Nota prévia: não se pretende indispor ninguém com este texto, excepto pessoas que o mereçam.
A primeira está relacionada com o método. Há tantos à disposição e nenhum me satisfaz. Sejamos francos: existirá algum que não pareça forçado, incongruente, como uma piada de mau gosto mal contada? Um tiro exige a posse de uma arma e é o pináculo da falta de subtileza: muito visto, barulhento, espalha sangue e pedacinhos de osso e de cérebro a metros de distância. Cortar os pulsos deixa uma imagem de masoquismo (dá a sensação de que se morre devagar) e eu – dizem-mo com frequência e sou forçado a admiti-lo – tenho mais de sádico do que de masoquista. (De resto, quem é quer ser descoberto nu mergulhado numa cabidela?) Saltar de um edifício provoca um grande espalhafato, pode magoar alguém que vá a passar e é uma opção problemática para quem tem medo de alturas. Saltar de uma ponte pareceu-me sempre uma má opção porque, se por um lado a água nos afoga caso a pancada não nos mate, por outro água é coisa mole e pode apenas partir-nos ambas as pernas, do que resultaria uma morte atabalhoada ou um salvamento humilhante por parte de um rabelo a fingir apinhado de turistas a sério. (Os lisboetas podem alterar para um cacilheiro a abarrotar de pessoal sonolento a caminho do emprego, o que sempre seria um pouco menos mau: é improvável que tivessem máquinas fotográficas com zoom e o acontecimento ajudá-los-ia a passar o dia – «Vocês nunca vão ser capazes de adivinhar o que me aconteceu...» –, não fazendo mal nenhum uma pessoa sentir-se útil, mesmo após escolher a via do suicídio – excepto se isso afectar a concentração, claro.) Ainda por cima, um afogado fica mais inchado e luzidio do que uma boneca insuflável tamanho XXL depois de ser partilhada pelo pessoal de uma obra de construção civil, e a água costuma estar fria. (Sim, tenho problemas com a água; por que acham que uso escafandro?) Veneno parece-me um bocado Vitoriano e não é para apreciadores de comida (prefiro empanturrar-me de gorduras saturadas e esperar que a Natureza siga o seu curso). Meter o carro debaixo de um comboio é demasiado doloroso porque estragaria o carro, e meter-me apenas a mim debaixo de um comboio assusta-me a valer. (Para mais, incomoda-me a ideia de ficar com o som do apito do comboio nos ouvidos e recuso dar mais um argumento a Sócrates para construir o TGV, com as suas linhas vedadas.) Electrocussão com 220 V não me oferece garantias suficientes e assaltar uma subestação da EDP para arranjar uma linha de 30 000 V não deve ser fácil (vá-se lá saber se não têm cercas electrificadas) e é coisa para se acabar na cadeia, alvo da atenção de gajos com mais tatuagens do que neurónios. (Antes morrer.) O que resta? Forca? Sou péssimo a fazer nós e é um método terrivelmente demodé. (Imaginem as comparações com o Saddam.) Abrir o gás do fogão? Lamento, segundo o manual de instruções, o meu fogão tem uma válvula de segurança que corta o gás se não for detectada a presença de uma galinha ou de um pedaço de lombo de porco no forno. (É possível que tenha percebido mal o modo de funcionamento do sistema mas gosto de pensar que os electrodomésticos são pelo menos tão inteligentes quanto eu, e ligeiramente mais do que as restantes pessoas – excepto você, caro(a) leitor(a), inteligente o bastante para continuar a ler isto.) Fechar-me numa garagem com o motor do carro a trabalhar? Hmmm, ainda resulta, agora que os catalisadores eliminam o monóxido de carbono dos gases de escape? E onde é que arranjo uma garagem? Não estou a ver a coisa resultar no parque de estacionamento de um centro comercial. Enfim, creio ser suficiente para que entendam o meu problema: todos os métodos suficientemente testados de suicídio (pelo menos de suicídio rápido, que de suicídio lento vamos tratando todos os dias em que nos levantamos da cama para suportar filas de trânsito e um emprego chato) me parecem desagradáveis. Lugares comuns, sem discrição, subtileza ou humor. Talvez sirvam para quem se encontre verdadeiramente no limite da resistência mas não para mim. Não por enquanto, pelo menos. E poucas coisas são mais embaraçosas do que falhar um suicídio por falta de convicção no método escolhido. (Se alguma vez isso me acontecer, posso optar desde já pela Joana Amaral Dias como minha terapeuta?) Resta-me pois continuar a correr pelos campos durante trovoadas, com a armação de um guarda-chuva apontada aos céus. Se um destes dias lerem no jornal a notícia de um homem morto por um relâmpago enquanto passeava à chuva, considerem este post o meu bilhete de despedida.
Mas admitamos que, desesperado com a limitada retórica dos discursos de Sócrates (merece uma retórica limitada continuar a chamar-se retórica?), eu decidia mesmo suicidar-me, e era bem sucedido. O que aconteceria então? A segunda dificuldade. Qualquer suicídio chama a atenção para o suicida e perturba as pessoas que permanecem vivas (ou assim o pensam). Em termos gerais e abstractos, acho bem perturbar as pessoas. Estilhaçar-lhes o mundo formatado e pouco imaginativo. Rebentar-lhes com os clichés feitos certezas e guias de vida. O suicídio é excelente nisso. Tem um lado de provocação e de altivez. É como usar um cachecol do Sporting num encontro entre o Benfica e o Porto (o descaramento do filho da mãe!) sem se correr o risco de levar com um petardo na tola. (E, ainda que se levasse, qual o problema, estando morto?) É uma forma definitiva de dizer: não estive para vos aturar mais. E aqui surge o meu problema. É que, na verdade, não quero que as pessoas se choquem por minha causa – em particular aquelas poucas para quem represento alguma coisa de positivo. (Deixem-me continuar a acreditar, está bem?) Imagino-as abananadas, tentando genuinamente perceber as razões que me haviam levado a acabar com a vida, e não gosto. Imagino-me estendido num caixão, vestido com uma roupa demasiado formal para o acto que acabei de cometer (se alguma vez me suicidar, bastam uns jeans e uma t-shirt, ok?), rodeado por quatro pessoas destroçadas e várias outras consultando amiúde e mal disfarçadamente o relógio, e acho que não é coisa para mim. Prefiro não incomodar. Não me apetece que a última imagem que as pessoas tenham de mim seja a de um filho da mãe que fez questão de dar chatices até ao fim. Repare-se: um cancro toda a gente entende. Os doentes de cancro, estóicos na dor, sublimes na forma de encarar a aproximação inexorável do fim, são um exemplo, uma inspiração. Quando morrem, são respeitados. Agora os sacanas dos suicidas? Filhos da mãe que se acham os campeões do sofrimento? Prima-donas que se consideram demasiado frágeis para aguentar a depressão que toda a gente sente? Espertalhões que resolvem saltar a meio da viagem, sem a pagar? Ninguém gosta deles. E a triste, triste verdade é que não desejaria que, depois de morto, pensassem mal de mim. Pelo contrário, quero elogios: «Era um bom tipo», «Tinha um sentido de humor um bocadinho ácido mas fantástico», «O melhor amigo que alguém podia ter», «Apreciava animais e eles adoravam-no» e todas as tretas do costume. Narcisismo? Talvez um pouco. E então? Ao menos depois de morto gostava de experimentar a sensação de ser apreciado.
(Reparo agora que os meus problemas com a ideia do suicídio têm todos a ver com o absurdo. Do suicídio, não da vida. Se fosse de filosofar, talvez houvesse aqui material para um tratado. Uma espécie de expansão da Teoria do Absurdo segundo a qual o suicídio, por ser tão absurdo quanto a vida, poderia ser abraçado sem hesitações. Bah, fica para uma próxima oportunidade.)
Adenda: a t-shirt pode ser branca, preta ou verde, que é a cor do Sporting e da esperança, mas o que seria mesmo porreiro era ter escrita uma frase divertida, como É Favor Ranhosos e Choramingas Não se Debruçarem Sobre o Caixão, Estou Livre do Teixeira dos Santos, Não me Façam Cócegas, Também Vos Cheira a Enxofre?, ou a singela Invólucro Vazio. Obrigado. Bem hajam.
Jardim do Éden – A Descoberta da Gravidade.
Pastel sobre papel Hahnemühle Velour.
(Obra informalmente conhecida como Pandora.)
«Podemos começar já pela questão do prémio…»
«Como preferir.»
«Ficou satisfeito?»
«Seria hipocrisia dizer que me é indiferente. Mas não é fundamental. Não pinto para receber prémios.»
«Então por que o faz?»
«Porque sinto que tenho de o fazer. Porque tenho uma visão a transmitir.»
«Uma visão no mínimo polémica.»
«Espero bem que sim. É bom que a Arte incomode.»
«Há mesmo quem acuse o que faz de não passar de um truque.»
«Inveja. Repare: toda a Arte parte de uma visão do mundo. E a minha visão é diferente. É natural que haja quem não goste. Quem não consiga perceber.»
«A sua visão parte do facto de ser daltónico…»
«Sim, mas vai muito para além disso.»
«E de colorir o que pinta com cores aleatórias.»
«Não, não, não, não! Aleatórias, não. Eu pinto como imagino. Acrescento à realidade incompleta que me chega os elementos que lhe imagino adequados. E repare que não distingo a cor das tintas que uso. É um trabalho cem por cento mental, de nuances, da interpretação da adequação das possibilidades disponíveis à realidade desconhecida. Se bem que não devêssemos chamar-lhe realidade. É apenas a forma como a maioria das pessoas vê. Não é a realidade para um cão ou para um gato, por exemplo...»
«Não distingue mesmo qualquer cor?»
«Não. Tenho o que se chama 'visão acromática'. É uma condição bastante rara.»
«Parece quase orgulhoso disso.»
«Não devemos envergonhar-nos das diferenças. Devemos potenciá-las. Costumo dizer, correndo talvez o risco da imagem excessivamente doce, que a minha vida é como um sonho que vou colorindo com as cores adequadas a cada momento.»
«É uma ideia interessante. Mas não acha que é demasiado fácil delinear uma cena (e muitos dizem que o faz de modo básico) e depois colori-la com cores que parecem aleatórias? Céu verde, água vermelha, erva roxa... Não é quase como aqueles livros para crianças?»
«Já vi esses livros. Alguns têm muito potencial. Mas é totalmente diferente. As crianças subvertem o sentido das figuras quando lhes acrescentam cores diferentes daquelas que têm na realidade. A minha intenção, embora aceitando o lado polémico do que faço, não é subverter. É criar uma realidade minha, que faz sentido para mim e que, na minha cabeça, é a realidade.»
«É por isso que insiste em chamar-lhe ‘realismo alternativo’?»
«Realismo paralelo.»
«Peço desculpa. Realismo paralelo.»
«Porque não a vejo como uma alternativa. É um mundo paralelo. A alternativa é a monocromia.»
«Criou até uma associação com o nome 'Realismo Paralelo'.»
«Não fui apenas eu. Mas é verdade que fui um dos principais impulsionadores do projecto e desempenho actualmente o cargo de presidente.»
«A associação tem membros com outras, er, características, não apenas daltónicos...»
«Com certeza. Há imensas pessoas que, podendo até nem ter consciência disso, são realistas paralelos. Criam a sua própria realidade.»
«Políticos, por exemplo?»
«Desculpe?»
«Era uma tentativa de humor.»
«Ah. O humor é uma forma de evitar encarar as inseguranças. Nenhum artista pode permitir-se fazê-lo.»
«Não há humor no seu trabalho?»
«Depende do ponto de vista. Quando um quadro está completo, a interpretação – e, portanto, as inseguranças – são as de quem observa. Mas o artista tem de as enfrentar enquanto o cria. Não pode refugiar-se no humor. Seria demasiado fácil.»
«Não acha que há humor na sua obra 'Jardim do Éden - A Descoberta da Gravidade'?»
«Presumo que possa lá ser encontrado algum humor.»
«Não era sua intenção criá-lo?»
«O quadro é uma sobreposição espaço-temporal de vários mitos da ciência e da religião. Coloca questões. As respostas são livres.»
«Sabe que desde o filme Avatar lhe chamam 'Pandora'?»
«Prefiro não falar disso.»
«Muito bem. Voltemos à questão do que é ser realista paralelo, de que nos desviámos com a minha infeliz piada sobre os políticos. Será que podia explicar um pouco melhor em que se baseia o conceito?»
«Já lhe disse: na possibilidade de criar uma realidade paralela. Verdadeiramente paralela. Que nasça de características verdadeiramente diferentes das da maioria. Repare: quando um surdo compõe música, o resultado tem de ser diferente do que seria se fosse uma pessoa com audição a criá-la. Ele está a gerar algo paralelo à realidade da maioria das pessoas. Embora, claro, essa música, ou um quadro meu, entre na realidade das pessoas ditas normais e acabe portanto por fazer parte dela.»
«Hmmm, sim. Beethoven era um ‘realista paralelo’?»
«Beethoven perdeu a capacidade para ouvir mas não deixou de ser influenciado por ela. A sua obra reflecte esse facto. A nona sinfonia mantém muitos elementos do Beethoven com audição. Apenas é mais ruidosa.»
«Hmmm, estou a ver. É, de facto, uma visão polémica. Há, aliás, quem o acuse de radicalismo; de ostracizar tudo o que não encaixa na sua forma de encarar as questões.»
«De modo nenhum. Eu não ostracizo. Eu sou ostracizado. Mas não pode esperar que eu aprecie críticas de gente que não tem obra feita, ou que produz obras que nada trazem de novo.»
«Como é que sabe, se não as vê na sua plenitude?»
«É verdade, mas não preciso de ver as cores para perceber que nada têm de novo. Torna-se imediatamente óbvio que (usando um dos exemplos que deu há pouco) o céu é azul, como tem sido quase sempre ao longo dos séculos. Eu crio um céu diferente.»
«Cria até vários. Há pinturas suas com céus das mais variadas cores.»
«Com certeza. Na realidade paralela, o céu tem que combinar com todos os restantes elementos. Repare: você diz-me que o céu é azul e a erva é verde, certo? É essa a combinação que as pessoas conhecem e que tem sido pintada ao longo dos séculos. Muito bem, faz sentido, apesar de ser monótona. Mas se eu crio um céu castanho, não posso combiná-lo com erva verde. Seria ficar por uma realidade enviesada e não paralela. A cor da erva deve reflectir a cor do céu.»
«Mas a cor do céu também não é sempre a mesma, nas suas obras…»
«Evidentemente. Porque o céu está na minha cabeça. Ou, para ser mais preciso, a realidade cromática do céu está na minha cabeça. E a minha cabeça pode decidir atribuir-lhe uma cor por dia. É isto que me distingue das pessoas, enfim, não queria chamar-lhes ‘normais’ mas serve como ideia. Eu vejo realidades onde elas vêem apenas uma realidade.»
«Penso que há uma definição médica para isso.»
«Por favor. Está aqui para entrevistar-me ou para insultar-me?»
«Peço desculpa. Mas, nessa linha, quantas mais, enfim, digamos ‘deficiências’, tiver uma pessoa, melhor artista será.»
«Melhor artista poderá ser. Em teoria. Na verdade, as características diferenciadoras a que chama ‘deficiências’ só são úteis se a) o artista as utilizar de forma adequada e b) não forem excessivas, uma vez que o excesso tenderá a prejudicar a qualidade da obra. Deixe-me dar-lhe um exemplo: é difícil para uma pessoa sem braços pintar quadros (alínea b). E, infelizmente, quando resolve essa questão usando a boca ou os pés, tende a desperdiçar todo o potencial que possui em cartões de Natal sem qualquer interesse artístico (alínea a).»
«Sim, estou a ver. E é sempre o público que define quem tem qualidade?»
«O público, não diria. Pelo menos, o grande público. É muito difícil dizer quem define. Mas as coisas acabam por se impor.»
«Também por causa da polémica…»
«A polémica é já um reflexo da qualidade. Da capacidade de provocar emoções.»
«... e dos apoios que alguns artistas recebem e outros não. O que diz às pessoas que contestam os subsídios públicos que tem recebido?»
«É mesquinho e ridículo. Eu não vejo a cor do dinheiro. É-me indiferente se é público, se privado. Para mim, é todo… cor-de-rosa.»
«Cor-de-rosa?»
«Por exemplo. Sem quaisquer conotações políticas. Disse cor-de-rosa como podia ter dito outra cor qualquer. É nisso que se baseia a minha arte: na infinidade de possibilidades. As coisas mudam e eu adapto-me. Cor-de-rosa foi a cor que me pareceu adequada ao momento. Noutra altura poderá ser cor-de-laranja. Ou vermelho, ou azul. Qualquer cor. O que me interessa é a Arte.»
«Com certeza. O prémio vai mudar alguma coisa na sua vida?»
«Nada. Apenas dar-me um pouco mais de exposição. Talvez possibilitar-me vender mais algumas obras.»
«O que até poderá permitir-lhe dispensar os tais subsídios públicos…»
«Pensar assim é um erro. Os subsídios artísticos devem ser dados não somente em função das necessidades (repare que toda a gente considera ter algo a exprimir e, portanto, achar-se-ia com direito a subsídios) mas em função da obra, do valor acrescentado para o acervo cultural do país.»
«Mas isso deixaria de fora os jovens, pouco conhecidos.»
«Não se forem bons.»
«Voltamos então à questão de saber quem define o valor da obra…»
«Para a atribuição de subsídios, o Estado tem que chamar a si a questão, claro. E depois, porque é preciso que ela seja tomada por quem perceba do assunto, delegá-la.»
«Em quem?»
«Em valores firmados.»
«Mas isso não cria uma espécie de clube restrito e conservador, que decide muitas vezes em função do interesse e dos gostos dos seus membros, e que só apoia jovens com gostos similares ou, enfim, com cunhas?»
«É por interpretações como essas que o grande público tem uma visão distorcida do mundo dos criadores de Arte. O mundo da Arte não funciona dessa forma, não se baseia nessas realidades mesquinhas…»
«Baseia-se em realidades paralelas? É isso que lhe confere autoridade para falar em nome do ‘mundo da Arte’?»
«A verdadeira Arte é sempre paralela. E fiquemo-nos por aqui.»
«Porque aceitou fazer parte do júri do prémio do próximo ano?»
«Convidaram-me e achei que não podia recusar. A Arte também é interacção, cooperação, amizade, apreço.»
«Mas como poderá avaliar obras alheias sem lhes conhecer a cor?»
«De forma muito mais livre e descomprometida. Mas pensei que esta entrevista era sobre a minha obra…»
«E é, claro. Está a trabalhar em alguma coisa nova?»
«Sempre. E posso garantir-lhe que vai ser uma surpresa.»
«Diferente da série anterior, então, com os legumes com cores trocadas?»
«Não estavam ‘trocadas’. Receio que não tenha percebido nada do que lhe estive a dizer.»
«Peço desculpa. Mas o próximo projecto não vai ter nada a ver com isso, então?»
«Não. Terminei a série dos legumes. Um artista não pode repetir-se.»
«E não pode dar-nos uma pista?»
«Bom, só uma: fruta.»
«Fruta com cores, er, paralelas?»
«Fruta ainda nas árvores. Uma coisa mais campestre. Talvez sendo apanhada por pessoas de todas as cores (a Arte deve recusar a xenofobia e incentivar a igualdade). Mas já estou a falar demais…»
«Ficamos ansiosos.»
«Obrigado.»
«Terminámos. Agradeço-lhe imenso ter-me concedido a entrevista.»
«De nada. Estou sempre disponível. Já agora, vai para o centro?»
«Vou.»
«Dá-me boleia?»
«Claro. Tenho o carro mesmo aqui à porta. Nem queria acreditar na sorte…»
«Aqui costuma haver lugares. É o vermelho?»
«É. Espere lá: como percebeu a cor do carro?»
«Prática.»
«Mas isso não elimina tudo o que me esteve a dizer? Se afinal reconhece as cores…»
«Reconheço-as porque sou um ser inteligente, capaz de estabelecer associações. Ao longo dos anos fui aprendendo que certas tonalidades correspondem a certas cores. Mas eu não vejo essas cores. Eu não sei o que significa 'vermelho'. É apenas uma palavra. A minha visão do Mundo, fisiologicamente alterada como lhe expliquei, não inclui o verdadeiro vermelho. Mas também faz com tudo me seja possível, incluindo o realismo mais básico que acaba por ser essencial para sobreviver no mundo prosaico do dia-a-dia. Posso assim chamar 'vermelho' ao que me dizem ser vermelho. Foi o que acabei de fazer e isso não invalida o que lhe estive a tentar explicar. No limite, porque sou livre de fazer as correspondências entre cores e terminologia que bem entender, posso dizer que, quando pinto um céu que sei ser azul, de vermelho, estou na verdade a pintá-lo de azul. Do meu azul. A Arte é uma expressão pessoal, e na verdadeira Arte tudo é possível desde que exista capacidade, visão e ousadia. É, na realidade – qualquer que ela seja –, muito simples.»
«Er... pois, deve ser. Vamos, então.»
Vou começar a cortar nas vírgulas por como quase toda a gente ter dúvidas frequentes sobre a localização mais adequada para elas mas ao contrário de quase toda a gente sentir vergonha quando as coloco no sítio errado e também por experimentar uma necessidade cada vez maior de adaptar a vida ao meu ritmo e não o meu ritmo à vida e de por isso não desejar impor-me enquanto escrevo e impor aos outros enquanto lêem o que escrevo as pausas que os teóricos da pontuação consideram dever espartilhar uma língua tão mais bonita livre solta e moldável aos gostos e ritmos de cada pessoa que a utiliza ou dela usufrui na sua forma escrita (afinal se tantos autores célebres omitiram os mais diversos sinais de pontuação e se o valter hugo mãe tem o desplante de dispensar as maiúsculas justificando o acto com uma putativa maior fluidez da leitura não vejo qualquer problema em eliminar completamente as vírgulas no que até pode – já aconteceram coisas mais ridículas – permitir que algum editor repare que consigo afinal escrever textos que dão demasiado trabalho a ler para aquilo que valem e caia a meus pés com um contrato de publicação milionário para qualquer coisa que eu ainda teria de alinhavar) mas vou acabar este post com uma porque convenhamos que o ponto final é irritantemente definitivo (não sei se repararam mas também o evitei) e eu faço tenções de aqui voltar e deixar mais uns quantos posts que permanecerão incoerentes mesmo que por eles disperse um montão de vírgulas,
Combinava-se num telefonema o dia e a hora em que se faria o seguinte, e tinha que se estar em casa para o atender. Corria-se o risco de ser um dos pais a fazê-lo. (Pergunto-me se os telemóveis ditaram a sentença de morte a frases como «estás à espera de uma chamada?» e «larga o telefone que estou à espera de um telefonema».) Períodos de separação (as férias, por exemplo) não podiam ser mitigados com horas de moche nem com mensagens de texto terminadas em «Luv U». (A única pessoa que substituía palavras por letras e números com a mesma fonia era o Prince e toda a gente tinha consciência de que ele não batia bem.) Os universitários com quartos arrendados em casa de velhas forretas viam-nas colocar um cadeado no telefone e eram forçados a usar as cabines públicas. A ansiedade e os pressentimentos não podiam ser combatidos ligando para o telemóvel e dizendo: «Só queria ter a certeza de que estavas bem». Só se tinham certezas às horas combinadas. Os quilómetros de distância podiam ser os mesmos mas a sensação de separação era muito superior. Quase não há separação nas relações actuais. Está-se sempre «ligado», a «comunicar». É bom? Provavelmente. Mas talvez menos do que se pensa. Nenhum dos receios – de adolescentes ou adultos – desapareceu. Temem-se as mesmas coisas, apenas se verifica mais amiúde. E o contacto excessivo cansa. Gera mais atrito («por que não atendeste?», «por que não me enviaste uma mensagem?»), faz com que as relações se esgotem mais depressa, facilita a crença de que tudo é ou deve ser fácil e imediato. Viver limitado aos telefones fixos era péssimo, em muitos aspectos. Mas talvez intensificasse os sabores ligados à expectativa, à antecipação. Um reencontro era um verdadeiro reencontro, não algo que acontecia na sequência de vinte e oito mensagens de texto, quatro telefonemas, duas conversas no Messenger. Para quem é adolescente hoje, o telefone fixo é quase uma incongruência. Mas era a única forma de comunicação oral para adolescentes e adultos ainda há menos de vinte anos. E depois, não menos importante para tentar encontrar uma explicação para a obsessão que David Fonseca parece ter por telefones tradicionais e por cabines telefónicas, há a iconografia. O famoso telefone vermelho, que podia evitar uma catástrofe nuclear. Os filmes e as séries em que o herói saía ou chegava a casa respectivamente segundos antes do ou após o toque do telefone, despoletando-se assim algo de trágico. Os filmes e as séries em que o herói tinha de retirar alguém de dentro de uma cabine telefónica para poder fazer uma chamada fundamental, ou era assediado para sair de uma por alguém irritado pelo tempo que estava a demorar. (Agora, os problemas dos heróis passaram a ser a carga da bateria dos telemóveis e, mesmo em plenos centros citadinos, a falta de rede.) Os filmes e as séries com as cabines vermelhas inglesas, como a que David tinha no palco do Coliseu, ou com cabines de aspecto menos tradicional, perdidas na berma de estradas no interior dos Estados Unidos, próximas de motéis desertos com néons a piscar Rooms Available, como os que David tinha nos videowalls antes do concerto. Tudo mudou. Já quase não se usam cabines telefónicas e telefones fixos nas séries e nos filmes. Ironicamente, o filme que em 1999 lançou muitas tendências do cinema actual foi também um dos últimos em que os telefones fixos ainda eram fundamentais: Neo, Trinity e Morpheus precisavam de uma linha fixa para abandonar a Matrix. Depois, no canto do cisne, houve Cabine Telefónica, em 2002, onde a ironia estava toda em que, para não deixar rasto do e no telemóvel, Colin Farrell optava por telefonar da cabine e ficava sem poder sair dela. Actualmente, todos os telefones, mesmo quando não o são, parecem telemóveis. Cabines telefónicas e telefones fixos são coisas para gajos com mais de trinta e cinco anos, que viram filmes demais. Como eu. E, tudo o indica, o David.
Viajo numa furgoneta velha, cor da ferrugem que tem. Uma Volkswagen Pão-de-Forma, não fosse o cliché e os níveis de poluição. Ando por muitos países, paro onde me apetece, meto conversa gestual com as pessoas e tiro fotografias com uma Leica M. No tejadilho da carrinha há uma antena discreta, no seu interior equipamento informático topo de gama e muitos livros – tantos que não preciso de cadeiras nem de cama, apenas de um colchão disposto sobre eles. Mantenho um blogue onde descrevo as viagens, mas minto acerca da minha localização. Quase sempre sob pseudónimo, publico fotografias fabulosas, que trazem o mundo siderado. No Tibete, sob o olhar atento de um militar chinês, um monge aponta para a furgoneta e, rindo-se, diz-me qualquer coisa que não percebo. Rio-me também, digo «Tashi delek» e ele parece satisfeito mas o militar continua desconfiado. Na Argentina, o condutor de uma carrinha de caixa aberta onde se pode ver um conjunto de boleadoras grita-me «Boludo!» quando me ultrapassa na estrada, e eu berro-lhe, pondo a cabeça de fora da janela, «Gracias!», o que o leva a erguer a mão esquerda no ar com o dedo médio espetado a apontar para cima. Encontro-o dez minutos mais tarde, num bar poeirento à beira da estrada, e acabamos a beber cerveja Quilmes e a discutir as hipóteses das selecções argentina e portuguesa no mundial de futebol (eu elogio Messi, ele elogia Ronaldo, eu estou pessimista quanto às chances de Portugal, ele garante que a Argentina será campeã). Passo da Indonésia para a Austrália num ferry que a internet me dissera não existir e fico dois dias parado no deserto a algumas centenas de quilómetros de Ayers Rock, lutando com aranhas e escorpiões que entram na carrinha pelos muitos buracos que ela tem, à espera que me tragam as peças de que necessito para poder continuar. No deserto do Saara fico trinta e duas vezes atascado nas dunas e sou libertado por um tuaregue que, após a quarta operação de socorro, me segue a cerca de cinquenta metros de distância no seu jipe Nissan, e se esforça por conter o sorriso de cada vez que pára ao meu lado, depois de eu ficar novamente preso na areia. Numa zona pouco habitada do noroeste do Irão sou cercado por uma patrulha militar que me acusa de trabalhar para os americanos, ou para os israelitas, ou para a Agência Internacional de Energia Atómica. Os computadores e a antena não ajudam mas consigo finalmente convencê-los de que os inspectores da Agência não andam em furgonetas ferrugentas e que o equipamento funciona tão mal que eu até pensava estar no Azerbeijão. Mesmo assim, depois de me autorizarem a seguir viagem, vejo-os a olhar para o céu com expressões apreensivas, como se esperassem a chegada de mísseis israelitas. Em pleno Inverno siberiano tento saber se, colocando correntes nos pneus da furgoneta, conseguirei atravessar o Estreito de Bering até ao Alaska. Todos me dizem que estou сумасшедший, ou pelo menos é isso que percebo, e, porque na realidade nunca estive tão são na minha vida mas quero mesmo visitar o Alaska, acabo por decidir lá chegar pelo outro lado. Numa estrada secundária portuguesa querem multar-me por não ter feito a inspecção da carrinha e por não trazer colete reflector, mas começo a falar uma mistura de cantonês e hebraico (as poucas palavras que sei em cada uma das línguas) e os elementos da GNR entreolham-se e resolvem mandar-me embora. Na Escócia, enquanto limpo a Leica sentado nas margens de um lago perto de Inverness, tiro inadvertidamente a primeira fotografia em décadas que parece mostrar Nessie com nitidez. Em todo o lado tentam vender-me sexo e droga e até armas mas recuso, excepto quando sinto que seria indelicado fazê-lo. Vivo de quê? É segredo. Se se soubesse, todos poderiam fazer o mesmo e as estradas ficariam sobrelotadas com carrinhas iguais à minha.
(Este post não inclui fotografias porque seria um desperdício utilizá-las apenas para ilustrar o texto. Usem a imaginação, acrescentem uma pitada de pôr-do-sol. E mantenham os olhos abertos porque elas vão surgindo por aí.)
Gosto de ténis, gosto de ver meninas a praticar desporto, e não me importo nada que elas usem vestuário provocante (ah, o voleibol de praia). Todavia, o vestido que Venus Williams está a usar esta semana no torneio de Miami causa-me problemas. Eu simpatizo com Venus, de tal forma que até possuo este livro (fotos + ténis + mulher esbelta + preço simpático na Amazon = como resistir?), e já estou avisado de que este ano ela resolveu ser provocante. Mas o vestido vermelho de Miami, mais até do que a roupa interior de Melbourne, dificulta o meu seguimento dos encontros. Põe-me a pensar em cabarets parisienses de finais do século XIX e em bordéis do Velho Oeste. Faz-me recear que ela comece a dançar can-can, executando simultaneamente malabarismo com as bolas. Leva-me a murmurar que devia estar a usá-lo com botins (daqueles com atacadores) e não com sapatilhas, comportamento muitíssimo perturbador porque – basta olhar para mim para o constatar – eu nunca perco tempo a ponderar o que fica bem com quê. Maldoso, cheguei a ter vontade de que ela fosse eliminada para eu me poder concentrar nas jogadas mas, indiferente aos problemas que me causa (o egoísmo das estrelas), Venus foi ganhando sempre e conseguiu atingir a final (daqui a minutos, no Eurosport, frente a Kim Clijsters). De forma que, mesmo contrariado (pensam que gosto de pensar em bordéis e em vestidos de can-can quando podia estar a reflectir no que escrever sobre o PEC ou o caso dos submarinos?), lá me vou forçar outra vez a observá-la.
(Mas torço por Clijsters e não tem nada a ver com o vestido.)
(Foto retirada daqui.)
Este excelente (mas será ainda preciso referi-lo?) post de Bruno Vieira Amaral acerca dos sorrisos de um vilão de Dan Brown deixou-me a sorrir e a pensar na polivalência do sorriso e em como essa característica se reflecte na frequência com que sorrimos. Não são apenas Dan Brown e outros maus escritores que utilizam o sorriso como muleta. Todos o fazemos. Para disfarçar enfado, cansaço, hesitação. O sorriso aproxima mas também protege. Nesse sentido, talvez Dan Brown esteja muito à frente dos que o criticam. Talvez seja realista. Ontem, numa tentativa de perceber quão frequentemente se sorri, contei os meus sorrisos e os das pessoas à minha volta. Não foi fácil. Há sorrisos tão subtis que lançam a dúvida sobre se o são efectivamente. Incluí metade dos que pensei vislumbrar, de acordo com a lógica de que, em caso de dúvida, e mesmo num tema que pode não seguir leis matemáticas, a média deverá ser o valor que menor erro introduz nos resultados. Há sorrisos que são quase gargalhadas, ou evoluem para gargalhadas, e isso também constituiu um problema. O riso é muito diferente do sorriso. O encanto da Mona Lisa seria outro se risse a bandeiras despregadas. Tentei assim evitar contar as manifestações que houvessem já cruzado a fronteira para o terreno do riso mas cometi certamente erros de classificação (não é tão fácil quanto parece). Há também sorrisos que parecem esgares e esgares que parecem sorrisos, e igualmente aí me posso ter enganado algumas vezes. Descobri ainda que é mais difícil contabilizar os próprios sorrisos do que os sorrisos alheios. Por vezes eu pensava estar a sorrir mas depois apanhava a minha expressão num espelho ou passava a mão pela face e duvidava. Aplicar-se-á aos sorrisos o princípio da incerteza de Heisenberg? Será impossível analisar o sorriso sem o alterar ou destruir? Talvez. Afinal, por que razão a melhor forma de estragar um sorriso é pedir à pessoa que o ostenta para o manter inalterado enquanto se lhe tira uma fotografia? O sorriso (o genuíno) parece não suportar ter consciência de si mesmo. Escaparam-me também todas as ocasiões em que as outras pessoas sorriram mentalmente (vou apenas a meio do curso de telepatia). Mas, de qualquer modo, seria justo registar sorrisos não explícitos? Temos todos consciência de que eles existem (são até muito agradáveis e certamente Dan Brown já escreveu um ou outro) mas mostram-se dificílimos de detectar. Desconfio que somente ligando as cobaias a uma máquina similar a um polígrafo, mas concebida para detectar sorrisos em vez de mentiras, seria possível fazê-lo. (Todavia, é provável que, ligadas a uma máquina, as pessoas ficassem com menos vontade de sorrir.) Não tendo registado os sorrisos mentais das outras pessoas, optei por também não registar os meus (foram poucos, de resto). Deparei-me ainda com o problema de saber se devia contabilizar os sorrisos que eu provocasse nas outras pessoas. Mesmo sem preferência por qualquer resultado, não correria o risco de o adulterar? Mas e se for habitual eu provocar sorrisos nas pessoas? (Apanho muitas a sorrir embora, por uma razão que ainda não determinei, tendam a parar logo que se apercebem de que estou a observá-las.) Nesse caso, o erro seria não os incluir. Mas quantos sorrisos provocarei diariamente? Estive mais de uma hora a matutar no assunto (sorrindo várias vezes ao recordar as divertidíssimas anedotas que contara nos dias anteriores e as reacções de maravilhamento que haviam suscitado) e decidi que a única via a seguir era tentar manter um comportamento tão normal quanto me fosse possível. Mesmo assim, creio que a tensão me levou a contar menos piadas do que é costume e a estar longe da minha forma habitual ao contá-las: quem as escutava sorria, é certo, mas menos tempo do que noutras ocasiões (felizmente, eu não estava a contabilizar a duração dos sorrisos). A última dificuldade que tive de procurar vencer foi a circunstância de, com frequência, as pessoas sorrirem (normalmente para outras pessoas, mas nem sempre) de costas para mim. Esforcei-me por contorná-las rapidamente quando desconfiava que sorriam mas (o princípio de Heisenberg outra vez) a minha acção parecia liquidar o sorriso e fazer surgir uma expressão de espanto e alarme. Nessas alturas eu forçava um sorriso e ficava na dúvida se o devia contabilizar (não o fiz).
Apesar de todos estes constrangimentos e dúvidas, sinto-me feliz por poder afirmar que o estudo correu bem. Faço, aliás, tenção de realizar mais estudos deste género, analisando outros maneirismos altamente literários, como «franzir o sobrolho», «arquear as sobrancelhas», «morder o lábio» e «passar a mão pelo cabelo». Mas isso é no futuro. Agora importa revelar os resultados deste primeiro estudo. Voltando a chamar a atenção para todas as dificuldades indicadas acima, em média ontem cada pessoa à minha volta sorriu 43 vezes, sendo o valor máximo de 107 sorrisos e o mínimo de 1 (registado com dúvidas). Considerando que o estudo decorreu ao longo de um período de oito horas, a média horária dá 5,375 sorrisos por pessoa, tendo o pico de 12,125 sorrisos numa única hora sido atingido durante o período de almoço (no que é uma conclusão surpreendente e pioneira, as horas de trabalho parecem não gerar o mesmo número de sorrisos).
Com estes resultados, creio poder concluir-se que é injusto acusar as personagens dos livros de Dan Brown de sorrir demasiado. Para nos atermos ao vilão a que Bruno Vieira Amaral se refere, convinha contar o número de sorrisos dele e dividi-lo por uma estimativa do tempo que as cenas em que está presente demoram (não sei se o Bruno já chegou aí), mas o rácio sorrisos/hora dificilmente estará acima do verificado nos meus colegas de trabalho, que de forma nenhuma podem ser considerados especialmente sorridentes, e muito menos vilões (com uma excepção; vá, duas). Creio ficar assim demonstrado que Brown se limita a ser realista. E, mesmo assumindo (por absurdo, claro) que a qualidade literária nada tem a ver com o realismo, convenhamos: não seria maior cliché usar um vilão que se limitasse a soltar a tenebrosa gargalhada de todos os vilões, tão divertida de imitar porque nos permite colocar o maxilar inferior oscilando freneticamente? (Experimentem.) Ou, para os casmurros que insistam em recusar a tese do realismo, não poderá Dan Brown estar a ser irónico? Não será a abundância de sorrisos nas páginas dos seus livros um subtil exercício de metaliteratura (tão subtil que nem os críticos o detectam)? Como o uso de frases curtas e de repetição (operando como elementos de ritmo e ironia) nos diálogos de Tarantino ou de vários dramaturgos conceituados: «Sim?» «Sim.» «Não!» «Não?» «Acho que não.» «Então por que disseste sim?» «Não disse sim.» «Disseste, sim.» «Não.» «Não?» «Talvez.» Em vez de diálogos em staccato, Brown pontua as frases com sorrisos. Pode ser de génio (infelizmente incompreendido). Se um dia ler um livro dele, hei-de ter este aspecto em consideração.
Mas Dan Brown até é irrelevante (uma criação involuntária de Umberto Eco, como este costuma dizer). Serviu – e ainda bem que serviu – como detonador da questão dos sorrisos, mas eu penso já para além dele. Penso na enorme quantidade de sorrisos diferentes que existem. Penso em como gostaria de coleccioná-los. De fotografá-los. (Era coisa para ganhar o BES Photo ou, no mínimo, para perder estrondosamente.) De escrevê-los. De escrever uma peça em que o actor principal passasse o tempo todo a sorrir. O sorriso dele iria do divertimento ao carinho, da agressividade ao desdém, do enfado à auto-ironia, mas nunca se desvaneceria por completo. Ou talvez todos os actores sorrissem. Permanentemente. Algo do género:
Pai (sorriso de preocupação): «Já fizeste os trabalhos de casa?»
Filho (sorriso de veemência): «Já! Posso ir jogar Playstation?»
Pai (sorriso de desconfiança): «Estás a mentir-me.
Filho (sorriso de desânimo): «Faltam-me os de matemática.»
Pai (sorriso de resignação): «És sempre o mesmo. Não sei a quem sais. Vá, trata do assunto.»
Mãe (sorriso de expectativa): «De que estão a falar?»
Pai (sorriso de tensão): «Não te certificaste outra vez que ele fazia os trabalhos de casa!»
Mãe (sorriso de incredulidade): «Eu? Por que é que tenho de ser eu?»
Pai (sorriso de espanto): «Eu acabei de chegar.»
Mãe (sorriso de desdém): «E deves ter andado a fazer coisas muito importantes…»
Filho (sorriso de apreensão): «Não gritem outra vez.»
Mãe (sorriso de apaziguamento): «Não vamos gritar, querido.»
Pai (sorriso de desistência): «Não, não vamos gritar. Faz lá os deveres.»
Mãe (sorriso de carinho): «E se precisares de ajuda, chama.»
Filho (sorriso de difícil classificação): «Há uma coisa que eu gostava de saber.»
Mãe (sorriso de disponibilidade): «O quê, querido?»
Filho (sorriso de malandrice): «O que é um orgasmo?»
Mãe (sorriso de vingança): «Não faço a mínima ideia, querido. Pergunta ao teu pai.»
Escolher actores com fibra seria fundamental uma vez que, no final de cada sessão, sofreriam de uma tremenda dor nos músculos da face. Porque o sorriso também magoa. Bruno Vieira Amaral e outros leitores de Dan Brown que o digam.
(Foto roubada aqui.)
Há pouco mais de duas horas, os Dr1ve (finjam que é Drive e não pensem mais no assunto) davam um concerto para meia dúzia de gatos pingados num dos gigantescos salões do edifício da Alfândega, onde decorre este fim-de-semana uma feira de «bem-estar»: aromas, massagens, ioga, águas, chás, alimentação saudável, e outras coisas igualmente zen. Eu vinha de almoçar uma francesinha gigantesca e estupidamente picante às três da tarde e, temendo que se notasse, limitei-me a espreitar uma das áreas de exposição, fugindo depois tão depressa quanto pude, mas sem conseguir evitar que ainda me oferecessem um saco com um sabonete da «Farmácia Barreiros» (cheira deliciosamente, garanto-vos) e várias amostras de cremes que prometem deixar a minha pele com um aspecto mais rejuvenescido que a da Cher. Quanto ao concerto, os rapazes esforçavam-se mas há ocasiões em que o empenho é contraproducente: o som reverberava de tal forma no salão quase deserto que ameaçava fazer saltar o chumbo dos dentes de todos quantos assistiam (felizmente não tenho chumbo nos dentes mas um casal de idosos saiu logo depois de entrar, com as mãos cobrindo faces e ouvidos). Não deixa de ser irónico que, num evento dedicado ao bem-estar corporal, alguém se tenha esquecido de garantir o bem-estar dos ouvidos. Seja como for, enquanto assistia eu pensava era no post de ontem. É que não saltar quando se está no meio de uma multidão é uma coisa; insistir em não o fazer quando se representa 5% da assistência é outra completamente diferente. Até na penumbra se via o pedido de apoio nos olhos dos elementos da banda. Felizmente para mim, ninguém lhes ligava, o que permitia que eu me enquadrasse bastante bem. Ainda assim, fui tirando fotografias (sem flash; meninas e meninos: cortem o flash e desliguem o raio dos ecrãs das máquinas nos concertos, está bem?) porque, não sei se estão a ver, quando se fotografa em ambiente escuro é mesmo preciso estar quieto. (Faço questão de não sair de casa sem uma máquina fotográfica precisamente por causa deste tipo de situações: uma pessoa nunca sabe quando, mesmo sem o ter planeado, se vai encontrar a meio da tarde num concerto rock em que, além de nós, só compareceram a banda e quatro dos seus familiares.) A bateria da máquina durou dez minutos (esquecera-me de a carregar), eu fingi continuar a tirar fotografias durante mais cinco, e depois escapuli-me. (Permitam-me acrescentar em minha defesa que também tinha um molar quase a saltar da gengiva.) A música dos miúdos até se digere bem mas a sensibilidade nos dentes e o zumbido nos ouvidos que ainda sinto mostram que estou a ficar velho para estas coisas (concertos em sítios inadequados, quero eu dizer). Em contrapartida, a francesinha gigantesca e estupidamente picante parece não ter tido qualquer efeito negativo. Vou agora tomar banho com o sabonete da «Farmácia Barreiros» e depois experimento os cremes.
A campanha para a eleição do líder do PSD interessa-me tanto quanto os despiques verbais entre claques de futebol. E tem mais ou menos o mesmo nível. É certo que não se usa a mesma quantidade de calão, nem se verbalizam desejos de que os adversários passem por uma experiência sexual desagradável (ou agradável; que sei eu sobre o assunto?), mas a animosidade é similar. Compreende-se: afinal, se as claques não sobrevivem sem os clubes, há por aí muita gente que não sobrevive sem o partido. Mas, porque até nos assuntos que pouco me interessam não gosto de não possuir opinião (são gratuitas e toda a gente sabe como os portugueses adoram coisas gratuitas, mesmo que lhes venham a ser inúteis), tenho uma ligeira preferência por Rangel, essencialmente porque Sócrates parece gostar menos dele. (Sim, as minhas fundamentações são sempre assim profundas.) Ou (eu escrevo para me obrigar a pensar) talvez o que eu tenha mesmo é uma ligeira aversão por Passos Coelho. Gosto das pessoas que criticam frontalmente (desde que não me critiquem a mim, claro), não das que surgem com um sorriso charmoso, dão beijinhos e abraços, e depois disparam frases assassinas (felizmente, as frases assassinas raramente matam). Por outro lado, se não é mal nenhum ter sonhos na vida (em miúdo, eu queria ser astronauta mas entendo que outras crianças almejem logo liderar partidos políticos), ele parece ser o único candidato cuja ambição nunca lhe permitiria desistir da corrida, mesmo que lhe provassem que, fazendo-o, o PSD conquistaria o poder. E depois a ascensão dele parece-me demasiado planeada. Na adolescência, li uns quantos livros de espionagem e, apesar de não acreditar em teorias da conspiração (mas as Torres Gémeas continuam lá; é tudo feito com espelhos), uma coisa assim faz-me pensar em livros de Robert Ludlum ou John le Carré. Em planos meticulosos e demorados. Em agentes infiltrados. Em masterminds criminosas. (Alguém sabe se Ângelo Correia tem um gato?) Enfim. Independentemente das minhas preferências e das minhas despreferências (não é erro, é inovação), e até da catadupa de posts do Pacheco Pereira, parece que Passos Coelho vai ganhar. Não há problema. Como sou optimista (e mentiroso), capaz de descortinar pontos positivos até onde eles não existem, uma parte de mim fica satisfeita: é bom ver que há gente que consegue concretizar os sonhos de menino (eu já quase me resignei a permanecer com os pés no chão). Interessa-me é saber o que o PSD vai fazer depois de eleger o novo líder. E, mais especificamente, que ideias vai defender. Provavelmente todas as indispensáveis, segundo as conveniências de cada momento. (Ei, foi assim que Sócrates ganhou em Setembro passado e já sabemos que o cérebro por trás de Passos Coelho é arguto, para além de tenaz.) Mas pode ser que não. Pode ser que o PSD se afirme com ideias claras, que ganhe as eleições de Junho de 2011 (tenho acesso às caixas de correio electrónico do Público), e que transforme este país num Canadá sem frio ou numa Austrália sem animais venenosos (excepção feita a um ou outro ser humano), repleto de gente feliz, motivada e culta, imbuída de um nível de civismo não apenas comparável ao dos países nórdicos mas ao do próprio Pólo Norte. Sim, Passos Coelho é homem para isso. Por três ordens de razão.*
* Dr. Ângelo Correia: de bom grado pagarei direitos de autor pelo uso da frase. O que eu quero é ter a sua amizade. E não me importo de ser apenas o segundo português no Espaço.
Trovoadas breves ecoaram sobre o Porto durante a manhã. Sinto vontade de telefonar à minha mãe e lhe perguntar como está o tempo por lá. E, se estiver a trovejar, de ficar a conversar sobre qualquer coisa sem importância (as maldades do gato, por exemplo) até que passe.
Que nós tenhamos copiado o Carnaval do Rio e não o de Veneza poderia ser um sinal de esperança (apesar de tudo, gostaríamos de abraçar o presente) ou de inconsciência (recusamos encarar o futuro). Mas nenhuma explicação poética resiste ao pinderiquismo do nosso Carnaval.
Ah, a frase? Most of the time you are happy – you’re a weirdo.
Não resisti, claro. Justificação racional: índice de aproveitamento do espaço bastante atractivo para quem está prestes a deixar de jantar sentado a uma mesa por tê-las todas cobertas com livros de papel. Justificação realista: pura curiosidade. O que seria de um homem sem a tendência para os gadgets? Mas atenção: não gosto de quaisquer gadgets. Têm que me permitir desenvolver os meus interesses. Gosto de computadores, de televisores, de aparelhos de som, de máquinas fotográficas. Dão-me informação, prazer e/ou, dentro de limites que têm mais a ver comigo do que com os aparelhos em questão, permitem-me ser criativo. Estou-me nas tintas para telemóveis. (Sim, eu sei que o Jorge Colombo faz capas lindíssimas para a The New Yorker com um iPhone mas eu só consigo usar os telemóveis para coisas prosaicas e por isso não lhes ligo nenhuma; mais: irrita-me quem liga.) Estou-me razoavelmente nas tintas para relógios. (Alguns são belíssimos e têm mecanismos fascinantes mas não me expandem os horizontes, antes me prendem a compromissos; não uso relógio de pulso há mais de dez anos – para quê, se tenho um no telemóvel?) E depois, claro, tenho aquela incapacidade genética associada ao cromossoma Y para apreciar ou entender aparelhos como máquinas de lavar e os seus programas para roupa delicada. (Se nem sequer sei separar roupa escura de roupa clara: afinal, t-shirts pretas podem ou não ser lavadas juntamente com t-shirts brancas? E se forem cinzentas? Estou perfeitamente convencido de que os fabricantes de equipamento de linha branca contratam apenas engenheiras ou, vá lá, homens particularmente em contacto com o seu lado feminino. Ou vão dizer-me que é por acaso que a Whirlpool arranjou uma tecnologia qualquer chamada «sexto sentido»? A que homem é que ela se aplica?)
Mas estou a divagar outra vez. E, ainda por cima, não disponho de tempo para isto. Tenho de ir às compras (uma actividade que não me desagrada desde que possa comprar coisas que me interessam; sapatos, tenho três pares). Felizmente a Amazon está aberta toda a noite. Hmmmm, os poemas completos da Emily Dickinson por três dólares e quarenta e quatro...
P.S. (crítica rápida): Como dá para ver, os screen savers são belíssimos. E o aparelho funciona bem, apesar do tom de cinzento do ecrã ser mais escuro do que eu esperava. Contudo, o ponto mais irritante é que, por questões de direitos, muitos livros estão apenas disponíveis para o mercado americano. Boooooo...
Estive a ver o programa do Professor Marcelo. Enquanto ele perorava entusiasmado sobre coisas certamente muito importantes eu pensava que ser conhecido pelo primeiro nome é algo que poucos humanos conseguem. Ser identificado pelo apelido já é alguma coisa mas existem abundantes exemplos de gente que o conseguiu: Cavaco, Sócrates, Guterres, Soares, Eanes, Sampaio, Futre, Figo, Saramago, Cesariny. Impor o primeiro nome é raríssimo. Por cá, para além do Marcelo só me recordo do Herman e, prova de que, sendo difícil, pode suceder mesmo com nomes próprios banais, d’O Zé (sendo que, neste caso, o artigo faz toda a diferença).
Conseguir ser conhecido por uma única palavra, ainda que esta seja o apelido, é transformar o nome em alcunha. É criar um nome artístico, como «Elvis», «Madonna» ou «Bono» (os músicos parecem gostar particularmente de o fazer), sem mudar o nome que efectivamente se tem. Mas ser conhecido pelo nome próprio é verdadeiramente especial. É atingir o estatuto de cartoon. Repare-se: Mickey, Minnie, Donald, Pluto, Porky, Bugs, Ratatouille, Heidi, Popeye, Astérix. Poucas personagens da banda desenhada ou do cinema de animação precisam de um apelido. Quando muito, que seja especificado o tipo de animal que são (rato, pato, coelho), presumivelmente para afastar eventuais dúvidas decorrentes da imprecisão ou da excessiva criatividade do traço do desenhador. Este cuidado é dispensável nos seres humanos, uma vez que mesmo o Professor Marcelo parece indubitavelmente humano*. Existem, porém, cartoons que vão mais longe e dispensam totalmente a necessiade de nome próprio e apelido. A Pantera Cor-de-Rosa consegue ser identificada pela cor (nos humanos, o Blue Man Group é um esforço meritório no mesmo sentido mas não identifica as pessoas que constituem o grupo, antes os cartoons que eles representam), o Professor Pardal é reconhecido por um título académico e pela designação de toda a sua espécie, e o Diabo da Tasmânia vai um passo mais longe e dispensa o título. Nem o Professor Marcelo conseguiu ir tão longe e ser conhecido como «o Professor Humano» ou, simplesmente, «o Humano».
Apesar de o ter escrito no primeiro parágrafo, apercebo-me agora de que impor o primeiro nome não é assim tão raro. Na música (onde, já o vimos, muita gente é conhecida por um único nome), e mais especificamente no subgénero pimba, a utilização do primeiro nome é comum: Emanuel, Ágata, Romana, Toy, Clemente, Micaela. O que poderá demonstrar que há qualquer coisa de popularucho no uso isolado do primeiro nome. O «Herman». «O Zé». Talvez por isso Marcelo tenha tido o cuidado de arranjar e impor o «Professor». Nem ele nem o Professor Pardal gostariam certamente que os considerássemos pimba.
* Quando muito, o Professor Marcelo poderá ser confundido com um novo passo na evolução do ser humano, um homo sapiens sapiens sapiens.
Numa entrevista à Notícias Magazine de dia 4 (sim, é verdade, até a leitura de revistas trago atrasada), Nicolas Cage dizia não perceber a razão que leva o público a perdoar mais facilmente o comportamento errante de uma estrela de rock do que o de uma estrela de cinema. (Descodificando: por que é que o Slash pode consumir quilos de substâncias ilegais derivadas de plantas típicas da Ásia ou da América do Sul mas eu não posso beber uns copitos de vinho da herdade do tio Francis sem que os jornais me chamem wino desmiolado e o público recuse ver os meus filmes?*) Nic, ouve com atenção, rapaz: há duas razões (a primeira e a segunda) para isso acontecer. Talvez aches piada à primeira, não vais achar piada nenhuma à segunda mas deixo-te à vontade para a recusares. Por uma questão de tradição, comecemos pela primeira (mas ainda um dia, noutro tema qualquer, hei-de começar pela segunda). O rock é excesso, descompressão, exagero. As estrelas do rock são umas bestas (e atenção, eu adoro várias, em especial as que conjugam harmoniosamente as características «talento», «mulher» e «beleza»**) de quem o público espera coisas extravagantes e insensatas. Já o cinema, Nic (estás a ouvir, pá?), é identificação. Emocionem-nos, excitem-nos, assustem-nos, façam-nos sonhar, mas não nos desiludam: não se armem em bestas. Limitem-se ao egotismo tradicional, que a gente compreende e aceita porque sabemos que tanto dinheiro e tantos flashes costumam causá-lo. Razão número dois: vocês limitam-se a representar, Nic. E, quando cometem erros, repetem. A gente pode gostar de vocês (e gosta, pá, a sério que gosta) mas, lá bem no fundo, how hard can it be? Por comparação, já ouviste bem o que o Slash consegue extrair daquela guitarra?
*Ou, e isto é mesmo injusto, por que é que dezenas de estrelas de rock podem destruir quartos de hotel como se fossem cenários montados propositadamente para lhes aliviar o stresse mas a coitada da Winona Ryder é presa, julgada, condenada e nunca mais consegue arranjar trabalho de jeito em Hollywood só porque não resistiu à beleza de cinco mil e quinhentos dólares de roupa de marca e acessórios, e tinha deixado o cartão de crédito noutras calças?
** É politicamente correcto, é. Coloquei «talento» em primeiro lugar.
Passava eu calmamente à frente dos cinemas do ArrábidaShopping a caminho da livraria Almedina quando o cartaz de um filme me chamou a atenção. Estava (e deve continuar) pendurado ao lado de outros publicitando filmes como Os Homens que Odeiam as Mulheres (idiotas), Estado de Guerra (hmmm, promissor) ou Chéri (arrepio na espinha). Este anunciava, com um orgulho tão indisfarçável quanto o possível a um lençol de papel lustroso de um metro e oitenta e três por noventa e cinco centímetros (medição a olho), o filme Caçadores de Vampiras Lésbicas. Parei de caminhar, quase fazendo uma jovem que vinha a olhar para o ecrã do telemóvel se estatelar contra as minhas costas (travou a tempo e contornou-me com um trejeito de irritação a que não dei importância; tenho as costas largas). Senti um sorriso surgir-me nos lábios. Com a voz do Bruno Nogueira, o meu cérebro disse mas é que é perfeito, pá. Repare-se: caçadores - acção, tiros, sangue, mortes velhacas; vampiras - terror, suspense, caixões, mordidelas no pescoço, dentes caninos, dentes de alho; lésbicas - lésbicas. Que mais pode um homem desejar de um filme?
Não me lembrando de ler sobre Caçadores de Vampiras Lésbicas no Ípsilon nem na Premiére (como entretanto descobri que só estreia hoje, talvez a crítica saia no próximo número) fui ao IMDB e descobri que 3408 pessoas lhe deram uma nota média de 5,4. Muito menos que os 9,1 valores de "O Padrinho" (sim, tinha uns tiros, uma música catita e uma Diane Keaton bastante adorável mas – e daí?) ou os 7,9 do "E.T." (um extra-terrestre caginchas e bonzinho? Peeerliiiiiiiiiiiiiiize). Ou o título é a mais descarada e malévola publicidade enganosa que já vi (sim, mesmo superior às garantias do governo de que o TGV fará Portugal ficar mais rico do que a Noruega do bacalhau e do petróleo ainda antes de estar a funcionar), ou só mulheres se dão ao trabalho de votar no IMDB (enquanto os homens navegam em páginas de sexo), ou os homens já só vão ao cinema arrastados pelas mulheres/namoradas/filhos (até porque agora têm a internet e podem navegar em páginas de sexo), ou, definitivamente, os homens já não são o que eram. Como é que dizia o Bruno Nogueira naquela sua outra personagem?
(Se eu o vou ver? Errr, acho que não. Estou demasiado ocupado a navegar na internet.)
Em dia de reflexão eleitoral, as duas fotos que coloquei nos posts anteriores têm água. Superfícies amplas de água convidam à reflexão. Como também o fazem planícies extensas ou um céu estrelado. A imensidão faz-nos pensar. Torna-nos humildes. Abre-nos à consideração de outras hipóteses e ajuda-nos a redimensionar problemas. No caso da água, há um temor instintivo. Medo do afogamento e de criaturas estranhas e malignas, reais ou imaginárias. Mas há também fascínio, uma possibilidade de fantasia, de seres de histórias de encantar. E, mergulhado no que Freud chamou inconsciência, um desejo de regresso ao ventre (ao materno e ao primordial).
Perante uma superfície ampla (o mar, uma planície a perder de vista), o céu reage e torna-se também maior e mais presente. Junto ao oceano, a um rio largo ou a um lago, ficamos entre a água e o céu, conjugações improváveis de poeira cósmica presas entre a vontade de voar e a de mergulhar.
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