Bismarck e a escada rolante.
Os centros comerciais são espaços de luz e cor e movimento. Sem luz, cor e movimento um centro comercial está morto ou é outra coisa. Um centro de arte contemporânea, talvez. Em quase todos os centros comerciais há movimento horizontal e movimento vertical. O Sr. Bismarck gostava de movimento vertical e passava horas em centros comerciais a andar de escada rolante. Quando se sobe uma escada rolante a vida parece melhorar. Subir é melhorar. De resto, subir numa escada rolante não requer esforço. É subir na vida sem esforço. Claro que Bismarck também tinha de descer pois não existe uma escada, rolante ou não, num centro comercial ou noutro lugar, que suba sempre, até ao infinito. Mas Bismarck descobrira uma solução. Evitava a sensação de estar a fazer o percurso inverso – é particularmente dura a sensação de descer na vida pelo percurso inverso ao que se usou para subir – usando o elevador, onde encontrava frequentemente o Sr. Kloptonik.
Kloptonik e o elevador.
Não era por preguiça nem por hábito que o Sr. Kloptonik evitava as escadas quando podia usar o elevador. Não era também por preguiça nem por distracção que passava longos períodos a andar de elevador, para cima e para baixo, para cima e para baixo, mais para baixo ainda, para cima de novo, ao sabor das necessidades dos outros utilizadores, sem sair da cabina mais do que alguns segundos de cada vez. Kloptonik andava de elevador porque o elevador é um microcosmos que nos transfere da realidade de um piso para a realidade de outro piso. É uma passagem entre realidades paralelas. Verdadeiramente paralelas, uma vez que quase todos os pisos ligados por elevadores são paralelos entre si. (Raros edifícios têm pisos com distintos graus de inclinação em relação a um plano de referência.) Andar de elevador é como fechar os olhos num local e abri-los noutro. Como possuir a máquina das viagens no tempo do Sr. Wells, mas sem que o tempo se altere (ou apenas se alterando em poucos segundos e sempre para diante). Kloptonik encontrava muitas pessoas no elevador e gostava disso. Gostava até do ligeiro desconforto de estar tão perto de outras pessoas. Kloptonik tinha consciência de que o elevador também existe para nos fazer ter consciência dos outros e de nós mesmos. De certa forma, ter consciência dos outros é ter consciência de nós mesmos, pensava ele enquanto pelo canto do olho observava o decote de uma rapariga loura. Raramente fora de um elevador o Sr. Kloptonik tinha oportunidade de estar tão perto de raparigas atraentes. Ali, cheirava-as discretamente e olhava-as apenas um instante, o suficiente para que elas também o olhassem e depois desviassem o olhar. Kloptonik desviava então o seu, reprimindo um sorriso e a vontade de respirar fundo.
Para se deslocar para o emprego e para regressar a casa, que infelizmente ficava num prédio sem elevador, o Sr. Kloptonik usava o metropolitano. Um dia encontrou nele o Sr. Dürer. Segurava um livro aberto nas mãos mas tinha os olhos fechados.
Dürer e o metropolitano.
Dürer andava de metro porque fazê-lo lhe dava uma sensação de profundidade. Apesar de usado para deslocações no plano cartesiano, o metropolitano é o meio de transporte adequado para quem deseja profundidade. Nenhum outro meio de transporte excepto o submarino é mais profundo – e não é fácil arranjar bilhete para um submarino. As linhas de metropolitano são também muito parecidas em todo o lado: escuras, estreitas, com cabos agarrados às paredes passando velozmente do lado de fora dos vidros. Pode-se estar em Paris sem sair de Lisboa, matutava o Sr. Dürer. Andar de metropolitano é um método económico de exercitar a imaginação (e ter uma imaginação exercitada é ser profundo). Claro que algumas estações denunciam a cidade em que se está. E certas pessoas, pelo seu aspecto, também. Mas sair de um túnel para uma estação era sempre um momento de descoberta para o Sr. Dürer. Era como se nascesse para uma realidade inesperada, ainda que sempre a mesma, uma vez que Dürer já conhecia sobejamente todas as estações da cidade. Ou talvez, pensava ele, satisfeito por se sentir a pensar, ainda fosse mais inesperado por, independentemente daquilo que imaginava enquanto dentro do túnel, acabar sempre a sair na mesma cidade. Como a moeda do ilusionista que reaparece igual e, ainda assim, causa surpresa. Os túneis de metro levavam Dürer a explorar zonas profundas do cérebro a que raramente acedia enquanto à superfície, onde a quantidade de estímulos parece bloquear o acesso a essas zonas. Mas a possibilidade de usar a imaginação livremente, ao mesmo tempo que se é embalado pelo movimento das carruagens, era apenas um dos muitos aspectos que mostravam como o metropolitano é, em todos os sentidos literais e metafóricos, o meio de transporte mais profundo. Por exemplo: em poucos meios de transporte se lê tanto. É verdade que muitas pessoas tentam contrariar a profundidade do acto de leitura lendo jornais desportivos ou literatura «leve» mas, ainda assim, tal facto não basta para invalidar a tese. De resto, o Sr. Dürer já vira gente mergulhada em Homero e James Joyce. O próprio Dürer fazia questão de ler no metro. Como pensava muito, lia devagar. Mas acabara recentemente um livro e estava a começar outro. Nos primeiros parágrafos leu:
Aaronson e a primeira rotunda.
Todas as manhãs, um homem era visto, entre as sete e as sete e meia, a contornar a rotunda principal da cidade, rotunda onde desembocava sessenta por cento do tráfego.
Às sete da manhã o fumo dos automóveis era maior que ao fim da tarde, porém, mesmo assim, havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis. E ali, no meio, correndo risco de vida, um homem. Aaronson.
(...)
Centenas e centenas de vezes em redor da mesma rotunda, como um carro que não soubesse o caminho, que hesitasse entre seguir por uma direcção ou outra; que se deixasse estar por ali, à roda, não arriscando, não tomando uma opção. Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás.
(...)
Ninguém gosta de ser humilhado e Aaranson (se fosse um automóvel) pelo menos não entrava na estrada errada. Trezentas voltas para ganhar balanço e depois o regresso a casa.
O livro fora escrito pelo Sr. Tavares.
Tavares e os passeios a pé.
O Sr. Tavares escrevia livros que críticos e leitores comuns de livros apreciados por críticos adoravam e fazia longos passeios pela cidade com uma mochila às costas. Caminhava a um ritmo muito forte. Explicava: Isso faz uma pessoa pensar de uma forma muito diferente do modo como se pensa sentado. Deixava os livros que escrevia em pousio durante anos antes de os publicar. Dizia gostar de viver em diferido. Tenho livros já terminados e há o que sai. O que sai é uma outra vida. É como estar noutra vida a olhar para os livros que estão a sair neste momento. Ainda assim, Tavares subia na vida.
Notas sobre escada rolante, elevador, metropolitano, rotunda (Posfácio)
1.
O movimento é hoje um pré-requisito. Uma pessoa parada é uma pessoa que não parece evoluir em qualquer sentido. Convém pois manter o movimento, mesmo quando o corpo está imóvel. Os meios de transporte mecânico são bons para este efeito. Mas mesmo passadeiras e bicicletas de exercício, que não saem do mesmo sítio por muito que se corra ou pedale, são úteis para instigar a sensação de movimento.
2.
O Sr. Bismarck sobe num meio que lhe permite ver que sobe. A visão é essencial para subir na vida. Mas aumenta a dor das descidas.
A surpresa é mais forte quando não se vê. E quando se vêem poucas coisas, como nos elevadores do Sr. Kloptonik, o que se vê tem mais força. Outra coisa que acontece é que quando não se vê, inventa-se. Cria-se. Aumenta-se a profundidade, por falta de horizonte. Como no metropolitano do Sr. Dürer. Mas é mais difícil subir na vida em meios em que não se vê que se está a subir. Para subir na vida é necessário viver no plano ortogonal, não apenas no cartesiano: o terceiro eixo, o dos z, é de extrema importância. Felizmente para o Sr. Tavares, o relevo da cidade faz com que esteja consciente das subidas e descidas.
3.
O Sr. Tavares tem razão no posfácio do seu livro: a ordem, uma qualquer lógica que auxilie o ser humano a compreender o que o rodeia e o que lhe pode suceder, é essencial. A falta de ordem apavora. O pensamento desordenado assusta. Pessoas em grupos desordenados em vez de em filas tornam-se ameaças. Loucura é desordenação. Anarquia. A hierarquia pelo alfabeto não é, pois, uma brincadeira de crianças. Pode representar a salvação (já passaram a minha letra), uma condenação (sou eu!) ou representar ainda o tempo da ameaça suspensa (ainda não chegaram à minha letra). É por oposição a isto (mas não discordância) que as personagens deste texto, ao contrário das do livro do Sr. Tavares, não estão alfabeticamente ordenadas. Como o Sr. Tavares sabe perfeitamente, a ordem é essencial mas a dúvida pode ser mais criativa.
4.
Há outro motivo, mais prosaico, que pode muito bem ter sido o principal para a falta de ordenação alfabética das personagens: é muito difícil arranjar três nomes que precedam Aaronson no alfabeto.
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