como sobreviver submerso.

Sexta-feira, 14 de Agosto de 2009
Vida e morte

Uma das opiniões colocadas no site britânico da Amazon ao livro Araki Gold (é melhor não usarem o link anterior em ambiente laboral e de forma nenhuma usem este, que inclui um vídeo de uma exposição com imagens sexualmente explícitas) mostra desagrado pela série de fotos dedicadas a bondage, uma fantasia muito japonesa (não quer dizer que não se faça noutras partes do mundo) e bastante polémica pelo papel a que parece submeter as mulheres. Lembrei-me várias vezes do comentário e das fotos de Araki enquanto lia “Hotel Íris”, de Yoko Ogawa, uma autora publicada agora pela primeira vez por cá. Mari é uma jovem de dezassete anos que perdeu o pai em criança e ajuda a mãe – ríspida, controladora, que arranja meticulosamente o cabelo de Mari todas as manhãs e lhe gaba tanto a beleza perante estranhos que Mari se acha na realidade pouco atraente – a cuidar do pequeno hotel de família situado numa daquelas cidades costeiras que, no Japão como em Portugal, só estão verdadeiramente vivas durante o Verão. Ora o livro é precisamente sobre a vida e, especialmente, sobre a morte (não o são todos?), e por isso tudo começa no início do Verão e termina quando ele se extingue. No hotel, Mari – que narra a história – assiste à fuga de uma mulher de um quarto, gritando acusações de perversão ao homem que lá se encontra. Este, com cerca de sessenta anos, fascina Mari pela compostura (ao contrário da mulher, está totalmente vestido, não transpira e não parece embaraçado) e pela firmeza. Profere apenas duas palavras que parecem a Mari ressoar “sangue-frio, majestade e convicção”. Duas semanas mais tarde, Mari vê-o na povoação e segue-o. Ele apercebe-se da sua presença e interpela-a. Está assustado e não parece o homem dominador da noite no hotel. Perceberemos que a sua capacidade para dominar se limita aos quartos de hotel que ocasionalmente frequenta ou à sua casa situada na pequena ilha perto da costa. Em público, é apenas um viúvo que se dedica a traduções de russo para japonês, solitário, obsessivo e desamparado (por vezes agressivo). Como todas as outras personagens, Mari exceptuada, nunca será identificado por um nome, permanecendo “o tradutor”. A relação que se estabelece entre ele e Mari é simultaneamente terna (quando na povoação) e extremamente violenta (quando a sós). Na casa da ilha, ele amarra-a, espanca-a, obriga-a a actos humilhantes. Ela aceita tudo porque “não sei bem se aquilo que o tradutor fez ao meu corpo é normal ou não. Também não sei como hei-de saber.” Ele mantém-se vestido e aparentemente nunca a penetra com o pénis. Apesar de se questionar sobre a normalidade do que ele lhe faz e sobre a morte da mulher dele (terá sido acidental ou tê-la-á ele morto em jogos similares aos que pratica com ela?), Mari permite tudo e inventa subterfúgios para voltar a encontrar-se com ele. Para isso, tem ela própria que aprender a capacidade de dominar, iniciando um jogo de chantagem com a empregada de limpeza do hotel que descobriu que ela se encontra com alguém. Mari tem armas para a obrigar ao silêncio porque todas as personagens usam formas para escapar à vida mortiça da cidade e a da empregada é roubar objectos que pertencem a Mari. (A mãe participa em sessões de dança.) Tudo isto é contado no estilo límpido e sereno que parece apanágio de tantos escritores japoneses. Que parece apanágio dos japoneses, tout court. Com uma melancolia que também se encontra frequentemente nos olhos das mulheres das tais fotos de Araki (que disse uma vez considerar que Tóquio tem os habitantes mais infelizes do mundo). É esse estilo que torna o livro fácil de ler apesar de toda a violência, explícita e implícita. Ogawa mantém um controlo quase perfeito (também ela) sobre o que inclui e o que deixa à imaginação do leitor que impede o livro de cair na gratuidade. Refira-se que Hotel Íris é o género de obra que ganha em ter sido escrito por uma mulher. Por muito que os bons escritores consigam delinear personagens do sexo oposto ao deles – e conseguem – ter sido uma mulher a escrevê-lo e ser outra a narrá-lo aumenta a ambiguidade. Torna mais difícil lê-lo como simples fantasia masculina. Se fosse apenas isso dificilmente teria aquela cena em que Mari força o tradutor a andar de carrossel – porque Mari é, afinal, uma criança em processo de maturação – e os papéis se invertem. Nem talvez aquela explicação para a morte da mulher dele. Hotel Íris não é para todos os gostos mas é um pequeno livro provocante e bem escrito. Com um final lógico, não exactamente inesperado, mas que permite pela última vez a pergunta sobre quem ganhou e quem perdeu em todo o processo. Uma coisa é certa: Mari não mais voltará a ter que suportar a mãe atando-lhe o cabelo todas as manhãs.

 

Hotel Íris, de Yoko Ogawa. EdiçãoQuetzal.Tradução (do francês) de Filipe Jarro.

Foto retiradadaqui.



publicado por José António Abreu às 08:45
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