorze.»
«Cento e catorze?»
«Sim.»
«A sua mulher precisa assim de tantas carteiras?»
«Para dizer a verdade, não. Mas tornou-se uma espécie de passatempo, sabe? E gosto de ver a cara dela quando lhas ofereço. É das poucas alturas em que fica mesmo feliz.»
«Ela não es…»
«E depois não é tão fácil como se pensa, sabe? Ela gostava de ter uma Guess. Então eu jurei que lhe ia dar uma. Sabe quantas tive de roubar até conseguir uma genuína? Doze. As primeiras onze eram todas falsificações. Já andava farto do raio das carteiras Guess e quase a desistir. E não foi muito melhor arranjar uma Louis Vuitton verdadeira. Só consegui à oitava tentativa. E ainda tenho dúvidas de que seja mesmo verdadeira.»
«Nunca foi apanhado pela polícia?»
«Nã. Eu tenho cuidado quando roubo carteiras. Mas é verdade que nessas semanas em que andei atrás das Guess já andava tão desesperado que me distraí e ia sendo apanhado a forçar a porta dum Ford. É muito fácil entrar nos Fords, sabe?»
«Não, não sabia. Eu tenho um Ford.»
«Então já fica a saber. Já não precisa de ficar admirado se chegar ao pé dele e alguém o tiver assaltado.»
«Err, obrigado. Voltemos às malas. Costuma devolver os documentos?»
«Ainda pensei nisso, a sério que pensei. Mas não. Não ia mandar-lhes uma carta, não é? E tenho medo de deixar impressões digitais ou uma coisa assim. Também é só ir à loja do cidadão e arranjam-lhes logo outros documentos.»
«As mulheres a quem as rouba não oferecem resistência?»
«Não lhes dou hipótese. Quer dizer, já houve umas quantas que se conseguiram agarrar à mala antes de eu lha ter arrancado das mãos.»
«E o que aconteceu?»
«Foram parar ao chão. Não sou de desistir quando começo um trabalho.»
«Magoaram-se?»
«Não sei. Não fico a ver. Devem ter esfolado os joelhos ou as mãos.»
«E não se sente mal por causa disso?»
«Não é um problema meu, pois não? A minha mulher anda na rua e corre o mesmo risco.»
«E tem medo, ela?»
«Um bocado. Agarra as carteiras com uma força que só visto. Eu já lhe disse que se algum filho da puta lhe tentar roubar uma, que a deve deixar ir. Havemos de arranjar outra. Se calhar até aquela outra vez. Mas ela diz que nem pensar. Fui eu que lhas dei e ela não as quer perder.»
«Como é que escolhe as que rouba?»
«Antes era um bocado ao calhas mas agora já sei do que ela gosta.»
«E do que é?»
«Coisas bonitas, com pêlo e letras e fivelas. E de cores diferentes. Uma preta, uma castanha, uma vermelha, uma roxa, uma verde, uma cinzenta,…»
«Estou a ver. E ela só gosta de malas?»
«Não, claro que não. É mulher, não é? Também gosta de outras coisas.»
«Mas compra-as?»
«Poucas. Não temos dinheiro. Recebemos o rendimento mínimo mas é uma miséria, não chega para nada.»
«Para ela, você só rouba carteiras?»
«Ouça, eu também roubava sapatos se pudesse. Mas não é assim tão fácil, pois não? Tinha que deitar as mulheres no chão e tirar-lhos dos pés. Era demasiado perigoso.»
«Devia ser, devia.»
«Mas olhe que bem gostava. Por que é chato, está a ver? Agora a minha mulher tem dezenas de malas espectaculares mas não tem roupa à altura nem sapatos a condizer.»
«É chato, de facto. Bom, acabámos. Foi interessante falar com alguém com um amor tão evidente pela mulher.»
«Obrigado. Pode não acreditar e até achar que é piroso mas ela é a única coisa que me interessa. Sou capaz de fazer tudo por ela.»
«Não acho nada piroso, acho bonito.»
«Sabe o que é que vou fazer com o cheque que vocês me prometeram?»
«Não. O quê?»

«Vou à Fashion Clinic – onde os futebolistas vão às compras, sabe? O Cristiano Ronaldo e assim... É uma loja do caraças; até já pensei em assaltá-la mas não é a minha especialidade – vou lá comprar-lhe uns sapatos da Prada que ela viu na montra na semana passada e adorou. Vai ficar tão contente quando lhos der…»



publicado por José António Abreu às 07:45
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Domingo, 13 de Dezembro de 2009
Os gestores e a crise: 15

«Este Natal vamos dar coisas a pessoas necessitadas», disse o administrador. «E no futuro podemos alargar a medida a outras épocas do ano.»

O director de marketing disse: «Excelente. Acções dessas dão uma óptima imagem. As pessoas gostam das empresas que se preocupam com os mais desfavorecidos. Vamos potenciar o efeito ao máximo. Que orçamento temos para comprar os bens?»
O administrador franziu o sobrolho. «Orçamento? Nenhum. Vamos dizer aos nossos funcionários para trazerem coisas de casa.»

«Ah, brilhante. Brilhante.»



publicado por José António Abreu às 21:01
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Segunda-feira, 7 de Dezembro de 2009
Os gestores e a crise: 14
«A nova moda é a responsabilidade social das empresas», disse o administrador. «O que é que fazemos nesse campo?»
O director de recursos humanos hesitou. «Como costuma jogar lá, patrocinámos o torneio de golf da Quinta dos Buracos Verdes.»
«Óptimo. Isso tem relevância social, não tem? Arranje mais umas quantas coisas do género e encomende um relatório bonito.»


publicado por José António Abreu às 10:38
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Quinta-feira, 26 de Novembro de 2009
Ficção (ou: Nada de Dois, 2)

VASCO

Sou um homem, fisicamente sou um homem, tenho um cromossoma Y, mas não sou um homem quando me comparas com outros homens.

 
JOANA
Eu não te comparei com outros homens.
 
VASCO
Claro que comparaste. Não fui eu que te escolhi, nunca somos, foste tu que me escolheste, por razões óbvias e outras misteriosas para mim, e outras ancestrais, mas quando me escolhes, escolhes por comparação, por comparação com os homens que tiveste e podes ter, com os outros homens que te desejam.
 
JOANA
Mas tu dizes que eu te escolhi como se isso fosse uma coisa negativa. Vês tragédias onde outros vêem vitórias.
 
VASCO
Porque quando me escolhes presumes que sabes quem eu sou?
 
JOANA
Não é nada disso. Às vezes as tuas teorias não percebem nada. Tu escolheste-me porque me querias conhecer, porque achavas que me conhecias, e eu fiquei espantada porque tu me conhecias tão bem, e também te quis conhecer, perceber porque é que me percebias, ficar alegre pela pessoa que tu imaginavas e que eu era de alguma maneira, ficar feliz por me imaginares como sou e por teres imaginado alguém que sou eu.
 
VASCO
Mas eu não sou o que tu queres.
 
Desconfiando que não acreditaremos, ele diz que esta é a sua primeira obra de ficção. Pois sim. Caro Pedro: para si, pode ser ficção. Mas – quando é que os escritores aprendem?  fiction is in the eye of the beholder.
 
Excerto de Nada de Dois, de Pedro Mexia. Edição Tinta-da-China. (Deve ser saboreado devagar.)


publicado por José António Abreu às 20:21
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Segunda-feira, 23 de Novembro de 2009
A economia portuguesa explicada às crianças

«Como sabem, o dinheiro é muito importante. Permite comprar coisas bonitas. Mas, para se ter dinheiro, é preciso trabalhar e fazer outras coisas para vender. E é preciso que haja pessoas a querer comprá-las. Ora os portugueses não conseguem vender às pessoas dos países estrangeiros (diz-se 'exportar') coisas suficientes para compensar o dinheiro que gastam em coisas que vêm do estrangeiro (automóveis e computadores e brinquedos sex… e consolas de jogos e coisas assim). Então, através dos bancos, têm que pedir dinheiro emprestado lá fora. As pessoas gastam o dinheiro que pedem a comprar mais coisas, muitas delas estrangeiras, e a irem de férias ao estrangeiro, onde deixam outra vez o dinheiro. As empresas gastam o dinheiro em equipamento para as fábricas (serras automáticas e máquinas-escavadoras e computadores) e em salários e às vezes também em carros e viagens para os donos delas, o que é muito feio mas ninguém diz nada porque ninguém se deve meter na vida dos outros. O Estado (que é comandado pelo governo, que tem à frente aquele senhor chamado Sócras que aparece na televisão com ar zangado e aquele outro senhor chamado Teixeira dos Santos – isso, o das bochechas) gasta o dinheiro que pede (e o que os portugueses lhe dão e o que a União Europeia, que é uma espécie de clube de países amigos uns dos outros, lhe dá) em projectos (auto-estradas, pontes, aeroportos e linhas de comboio) que assegura irem melhorar a situação mas, na realidade, não melhoram nada porque ainda ninguém arranjou forma de exportar auto-estradas, pontes e aeroportos. (Pois, não é fácil; estão agarrados ao chão.) E o comboio pode ir ao estrangeiro mas volta. E, se tiver poucos passageiros, até faz o Estado gastar dinheiro porque não é barato tê-lo a andar de um lado para o outro sem ninguém. O Estado precisa então de pedir mais dinheiro e vai outra vez buscá-lo ao estrangeiro. (Não, nem sequer usa o comboio porque hoje em dia o dinheiro vem pelos fios). E gasta-o novamente em coisas parecidas. E pede mais dinheiro. E gasta-o mal outra vez. E pede mais dinheiro mas para o conseguir tem de começar a garantir que paga juros mais altos. (Juros é eu pedir cem e ter que devolver cento e dez; não é justo mas é assim que as coisas funcionam porque se não se prometesse pagar mais, ninguém emprestava o dinheiro, estão a ver?) E, depois de ter o dinheiro, gasta-o na segunda auto-estrada entre Ponte da Barca e Arcos de Valdevez. (São duas terras muito bonitas e perto uma da outra, no Minho.) E pede mais dinheiro, garantindo pagar juros exorbitantes. (Quer dizer muito altos.) E depois – já perceberam, não já? – os estrangeiros começam a pedir o dinheiro de volta e o Estado não o tem. Nessa altura o que é que faz? Tira-o aos portugueses. Só que, como são portugueses, não promete devolver-lhes o dinheiro. E muito menos pagar juros. (Ah, vêem como os juros são afinal uma coisa boa?) E depois toda a gente é infeliz porque há poucos empregos e ganha-se mal e o Estado ainda fica com a maior parte do dinheiro das pessoas. Perceberam? Óptimo. E agora pronto. Está na hora de dormir. Bons sonhos. Que é como quem diz, não sonhem com o futuro.»

 

«Olhe…»

«Sim?»
«Eu já não sou assim tão novo.»
«Eu sei. Claro que não. Já és bastante crescido»
«E cheguei a uma conclusão.»
«Ah, sim? Qual foi?»
«A economia portuguesa não passa de um gigantesco esquema de Ponzi.»
«Hã?»
«Assim tipo-Madoff.»
«Pois. Percebo o que queres dizer.»
«E ninguém é preso? O Madoff foi.»
«Parece que não é assim tão simples, sabes. E acho que cá também não é permitido prender pessoas do governo.»
«Ah. Então estamos lixados, não é?»
«Não, que ideia. O que é que te fez pensar isso? Eu às vezes exagero. Vá, dorme bem que amanhã vamos ao centro comercial comprar a PS3.»

«Yes!»



publicado por José António Abreu às 21:24
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Segunda-feira, 16 de Novembro de 2009
Kate e um amigo meu
A inclusão de Aerial na lista que João Távora vem fazendo no Corta-Fitas lembrou-me como, em finais de 1993 ou inícios de 1994, um rapaz de vinte e poucos anos decidiu escrever um conto no qual um rapaz apenas um pouco mais velho (talvez perto dos trinta) elaborava uma carta à mulher de quem decidira separar-se, lembrando a sua vida até ao momento. A carta (e a vida) era pontuada por excertos de letras das canções de Kate Bush. Tanto quanto sei, ele nunca entendeu por que escreveu o conto ou, mais ainda, por que escolheu as letras dos temas de Bush. Consigo pensar num par de hipóteses – talvez por Kate ser uma mulher idiossincrática e inacessível, aparentemente tão afastada da normalidade dele (e do homem e da mulher do conto) quanto perto do seu ideal (muito, muito fantasioso) de mulher; talvez apenas pelo facto de apreciar tanto as letras das canções que se sentiu impelido a construir algo em torno delas – mas, fosse qual fosse o factor que o motivou, o que interessa agora é ter passado horas transcrevendo excertos das letras dos folhetos dos CDs para um caderno, escolhendo depois os mais adequados para cada fase do conto ou – quando não havia outra solução – moldando o conto ao material disponível.
 
Tenho um exemplar. Começa assim:
 
When you left the door was (slamming)
You paused in the doorway
As though a thought stole you away.
I watch the world pull you away.
(...)
Woman, let me in
Let me bring the memories
Woman, let me in
Let me bring in the Devil Dreams
 
      Está acabado. Já não tenho dúvidas. Aqueles momentos de indecisão – mistura de ilusão expectante por ainda ser capaz de ter esperança, de sonhar que ainda é possível que tudo se componha, e de nojo pela falta de coragem para assumir que acabou –, esses momentos não voltarão. Estou determinado a que assim seja. Não quero reentrar no ciclo que vimos repetindo há meses – se calhar, menos abertamente, há anos. Talvez desde o início.
      «És incapaz de amar alguém real!» Atiraste-me a acusação à cara ontem à noite, depois de duas horas de silêncio acusatório, em que tentei simultaneamente perceber do que era acusado e reflectir para ti a hostilidade que me atiravas. Sempre em silêncio, ou quase. Devemos ter trocado no máximo uma dúzia de frases, curtas e discretamente assassinas. Depois sim, mais tarde discutimos. Outra das nossas trocas de queixas e acusações feitas com frieza e ironia selvagem. É curioso como raramente berramos, partimos louça, atiramos objectos. Comentei-o uma vez. Disseste que não sou suficientemente emocional para esse tipo de atitudes. «O Sr. Autocontrolo...» Já não se pode sofrer em silêncio.
      Não sou capaz de amar alguém real? A acusação feriu-me bastante mais do que as habituais tiradas cáusticas com que me costumavas presentear. Não havia o mínimo cinismo na acusação. Era tão pensada, tão sentida, tão definitiva, que não fui capaz de reagir. Percebeste perfeitamente o efeito que as tuas palavras tiveram. Não teres sentido necessidade de dizer mais é prova suficiente.
      Relembrei aquela curta frase inúmeras vezes nas poucas horas que decorreram desde então. Com ultraje, primeiro. Eu tinha-te amado. Verdadeiramente. Talvez ainda amasse. Com dúvida, depois. Não tinham existido tantos e tantos pormenores em ti e no teu comportamento que, mesmo antes do casamento, eu fora afastando como irrelevantes? Seriam afinal importantes – cruciais, até? Com a triste certeza, enfim, de que tinhas razão nessa acusação parcial implícita dentro da tua acusação geral. Se tu és aquilo que vejo hoje, passados quase dez anos desde que nos conhecemos, então eu nunca te amei, de facto. Limitei-me a amar a imagem que me mostraste ou que eu imaginei – vai dar no mesmo e essa dúvida não é campo para acusações. Os pormenores que pareceram irrelevantes durante anos assumiram a sua exacta medida (muito ou pouco racional, não importa) pela primeira vez. A medida exclusiva. A medida que nos exclui um do outro.
      E então? Se não te amei verdadeiramente, quem é que eu amei?
 
When I was a child
Running in the night
Afraid of what might be
Hiding in the dark
Hiding in the street
And of what was following me
 
      Ouvi um incontável número de vezes o meu pai queixar-se, num tom de voz onde a desilusão se misturava com uma raiva nascida do desespero, que eu não era normal. «Está sempre metido em casa, encafuado no quarto, a ler e a ouvir música. Que raio de vida é essa?» A minha mãe calava-se ou dizia que eu era um bom rapaz, sem problemas na escola, à excepção dos comentários demasiado retraído; pouco comunicativo; não participa que vinham com regularidade ao lado das notas nas folhas de final de período escolar. Isso não satisfazia o meu pai. Se, até aos doze ou treze anos, a minha maneira de ser não o incomodou muito, a partir daí, sempre que tentava levar-me a sair de casa para jantares com os amigos (dele; eu não tinha amigos) ou integrado em excursões ao campo ou à praia, e eu dizia que não queria ir, ele ficava desesperado. Do meu quarto, ouvia-o queixar-se à minha mãe enquanto, no leitor de cassetes, ela cantava.
 
She knows that I've been doing something wrong
But she won't say anything.
She thinks that I was with my friends yesterday
But she won't mind me lying
Mmh, because: —
Mother stands for comfort
Mother will hide the murderer.
 
      Ela parecia estar sempre a cantar, no meu quarto. Especialmente por volta dos meus catorze ou quinze anos (há uma dúzia, portanto). Isso fazia desesperar a minha mãe. «A música que tu ouves! Não podes ouvir música normal, como toda a gente?» Mas eu não era normal – não era o que me estavam sempre a dizer? E aquela era a música que eu gostava de ouvir. O presente que mais agradecia ao meu pai e que mais me levava a amá-lo, mesmo nas alturas em que ele parecia ter vergonha de possuir um filho como eu (ainda por cima, único), era o rádio com leitor de cassetes que me oferecera no meu décimo terceiro aniversário. Um rádio grande, estéreo, com um único deck, de uma qualidade que nesses anos eu tomava como sendo alta-fidelidade. Mas alta-fidelidade era a minha. Ao rádio e a ela. A minha mãe outra vez: «Ainda se ao menos tivesse uma voz bonita! Mas é horrível, esganiçada!» Eu dizia: «Não é nada. Ouve-a com atenção! E tenta percebê-la.» Esforço inútil. Até porque a minha mãe nunca falou ou percebeu inglês. Eu, pelo contrário, escolhera-o logo no quinto ano como língua estrangeira principal. E, por volta dos quinze anos, desenrascava-me já bastante bem.
      Era pois com o espírito confuso que ela me defendia dos ataques plenos de angústia do meu pai. A minha auto-exclusão da sociedade, dos ritos próprios dos jovens da minha idade, faziam com que estivesse mais tempo em casa junto dela e isso era bom. Mas o meu comportamento e os meus gostos causavam-lhe a mais profunda das confusões.
      Ouve, dizia eu. Não percebo, respondia ela.
 
I see the people working and see it working for them,
And so I want to join in, but I find it hurts me.
(...)
I want the answers quickly, but I don't have no energy,
I hold a cup of wisdom but there is nothing within
 
      O meu pai era infeliz porque eu não era como ele. A minha mãe era infeliz porque não percebia se devia desejar que eu fosse diferente quando, sendo assim, até estava tão perto dela. Eu era infeliz porque — porque me sentia só.
 
O conto (uma diatribe banal e incoerente, onde se mistura o quão reconfortante pode ser o refúgio na arte com os malefícios de comparar a realidade com mundos e pessoas ideais, inexistentes fora da imaginação) prossegue até regressar ao momento da ruptura do casamento, terminando com as letras de Kate Bush sobrepondo-se a tudo o resto.
 
Last night, in the sky,
Such a bright light.
My radar send me danger
But my instincts tell me to
Keep breathing
 
      Estou a ouvi-la de novo. E confesso que me conforta muito mais do que estas incoerentes linhas que escrevi por não saber de que outra forma lidar com os meus sentimentos. A sua voz pacifica-me, permite que me reconcilie comigo próprio (o ponto em que, passados os primeiros tempos, falhaste mais clamorosamente). A música acaricia-me, no seu ritmo sincopado e erótico. Quase consigo ouvir a minha mãe queixando-se de ser pouco melódica...
 
Take away the love and the anger
And a little piece of hope holding us together
Looking for a moment that'll never happen
Living in the gap between past and future
Take away the stone and the timber
And a little piece of rope won't tie us together
 
      Se lesses o que escrevi achá-lo-ias ridículo. Não foi assim, dirias. Tu nunca me amaste assim, dirias. Tudo o que escreveste não passa de uma fantasia. É nisso que és bom: a inventar fantasias. A lidar com a realidade és péssimo, dirias. Nenhum emprego te satisfaz, ninguém corresponde às tuas expectativas. Serás sempre um frustrado, dirias. Frio. Insensível.
      Não sou frio. Não sou insensível.
 
That cloud, that cloud — looks like Ireland,
C'mon and blow it a kiss now.
But quick 'coz it's changing in the Big Sky
It's changing in the Big Sky now
We're looking at the Big Sky.
You never understood me
You never really tried.
 
      E ainda acredito que tu me amaste.
 
You don't want to hurt me
But see how deep the bullet lies
Unaware I'm tearing you asunder
Ooh there is thunder in our hearts
Is there so much hate for the ones we love
 
      A música... Ela... Tão mais... palpável.          
 
It's alright I'll come 'round when you're not in
And I'll pick up all my things
Everything I have I bought with you
But that's alright too
It's just everything I do
We did together
And there's a little piece of you
In whatever
 
      Precisarei de dizer mais? Talvez mais isto: se não te amei (e recuso a conclusão a que cheguei antes: os pormenores foram apenas pormenores, sem qualquer importância), nunca amei alguém real, de facto, com a possível excepção da minha mãe. Achas esta confissão digna de pena? Mas quantas pessoas alguma vez amaram? Tu?
      Não me faças rir.
 
In the ice, splitting, splitting sound,
Silver heels spitting, spitting snow
There's something moving under
Under the ice,
Moving under ice — through water
Trying to get out of the cold water
"It's me"
Something, someone — help them
"It's me"
 
O rapaz que escreveu o conto – um bom amigo meu, apesar dos embaraços frequentes que me causa – está hoje muito diferente. Acha ele. E eu, mas só às vezes.


publicado por José António Abreu às 13:41
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Sábado, 12 de Setembro de 2009
Os Gestores e a Crise: 13

A reunião estava a terminar. O administrador apresentara em detalhe o plano de reestruturação proposto pela empresa de consultoria. Calou-se finalmente e perguntou se alguém desejava fazer comentários. Por momentos, pareceu que ninguém iria falar. Então, o director que falara antes disse: «Se vamos descentralizar algumas operações e a maioria dos processos de decisão, depois de termos feito o oposto há três anos, não seria mais lógico aguentarmos dois ou três anos e evitarmos os custos da centralização que teremos de fazer nessa altura?»

Os restantes directores olharam para os blocos de notas que tinham à frente como se, de súbito, lá tivesse surgido escrito algo inesperado. Mais uma vez a irritação foi visível no rosto do administrador. Quando parecia prestes a responder, o director que colocara a pergunta sorriu e disse: «Estou só a brincar.»
Os outros directores entreolharam-se e depois focaram a atenção no administrador, que, após um instante de hesitação, soltou uma gargalhada: «Ah-ah. Boa piada.»

Todos os directores riram abertamente.



publicado por José António Abreu às 17:34
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