como sobreviver submerso.
Pergunta de algibeira: por que será que estes «manifestantes» que partem montras e saqueiam lojas em nome de mais justiça social são quase todos do sexo masculino? As mulheres não sentem problemas similares, talvez piores?
Pista: pela mesma razão que também não se vêem muitas mulheres nas claques de futebol que vandalizam áreas de serviço em nome de um clube.
Quando sabemos que não valemos nada, só mesmo jogar à roleta russa com a morte é que pode satisfazer a nossa vaidade.
Don DeLillo, Submundo.
Edição Sextante, tradução de Paulo Faria.
Mas há quem lhe chame outras coisas. Desejo de justiça, por exemplo. E, claro, a culpa de não valermos nada (ou, mais exactamente, de pensarmos não valer nada) é sempre alheia. Dos nossos pais, dos nossos professores, do governo, de realidades difusas como a globalização, de pessoas tentando defender as suas lojas.
A destruição é atraente. Ver carros desfeitos e prédios a arder. Uau. Qualquer justificação é desnecessária, excepto a oportunidade. Subitamente, pode-se fazê-lo. Talvez não se deseje matar alguém mas não se pensa nisso. Se acontecer,
acontece. E se for um polícia, nem conta. Dificilmente os polícias podem ser considerados «alguém». São o factor de risco. O acréscimo de adrenalina. Os filhos da puta e os soldados dos filhos da puta. São a justificação formal, juntamente com a sociedade de consumo, o capitalismo, a injustiça social. Não importa. O que importa é deixar marca. Destruir coisas. Ver prédios a arder e saber que se fez aquilo. Uau. Duplo uau. É a coisa mais fantástica que já se fez na vida – a mais fantástica que provavelmente alguma vez se virá a fazer (mas não se pensa nisso; o futuro é uma entidade abstracta que nada significa). A emoção de ser um fora-da-lei, de conseguir deixar zonas da cidade a ferro e fogo, de obrigar toda a gente a prestar atenção e a borrar-se de medo. E ainda de ver
especialistas na televisão e nos jornais
explicando que há motivos válidos para os actos. Que estes são cometidos por pessoas que devem ser
ouvidas. Que têm
ideias. Uau.
Fucking uau.
Mas já agora, que estamos numa de vandalizar e assaltar lojas, que sejam de material electrónico, de modo a poder levar-se para casa um iPad ou uma PS3. No fundo, é o que verdadeiramente se deseja.
J. G. Ballard e os inexplicáveis actos de violência.
No dia 27 de Abril, o jornalista Paulo Moura colocou no seu
blog uma
entrevista que fez em 2004 ao escritor J. G. Ballard, falecido há cerca de duas semanas. É uma conversa notável. Ballard, como se sabe, era tudo menos optimista. Mas as manifestações de violência dos últimos anos na Europa (de Paris à Grécia) ou, em menor escala mas talvez dentro da mesma lógica, os acontecimentos dos últimos dias (o
ataque à família real holandesa, os
tumultos em vários pontos do planeta no primeiro de Maio, as
tentativas de agressão a Vital Moreira), ajudam a justificar a sua visão. A sociedade que criámos e continuamos a criar é cada vez mais controlada. Os instintos estão cada vez mais pressionados por compromissos assumidos e por regras politicamente correctas: seja educado, respeite as minorias, não fuja aos impostos, pague as prestações da casa e do automóvel, cumpra as regras de trânsito, não fume, não beba quando conduz, não seja gordo, não leve o carro para o trabalho, não mostre desagrado no emprego, festeje e consuma em todas as datas em que é suposto fazê-lo, não cuspa para o chão, sinta-se bem sendo constantemente alvo de vigilância, etc., etc, etc. Já repararam como temos tendência para resmungar contra quem não cumpre uma regra (alguém que nos passa à frente num consultório médico ou numa fila, ou que não pára no semáforo quando este está prestes a mudar para vermelho), mas estamos com frequência disponíveis para fazê-lo também? A verdade é que entendemos a lógica das regras mas desejamos que não se nos apliquem. Em certas circunstâncias, não aguentamos mais. E nessa altura surgem os actos "inexplicáveis" a que Ballard se refere na entrevista:
P. As pessoas matam por enfado?
R. Estão desesperadas. É como um grito de socorro. Numa sociedade totalmente saudável, a loucura é a única liberdade possível. À medida que as sociedades ocidentais se tornam mais prósperas, mais civilizadas, mais governadas por leis razoáveis, deixamos de poder tomar decisões morais.
Há uns anos, num texto ficcional que já passou por muitas editoras mas, provavelmente por sensatez, nunca ninguém quis publicar, escrevi o seguinte:
Se conseguia entender muitas das razões que levavam alguém ao suicídio, melhor ainda entendia as que levavam alguém a pegar numa arma de fogo e começar a disparar indiscriminadamente. A estupidez global era justificação mais do que suficiente. E a utilização da última bala nos próprios miolos (gesto tão habitual nos que cometem esses actos “inexplicáveis”) revelava a lucidez: não podem ser desculpados os anos em que se serviu a estupidez, em que não se conseguiu lutar contra ela, em que se desejou ficar tão estúpido, adormecido, integrado, como todos os outros.
Quando vejo as pessoas abanarem a cabeça de incredulidade perante actos como o da Holanda, pergunto-me se o fazem com genuína estupefacção ou, mesmo que a nível subconsciente, por auto-defesa. Creio que Ballard se inclinaria para a segunda hipótese.