William Gaddis era um autor «difícil», porque pouco dado à exposição mediática (algo que parece mais frequente nos Estados Unidos do que em qualquer outro país, no que será talvez uma reacção à cultura do sucesso e da visibilidade – e do sucesso pela visibilidade – que impera por lá há mais tempo do que noutras zonas do globo) e porque escrevia livros «difíceis». Morreu faz hoje doze anos, de cancro na próstata. A sua última obra (a primeira que leio e, que eu saiba, a única editada em Portugal) é uma narrativa breve que, em poucas dezenas de páginas, lida com quase tudo.
À beira da morte, um homem tenta concluir a tarefa a que se predispôs – escrever a história do piano mecânico e, através dela, mostrar como nos fomos vergando ao prazer fácil, automático, sem rasgo de genialidade. A tarefa é enorme, o tempo escasseia, o corpo não obedece, os dados não estão nos sítios onde deviam estar, o cérebro, intoxicado pelos medicamentos, divaga, executa circunvoluções, procura recentrar-se. E as frases do livro vão atrás. Como deveria ser num libelo contra o excesso de ordem, de racionalidade, de conformismo. Contra um mundo que pretende que tudo tem explicação racional, que tudo é passível de ser descodificado, separado em zeros e uns ou em elementos do código genético. O narrador insurge-se contra o facto de a tecnologia, que você poderá tocar melhor com o rolo do que muitas pessoas com as mãos, ser usada contra o próprio artista e o piano, o piano mecânico e o seu descendente o computador barricados contra o medo do acaso, da probabilidade e da indeterminação. Afinal, a previsibilidade é uma arma – que melhor forma de controlo pode existir do que a instigação de comportamentos previsíveis? – e deve ser controlada. Uma sociedade de gente previsível, regida inteiramente pela lógica e pelo prazer fácil, é uma sociedade onde a arte não tem lugar porque a arte nasce de uma mistura de doença e de fraqueza, loucura e suicídio, Keats tuberculoso e Beethoven surdo, Dostoiévski epiléptico, Byron coxo e Homero cego se é que Homero existiu de facto, Baudelaire e Schiller e loucura e suicídio em quantidade suficiente para agradar ao próprio Deus, Schumann e Kleist suicidas, Hölderlin louco e o mais infeliz deles todos. O narrador do livro quer explicar-nos isso, quer dizer-nos onde isso leva (à entronização da futilidade, à irrelevância da arte, à manipulação de características genéticas para obter a cor de cabelo ou de olhos mais conforme aos padrões de beleza em voga no momento) mas sabe que nunca o conseguirá porque claro que nada pode ser verdadeiramente explicado a quem quer que seja e é por isso que não ouvimos senão explicações de explicações o que nos leva de volta a Wiener e ao seu quanto mais complexa a mensagem maior é a probabilidade de erro de maneira que mais vale atermo-nos ao cliché da Lua de Junho no rolo de piano de cinquenta cêntimos. Ágape, Agonia é, sabemo-lo desde o início, uma luta contra a inevitabilidade – a inevitabilidade da morte do narrador chegar antes de ser capaz de concluir a tarefa a que se propôs, em grande medida por a tarefa, nos termos e ambição propostos, não ser concretizável (o próprio Gaddis amontoou milhares de artigos sobre o piano mecânico e acabou por escrever «apenas» estas oito dezenas de páginas, já na parte final da vida), e a inevitabilidade, mais séria, do ser humano preferir certezas, soluções fáceis, tudo o que não o obrigue a pensar ou a realizar esforço. Preferir Il Divo a Verdi, Michael Bay a Michael Haneke, José Rodrigues dos Santos a William Gaddis. Preferir comprar um piano mecânico a ter o esforço de aprender a tocar piano. Preferir moldar o corpo (e, cada vez mais, o cérebro) com esteróides, implantes de silicone ou manipulação genética a aprender a viver com um corpo «imperfeito». Porque (triste mas lúcida conclusão de alguém que, à beira da morte, já não encontra motivos para contemporizar) o que conta é quantidade de prazer não a qualidade ponto final.
Ágape, Agonia, de William Gaddis.
Edição Ahab, tradução de José Miguel Silva.
Torschlusspanik é o medo de portas que se fecham, de oportunidades perdidas, de ficar soterrado, de não ter leitores – mais ou menos a sensação que os portugueses têm actualmente. Foi o título do monólogo em um acto escrito por Gaddis a pedido da DeutschlandRadio, que acabou por ser editado em livro com o título Agapé Agape. (Do excelente posfácio de Joseph Tabbi.)
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