como sobreviver submerso.
Segunda-feira, 24 de Outubro de 2016
Diário semifictício de insignificâncias (20)

  

Time's fun when you're having flies.

Velho adágio batraquiano.

 

Na escola secundária recusei dissecar uma rã. Quando a professora de Biologia fez o anúncio, protestei com tamanha veemência que ela admitiu que eu não necessitaria de participar - e depois acabou por desistir da ideia. Os meus colegas com tendências mais sanguinárias ficaram desiludidos mas eu encarei o desagrado deles com a impassividade dos batráquios - depois de pular para longe.

 

No domingo, em mais uma volta no Jardim Botânico do Porto, constatei que os sapos e as rãs já estão quase todos fora de vista, à espera do tempo frio. O Outono conferia ao jardim uma melancolia que me agrada mas, ainda assim, tenho de reconhecer: pelo menos até encontrar o espírito de Sophia de Mello Breyner (é muito mais provável que deambule por aquelas veredas, que conheceu em jovem, do que entre as paredes frias do Panteão), os batráquios são o que mais aprecio no local. (Também me é fácil identificar o que menos aprecio: o ruído do trânsito na VCI, mesmo ao lado). Gosto mais dos batráquios do que dos cactos, das tílias e do liquidâmbar centenário, o que não deixa de ser um bocadinho irónico porque, como o nome deixa entender, ali a ideia é destacar as plantas. Azar. Eu prefiro os sapos e as rãs que, com a tranquilidade de alentejanos particularmente zen, habitam os laguinhos cobertos por nenúfares.
 

A expressão dos sapos e das rãs é uma ode à calma e à paz de espírito. Observo a expressão facial (terão face?) de um sapo e, não obstante a existência de piadas como «o que irrita um sapo? Não encontrar uma mosca na sopa», sou incapaz de o imaginar caindo em histrionismos. Isto faz do Cocas dos Marretas uma incongruência pelo menos tão grande como ele ser do mesmo tamanho da porca com a qual mantém uma relação amorosa, mas encaixa perfeitamente nas rãs cépticas e irónicas de Aristófanes. Paul McCartney também lhes entendeu a maneira de ser em We All Stand Together (bóme, bóme), o velho êxito para crianças que dominou o Top Mais durante semanas a fio há um quarto de século. (Quantos anos viverão sapos e rãs? Tenho que pesquisar, depois de acabar este texto.) Ainda por cima, os sapos e as rãs comem moscas e eu detesto moscas. Até acredito que sejam gostosas (todas aquelas estruturas - cartilagens ou lá o que são - devem fazê-las saber a carapauzinhos fritos engolidos inteiros) mas, ainda assim, não as suporto. A avaliar pela beatífica fisionomia dos sapos, porém, devem ter propriedades extremamente calmantes. Um dia destes, quando me encontrar irritado, hei-de experimentar mastigar uma, em vez de beber um chá de camomila, comer um maracujá ou fechar os olhos, respirar fundo e pensar na Romy Schneider em La Piscine (sim, entrei na idade em que esse tipo de visões já é relaxante). Claro que também há pessoas que comem batráquios - les cons - mas prefiro não pensar nisso. E felizmente há muitas outras que, como eu, os apreciam por razões estéticas e filosóficas. Um exemplo: que outro motivo levaria alguém a chamar «Sapo» a um portal de internet? (A rapidez na captura? Bah, isso terá sido uma desculpa arranjada à pressa para disfarçar o que poderia parecer uma tara.) Um segundo exemplo: alguém abriria uma Frog Store apenas por ânsia de lucro?

 

(Raios partam. Quando comecei a escrever isto, tinha - ou, pelo menos, acho que tinha - uma forma inteligente para lhe colocar um ponto final. Entretanto pus-me a divagar e agora já não me lembro de qual era o plano. Vou tirar a tal dúvida. Pode ser que entretanto me regresse a inspiração ou seja lá o que for que me dá quando me ponho a escrever estas coisas.)

 

Blogue_macro10_2016.jpg

 

Ora bem. No site All about frogs ponto org (há um ponto org sobre sapos!) diz-se que varia bastante mas o normal é viverem entre quatro e quinze anos. Mesmo considerando variações entre espécies, estranho uma amplitude tão grande. Parece-me improvável que um sapo que tenha vivido apenas quatro anos possa ter esticado o pernil - e neles a expressão faz todo o sentido - de morte natural. Se os estudos foram realizados em laboratório (o ponto org admite que os dados são de batráquios em cativeiro), é provável que muitos sapos e rãs tenham cometido suicídio, alarmados com os relatos de dissecações em salas de aula. O máximo, informa também o ponto org, anda pelos quarenta anos. Será a versão Manoel de Oliveira. E, a propósito - os pensamentos seriam como as cerejas se eu apreciasse cerejas -, Oliveira até tinha uma aparência calma, inteligente, ponderada, batraquiana. Sendo que batraquiana não é o mesmo que balzaquiana, obviamente. Isto, Manoel de Oliveira não era, e os batráquios também não são. Assim de repente, classificá-los-ia antes como woolfianos (de Virginia - a pessoa, não o estado): reflexivos, contemplativos, atraindo apenas aqueles que são capazes de ultrapassar as primeiras impressões e perseverar até atingirem um prazer subtil mas intenso. Digamos que as rãs são como mulheres excessivamente magras, com óculos de massa e postura desajeitada (bibliotecárias típicas, portanto), cuja beleza e fogo interior passam despercebidos num simples relance. Digamos que os sapos são como homens com nariz ligeiramente torto, cabelo desgrenhado e óculos (os óculos dão sempre jeito para estas imagens), que depois mostram elevados níveis de sensibilidade (para homens) e abdominais surpreendentemente bem definidos. No fim de contas, é a história do príncipe dentro do sapo. O beijo terá nascido com a Disney, os irmãos Grimm passaram ao papel a versão em que o sapo se transforma em príncipe ao ser atirado contra uma parede pela princesa (o temperamento feminino...) mas o conto é bastante mais antigo do que a empresa do tio Walt ou os manos alemães e, especialmente quando adicionado ao Aristófanes, revela bem que desde há séculos vários povos têm conseguido detectar o encanto dos batráquios (os franceses, por seu turno... oumpff!).
 

Resta-me uma dúvida e, não tendo arranjado melhor alternativa, penso que vou fechar com ela: nascido há 61 anos, como é que o Cocas ainda está vivo?

 

Blogue_macro2016.jpg

 

Mais uma coisa, afinal: a Miss Piggy, essa sim, é um pouco balzaquiana.



publicado por José António Abreu às 21:14
link do post | comentar | favorito

dentro do escafandro.
pesquisar
 
Janeiro 2019
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
18
19

20
21
22
23
24
25
26

27
28
29
30
31


à tona

Speaker do parlamento bri...

Imagens recolhidas pelas ...

Com o Douro por cenário: ...

Paisagens bucólicas: 105

Momentos com significado

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Paisagens bucólicas: 104

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Paisagens bucólicas: 103

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Das formas e cores: 48

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Das formas e cores: 47

Imagens recolhidas pelas ...

Das formas e cores: 46

Imagens recolhidas pelas ...

Cães e gatos pela cidade:...

Paisagens bucólicas: 102

Como Douro por cenário: 8...

Paisagens bucólicas: 101

Imagens recolhidas pelas ...

Imagens recolhidas pelas ...

Paisagens bucólicas: 100

Imagens recolhidas pelas ...

30 comentários
22 comentários
reservas de oxigénio
tags

actualidade

antónio costa

blogues

cães e gatos

cinema

crise

das formas e cores

desporto

diário semifictício

divagações

douro

economia

eleições

empresas

europa

ficção

fotografia

fotos

governo

grécia

homens

humor

imagens pelas ruas

literatura

livros

metafísica do ciberespaço

mulheres

música

música recente

notícias

paisagens bucólicas

política

porto

portugal

ps

sócrates

televisão

viagens

vida

vídeos

todas as tags

favoritos

(2) Personagens de Romanc...

O avençado mental

Uma cripta em Praga

Escada rolante, elevador,...

Bisontes

Furgoneta

Trovoadas

A minha paixão por uma se...

Amor e malas de senhora

O orgasmo lírico

condutas submersas
subscrever feeds