Jean-Luc Thérier no Rali de Portugal (TAP) de 1973.
Creio que foi em 1973, mas pode ter sido em 1972. Do local, recordo-me bem: uma encosta da Serra do Açor, por cima da povoação de Folques, a meia dúzia de quilómetros de Arganil. Hoje a estrada encontra-se asfaltada, na altura era em terra batida. Dependendo do ano, eu tinha quatro anos e meio ou três anos e meio. Estava em pé no cimo de uma barreira, com o meu pai de um lado e a minha mãe do outro. Trata-se, aliás, de uma das memórias mais antigas que tenho dos meus pais. Devo-a à pequena berlineta azul que saiu em derrapagem de uma curva quase em frente, percorreu de nariz no ar as poucas dezenas de metros até à curva em que nos encontrávamos, descreveu-a, fez a seguinte, mais fechada, com a traseira a deslizar, e seguiu encosta abaixo, dançando de curva para curva. Fiquei extasiado. Seguiram-se outros carros espectaculares, entre os quais um par de Porsches 911, mas a minha devoção fora garantida pela berlineta azul. De tal modo que, tendo nas décadas seguintes visto muitos outros carros de ralis (do Fiat 131 Abarth ao Mitsubishi Lancer Evolution, passando pelo belíssimo Lancia 037 e pelos brutais Audi Sport Quattro S1 e Peugeot 205 Turbo 16), não somente nas estradas de Arganil mas também nas da Lousã e nas de Fafe, nenhum deles alguma vez conseguiu destroná-la do topo das minhas preferências.
A berlineta azul era um Alpine Renault A110 e nascera da paixão do francês Jean Redelé pela competição automóvel. Natural de Dieppe, filho do dono de uma oficina, concessionário Renault, Redelé começou por preparar e pilotar Renaults 4CV (o famoso «Joaninha») em provas como o rali de Monte Carlo e as Mil Milhas. Em 1955, com a apresentação do A106, ainda sob a base do Renault 4CV, fez nascer a marca «Alpine», nome inspirado pelos resultados que conseguira nos troços dos Alpes. Em 1957 surgiu o A108, baseado no Renault Dauphine, e em 1962 o A110, que utilizava a base do Renault 8. A primeira versão do A110 estava equipada com um motor de apenas 956 cm3 debitando 55 CV (SAE). Ao longo dos anos, as versões disponíveis para compra iriam ver a cilindrada subir até aos 1647 cm3 e a potência até aos 140 CV (na versão de 1605 cm3) enquanto as versões de competição chegariam aos 1860 cm3 e aos 190 CV. Como no Porsche 911, a tracção era feita às rodas traseiras e o motor estava posicionado atrás do eixo motriz. Extremamente leve, o A110 era difícil de controlar no limite. Contudo, nas mãos de pilotos como Bernard Darniche, Jean Pierre Nicolas e Jean-Luc Thérier, ganhou inúmeros ralis, entre os quais o de Portugal, em duas ocasiões: 1971 (Nicolas) e 1973 (Thérier). (Pepita de informação acessória: Michele Mouton, muito mais associada aos anos 80 e à Audi, começou a carreira num A110.) Em 1974, o surgimento do Lancia Stratos, concebido especificamente para a competição e equipado com motor central de origem Ferrari com 260 CV, marcou o final do seu período de glória. Totalmente propriedade da Renault desde 1973, a Alpine viria ainda a ganhar as 24 Horas de Le Mans em 1978, com o protótipo A442B, mas a crise do petróleo e erros de gestão no posicionamento da marca (nem o A310, lançado em 1971, ainda com Redelé à frente da empresa, nem o GTA, lançado em 1984 e apostando numa imagem mais cosmopolita, tiveram sucesso) levaram ao seu desaparecimento.
O clássico e o recém-nascido.
Depois de entrarem na Morávia, os alemães instalam-se ali e ocupam Ostrava, cidade de carvão e de aço, perto da qual Emil nasceu e onde prosperam indústrias como a Tatra e a Bata, as mais importantes, sendo que ambas oferecem um meio para avançar: o automóvel e o calçado. A Tatra concebe automóveis muito bonitos e caros, a Bata produz sapatos não muito feios a preços baixos.
Jean Echenoz, Correr.
Edição Cavalo de Ferro, tradução de Virgílio Tenreiro Viseu.
Isto acontecia na primeira metade da década de quarenta. Entretanto, a Tatra deixou de produzir carros bonitos para passar a produzir camiões feios. Já a Bata, bom, digamos que é agradável constatar que, apesar dos setenta anos decorridos, do nazismo e do comunismo, algumas tradições ainda são o que eram.
Tenho pela primeira vez um carro com sistema de navegação e de telefone integrados. Pela primeira vez também, uma mulher (é pena o fabricante não incluir uma fotografia, mas assim sempre se pode exercitar a imaginação) está à vontade com mapas (ainda que – pormenor delicioso de realismo – já me tenha metido num beco sem saída), segue as minhas indicações sem hesitar, não se irrita quando não sigo as dela, entende quase sempre (e a utopia que seria esperar que pudesse ser sempre) o que digo (é certo que dentro de um vocabulário limitado, mas isso também não é assim tão incomum), cala-se quando prefiro que esteja calada, nunca recomenda que paremos e perguntemos a alguém, não tem problemas com a música que gosto de ouvir nem com o volume a que a ouço, assiste aos meus telefonemas para outras mulheres sem mostrar desagrado (até faz a ligação) e, ainda por cima, vem com um automóvel. Falta à senhora um pouco de capacidade de iniciativa (um bocadinho, às vezes é agradável) e, como está, não responde convenientemente aos impulsos mais físicos (para isso, seria preferível a versão com fotografia – ou com clips de vídeo) mas, tivesse o carro mais espaço e uma casa de banho (e, já agora, mais uma centena de cavalos de potência), ponderaria seriamente começar a viver dentro dele.
Claro que os perfumes masculinos são feitos (e se não são, deviam ser) para agradar às mulheres. E claro que poucas mulheres comprariam um perfume assim para elas próprias (tontas; que homem conseguiria resistir?), ou mesmo para oferecer a um homem. Pelo que, comercialmente, talvez não seja uma boa ideia. Apesar disso, lamento que, tanto quanto eu saiba, ninguém tenha ainda decidido correr o risco. Porque a verdade é que há poucos odores tão agradáveis para um homem como o cheiro a carro novo.
Planear com antecedência: local, produtos a usar, disponibilidade. Começar devagar. Dar incidências distintas ao jacto de água, por vezes fazendo-o apenas acariciar a superfície, noutras atingi-la com toda a potência. Reparar como a água é reflectida em ângulos inesperados. Ensaboar. Descobrir a subtileza das curvas. Tactear as zonas que desde o início foram fonte de atracção. Esfregar e ouvir o gemido que soa quando se pressiona a esponja com um pouco mais de força. Introduzir a extremidade dos dedos nos pontos mais apertados. Usar novamente o jacto de água e ver como as bolhas de champô insistem em reaparecer em certos locais. Secar devagar, com uma camurça suave. Pode já ter entrado nele várias vezes mas um homem só fica íntimo de um carro novo depois de o lavar à mão pela primeira vez.
No filme de Joe Dante, um simpático animalzinho multiplicava-se se fosse molhado. Passa-se o mesmo com os automóveis. Basta começar a chover e as estradas ficam entupidas com eles.
E que tal um post de que o nosso Primeiro-Ministro, ainda fresquinho do acordo com a Renault - Nissan para a instalação de uma fábrica de baterias para carros eléctricos em Portugal, teria orgulho? Em Berlim, no fim-de-semana do concerto dos U2, mostrava-se o Tesla Roadster na zona da Potsdamer Platz. Havia mesmo uns quantos felizardos com direito a experimentá-lo. (Não, nada de políticos; olhem com mais atenção e verificarão que não é Angela Merkel quem está dentro do carro mas uma menina a quem debalde enderecei o meu melhor sorriso na tentativa de ganhar um drive-test.) Para alguém como eu, apaixonado por automóveis desde miúdo, os veículos eléctricos, e especialmente os desportivos, são uma espécie estranha. O Tesla tem linhas compactas e simpáticas, acelera de zero a cem em 3,9 segundos (poucos Ferraris o fazem) mas não ouvi-lo arrancar (escuta-se apenas um ligeiro silvo) foi uma experiência estranha. Um desportivo que não ronrona é como o louro de carapinha do velho anúncio do restaurador Olex: pouco natural. Boa parte do prazer de quem o vê passar (e, suponho, de quem o conduz) ausenta-se em parte incerta. Parece-me assim como ter sexo tão safe, tão safe que, além do preservativo, também se usa máscara anti-gripe e luvas de borracha. E não se pode gemer nem gritar. Mas o futuro é implacável e o futuro dos automóveis, mesmo dos desportivos, é muito capaz de ser eléctrico. Nisto, Sócrates pode ter razão. (Admiti-lo não custou tanto como receava.) Suponho portanto que vou ter que me habituar ao Tesla. Ainda assim, espero que os californianos que o fabricam sejam suficientemente previdentes para fornecerem (sendo um desportivo, de série) a possibilidade do sistema áudio do carro poder emitir, em coordenação com os actos do condutor, o som de um verdadeiro motor em funcionamento. Caso contrário, na (improvável) hipótese de algum dia ter um, vou ter que gritar "vruumm vrrrummmm" enquanto conduzo.
Uma das minhas recordações mais antigas é estar num talude baixo sobre uma estrada que então era em terra e hoje se encontra asfaltada, mesmo por cima da povoação de Folques, na zona de Arganil. Os meus pais encontravam-se junto a mim mas o que se me gravou na memória foi um pequeno carro azul saindo em derrapagem de uma curva por entre uma nuvem de pó. Disparou na nossa direcção, passou quase por baixo de nós e continuou a descer a encosta dançando de curva em curva. O carro era uma berlineta Alpine Renault A110. Tornou-se instantaneamente no meu veículo preferido e nem carros de marcas mais famosas, como um Porsche que passou depois, lhe conseguiram roubar o lugar.
Este ano ganhou a Peugeot, conseguindo finalmente derrotar a Audi, grande vencedora dos últimos anos. Foi pena Pedro Lamy, que tinha carro e companheiros para lutar pela vitória, ter sido abalroado nas boxes logo no início. Mas faz parte. A contingência, as histórias de sorte e de azar, a alegria e a tristeza, a energia e o cansaço – tudo isso é Le Mans.
Fotos pedidas emprestadas aqui.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets