Consideremo-nos felizes ou infelizes, bonitos ou feios, inteligentes ou estúpidos, ou, como é mais habitual, tudo isto em momentos diferentes, a nossa vida parece quase sempre ter menos significado e ser mais incongruente do que a dos outros, em particular se não existir uma qualquer crença (na maioria das vezes religiosa) que simultaneamente a relativize e lhe dê sentido. Seja como for, o principal objectivo da vida de qualquer pessoa é torná-la real; conferir-lhe significado. Quase toda a gente o atinge apenas durante momentos dispersos - entre os quais o que precede a própria morte.
Numa parede do Porto.
Olho para a frase acima e pergunto-me se George estaria certa - e, nesse caso, que diabo se passa na cabeça de um homem capaz de a escrever.
Claro que Love, Nina decorre no início da década de 1980. Talvez hoje em dia mais mulheres pintem coisas no chão e nas paredes. Não daria um grande sinal do rumo da evolução feminina (há actos tipicamente masculinos que, podendo remeter para instintos antigos de marcação do território, são hoje apenas estúpidos) nem faria com que esta mensagem ficasse aceitável, mas sempre a tornaria um pouco menos ilógica.
No que me diz respeito, chegar perto dos cinquenta e começar a apreciar raparigas com idade para serem minhas filhas gera uma perturbação não mais do que ligeira. Pior é perceber que algumas delas são filhas de amigas e/ou colegas que fizeram - e, em muitos casos, ainda fazem - parte das minhas fantasias.
O meu consumo de música pop começou a declinar por volta dos vinte anos e qualquer coisa, cerca de meados dos anos oitenta, e aos trinta a minha ignorância na matéria já atingia proporções cósmicas. Uma desgraça para alguém que, em tempos de pré-adolescência, sabia de cor os nomes de todos os membros de muitos grupos rock, inclusive alguns que, por pudor, não ousaria hoje nomear. Ainda tentei algumas vezes, sem muita convicção, e a conselho de amigos, ouvir coisas novas, mas, tirando uma vez ou outra, não percebi ou não me interessou. Continuei a ouvir, é claro, de tempos a tempos, música que ouvia em tempos passados (os Beatles ou os Kinks, ou os RoxyMusic, por exemplo) e certas coisas novas feitas pelas pessoas que eu costumava ouvir: Leonard Cohen, Zappa, LouReed às vezes, algum Dylan – e David Bowie, em primeiro lugar. Não se nasce impunemente em 1960.
Suponho que, com estes ou outros nomes, é uma experiência comum. As pessoas crescem, esquecem, envelhecem, e depois já é tarde demais para voltar a aprender um entusiasmo ou outro.
Será uma experiência comum mas baralha-me há muito. Estou ciente do poder da inércia mas estranho a capitulação. Percebo que se vão adquirindo outros gostos (raras pessoas ouvem A Love Supreme, de John Coltrane, ou a oitava sinfonia de Mahler aos dezoito anos) mas confunde-me que isso suceda através de um processo de substituição. Para mais, quando este é incompleto: não se abandonam os gostos da juventude, apenas se prescinde de ganhar outros.
Nada disto ocorre no cinema: muitos podem preferir os filmes do tempo em que cresceram, ou mesmo os «clássicos», mas nenhum fã de cinema se recusa a assistir e, quando entende adequado, a elogiar os actuais. (Pelo contrário: ficar preso a filmes «antigos» é visto com estranheza.) Não ocorre também na literatura: mesmo quem pensa que todas as grandes histórias já foram escritas não se sente impelido, por desagrado ou inércia, a evitar as obras de autores contemporâneos. Em qualquer arte, conhecer trabalhos do passado (e, em particular, os que marcaram a evolução dessa arte) evita gritos extemporâneos de originalidade mas não obriga ao desinteresse. As obras que descobrimos na juventude são com frequência as mais marcantes mas não têm o poder de se impor como exclusivas. Excepto na música pop/rock.
Precisamente: falamos de música pop/rock, argumentarão alguns. Por já não constituírem desafio suficiente, filmes e livros de certos géneros também se vão abandonando com a idade, mantendo-se apenas uma relação cúmplice com aqueles que nos encantaram na juventude. Talvez. Mas será a boa música pop/rock assim tão simples e evidente? Eu arrisco dizer que pelo contrário. Que há nela uma dificuldade especial, maior do que a existente na literatura e no cinema contemporâneos, que a torna problemática para todos aqueles a quem (desculpem lá) a idade entorpece. A melhor música pop/rock recusa-se não por ser básica e repetitiva mas por - de forma algo similar à música «clássica» contemporânea - ainda conseguir ser estranha. No cinema e na literatura, a estranheza instintiva, quase epidérmica, já é rara. Tristam Shandy tem um quarto de milénio. O monólogo de Molly Bloom (depois dele, será possível estranhar alguma coisa na literatura?) aproxima-se do século. No cinema, Un Chien Andalou surgiu há quase noventa anos e depois do surrealismo de Buñuel tivemos muitos outros, incluindo o de David Lynch. O minimalismo e o grau de exigência de Bergman e Dreyer prepararam-nos para quase todos os filmes «lentos» que vieram depois e a sequência final do 2001: Odisseia no Espaço não nos permite grande surpresa quando assistimos a The Tree of Life, de Terrence Malick. Mas a música pop/rock tem uma história relativamente curta e a estranheza ainda é frequente. De tal modo que, muitas vezes, a renúncia é temporária: há bandas que são postas de lado à primeira audição mas que, anos depois, mais ou menos entradas na consciência colectiva (para não escrever no cânone do pop/rock), já se apreciam. No fundo, o que os Animal Collective (novo álbum dentro de dias) faziam por volta de 2010 não era substancialmente diferente do que David Bowie ou os Velvet Underground levavam a cabo por volta de 1970, os Joy Division por volta de 1980 ou os Nirvana por volta de 1990: moldavam sons e palavras em canções que primeiro se estranham e depois se entranham. Todavia, embora certamente recordados de quão incompreensível lhes era na adolescência a indiferença (quando não a hostilidade) dos seus pais em relação à música que ouviam, poucos «adultos» actuais se dispuseram a prestar-lhes atenção. Talvez dentro de mais uns anos.
Começa-se sem saber bem no que vai dar. Mantêm-se imensas ilusões mas temem-se a indiferença e o desprezo, bem como a incapacidade de estar à altura da tarefa. Responde-se de forma desajeitada às primeiras - e memoráveis - pessoas que estabelecem relação. Quem chega mais tarde obtém uma realidade parcial. Tentar descobrir o que ficou para trás pode reforçar - ou fazer desvanecer - a atracção mas dá trabalho e poucos o fazem. Quase sem dados concretos elaboram-se imagens e verdades, que permanecem apesar de serem desmentidas uma e outra vez. Há quem fique pouco tempo e, desinteressado quando não desiludido, logo desapareça. Há quem se empenhe - aconselhe, critique, procure moldar - e resista durante períodos surpreendentemente longos. Há o cansaço que, de um lado e do outro, se instala e as pausas que urge introduzir. Há os erros, as hesitações, as desilusões, os entusiasmos repentinos, as discussões estimulantes e as discussões cansativas - pelo momento, pelo tom mas, acima de tudo, por já terem ocorrido inúmeras vezes. Há afinidades que se referem com frequência e ódios de estimação que também se referem com frequência mas em tom completamente diferente. Há a passagem do tempo e a ideia de que se tem afinal menos controlo, menos originalidade e menos relevância do que era suposto.
Os blogues não são a vida real mas arranjamos sempre forma de tudo parecer a vida real. Talvez por a consciência - esse factor que nos diferencia dos restantes animais - nos permitir intuir que, em grande medida, a vida real é uma ficção.
O que é que nos fazia pensar que, se alguém não nos consegue amar, é porque está magoado, deficiente, com algum tipo de disfunção? E nos casos em que nos substituem por um deus, ou uma virgem em pranto, ou o rosto de Cristo num pano sagrado - aí tratamo-los por doidos. Iludidos. Regressivos. Estamos tão convencidos da nossa própria bondade, e da bondade do nosso amor, que não suportamos acreditar que haja algo que seja mais digno de amor do que nós, mais digno de devoção. Os cartões de felicitações dizem muitas vezes que toda a gente merece amor. Não. Toda a gente merece água limpa. Nem toda a gente merece amor a toda a hora.
Zadie Smith, Dentes Brancos. Edição D. Quixote (2002), tradução de Manuel Cintra.
Pois não. Mas dói, aceitá-lo. E recusar fazê-lo talvez constitua parte do que nos faz humanos. Como, de resto, desejar amar.
Gosto de pensar que sou pessimista. Na realidade, como a maioria dos portugueses, sou apenas um optimista envergonhado.
No centro comercial: homem e mulher com aspecto gótico levam pela mão uma miúda (quatro, cinco anos no máximo) vestida como uma princesinha de conto de fadas.
Fico a vê-los afastarem-se. Por instantes, sinto estar a observar uma cena de um filme dos bons velhos tempos de Tim Burton. Há ternura no contraste. Como se a miúda lhes tivesse caído no colo de surpresa, vinda de um universo paralelo ao deles, e procurassem ainda a forma adequada de reagir. Ou, melhor, como se tanto ela como eles viessem de universos paralelos a este e se tivessem juntado para tentar navegá-lo.
Depois de abandonarem o meu campo de visão ponho-me a pensar mais a sério. Será possível que uma miúda daquela idade já tenha capacidade para recusar o exemplo dos progenitores e impor um aspecto tão distinto do deles? Neste caso, quão desconcertante (todos os pais se imaginam modelos para os filhos) será para eles? Ou será desejo dos pais mantê-la num mundo de encanto e inocência, em que claramente não acreditam, até tão tarde quanto possível? E constituirá o exagero uma tentativa de compensar essa falta de crença?
Ou então - a minha faceta racional e mais do que um nadinha cínica estraga-me sempre as divagações - são apenas tios e sobrinha.
Os noruegueses eram idolatrados. Mais do que ele realmente queria ser, porque eram idolatrados não pelo seu valor enquanto indivíduos mas pela sua desejada nacionalidade.
Dag Solstad, Novel 11, Book 18. Tradução minha partir da versão inglesa de Sverre Lyngstad.
O narrador do livro refere-se à sensação que encontrou na Lituânia mas julgo que ela pode ser estendida a vários outros países. Sendo que, em pelo menos um deles, quando se debate o assunto é obrigatório esconjurar a ameaça de depressão com um comentário imediato sobre as vantagens do Sol e das temperaturas amenas.
Só pode. Montes dela. Um autêntico Hugh Jackman por dentro. Ou, pelo menos, fica a esperança. Porque, exteriormente, trinta graus de temperatura deixam-me com o aspecto (e, suspeito, com o odor) de uma camisola do Benfica logo após um jogo decidido no último minuto do prolongamento. Ainda por cima, o que diabo se passa com o meu cabelo? (Está comprido e tem vontade própria, é isso que se passa.) E por que raio comprei esta roupa?
(Tanta coisa inconstitucional e temperaturas destas são permitidas...)
(Vem um tipo viver para o Porto porque Lisboa é que é quente...)
(Quando é que chega o Inverno, carago?)
Agora já bem entrado nos setenta, o mestre da Morávia sentia-se mais divertido do que intimidado pela cultura dos festivais; gostava de contar a história de como, ao tentar encontrar o caminho do palco para agradecer os aplausos no festival ISCM de 1925, abrira a porta errada e achara-se na rua.
Alastram, são cada vez mais assumidas, tornam-se moda. Quem, há vinte ou trinta anos, ouvira falar da intolerância à lactose ou ao glúten?
Como ainda não está em francês pós-acordo ortográfico, permito-me comprar a Photo de Janeiro com as fotos enviadas pelos leitores. E confirmo novamente. O digital fez com que criar imagens perfeitas se tornasse irresistível. Apagam-se linhas eléctricas cruzando o céu e pacotes de batatas fritas caídos no chão, torna-se o céu mais azul, eliminam-se (ou amplificam-se) rugas e sinais. Porém, a realidade não é perfeita. Nela, as linhas, os pacotes de batatas fritas e as rugas existem, o céu nem sempre está azul. Não interessa. A realidade é uma maçada. Na fotografia, como em tudo o resto (até na política), já só apreciamos a perfeição. Por isso, corta-se, apaga-se, alisa-se. E a realidade torna-se-nos cada vez mais insatisfatória.
Lytton Strachey, o amigo de Woolf com quem ela esteve comprometida a certo ponto, teve numerosas relações homossexuais, muito embora também ele tenha assentado num arranjo de longa duração, no seu caso com Dora Carrington, uma jovem mulher que o adorava, e o marido dela, Ralph Partridge, que ele adorava.
Sandra M. Gilbert, introdução a Orlando, de Virginia Woolf, edição Penguin Classics. Tradução minha.
Resta a questão: quem adorava a Dora? Desde que Ralph a adorasse, era o triângulo perfeito.
Entro numa casa de banho usada quase exclusivamente por um rapaz de vinte e três anos de idade. Enquanto lavo as mãos (com sabonete em barra) conto os frascos, as bisnagas e os boiões que se alinham junto ao lavatório e à banheira: vinte e três. Mesmo admitindo que algumas embalagens contêm o mesmo tipo de produtos, não consigo perceber como se pode usar tanta coisa. Entre o fascínio e a repulsa, suspiro e saio.
(A sério: sabonete líquido, champô, amaciador, creme da barba, after shave, desodorizante, água de colónia, gel para o corpo, gel para o cabelo, creme para as mãos... Raios, ainda nem cheguei a metade!)
Diz-se que muitos homens ouvem «sim» quando as mulheres dizem «não». Sem dar azo a violência física (excepto, talvez, autoflagelações), o problema oposto é menos grave mas causa certamente inúmeras mágoas. Às vezes desconfio que sofro dele. Que passei a vida a ler «nãos» onde afinal estavam «sins».
(E depois fico sem saber o que é mais patético: ter desperdiçado as oportunidades ou estar agora a inventá-las.)
A fúria é uma estranha forma de vida, mas não mais estranha do que o fado, talvez um fado virado do avesso.
Desconheço que características minhas despoletaram a atracção. No que me diz respeito, nem me apercebi do início do processo. Actos conscientes e deliberados, penso que não tive. Ainda assim, algo terá sido. Química. Uma afinidade cósmica. Sorte ou, mais precisamente, azar. É curioso como relações tão intensas e íntimas podem nascer sem que uma das partes tenha consciência da sua existência até ser tarde demais. Até já não poder escapar às consequências, a uma luta feroz, sem quartel – suja. O corpo humano é uma coisa estranha, simultaneamente fascinante e assustadora. De uma tremenda força, física e mental; de uma absoluta fraqueza. Capaz de resistir aos maiores ataques, cedendo perante o invisível. E é verdade que, a determinada altura, cedi. Fui fraco. A partir desse momento o recuo era impossível - havíamos ido longe demais. (Quando a carne é fraca, corpo e espírito têm sofrimento assegurado.) Também já não era possível uma solução que nos deixasse incólumes. Há consequências, haverá mais. Terei de passar das palavras aos actos. Terei que ser duro, demonstrar que não me encontro disponível para continuar. Julgo poder escapar sem grandes marcas (preciso de optimismo). A longo prazo, serei até a parte menos afectada. Isso não me perturba. Nunca quis esta relação. É doentia.
Desculpem-me só um momento.
Atchim!
Está a dar cabo de mim.
Nos tempos actuais - e ainda que a ciência o tenha validado -, a química é um conceito pouco exacto para descrever o mecanismo de atracção entre duas pessoas. As reacções químicas tendem a alterar significativamente os elementos que as sofrem. Mais correcto e moderno será ver as relações como redes Wi-Fi, nas quais se saltita entre hotspots consoante a força do sinal.
Oito e meia da manhã. Na Praça da Galiza, no Porto, uma senhora de setenta e muitos ou, mais provavelmente, oitenta e poucos anos de idade passeia um bull terrier pela trela. O cão (ou cadela, que não pude descer a esses pormenores e hoje em dia, quando em dúvida, um tipo tem de ser politicamente correcto e mencionar ambos os sexos... perdão, géneros) não usa açaime e parece tão feliz da vida quanto os cães desta raça costumam parecer, pelo menos a quem não lida com eles de perto (digamos Vasco Pulido Valente num dia bom). A senhora, pelo contrário, parece aborrecida ou talvez apenas com sono (pensando bem, o «pelo contrário» não se aplica porque não existe grande diferença - o que até tem lógica quando é sabido que os donos de animais tendem a começar a parecer-se com eles, circunstância especialmente chata para possuidores de serpentes, tartarugas ou peixinhos de aquário). Talvez por gostar de cães, por, como já referi noutro texto qualquer, o único que alguma vez me mordeu ter tamanho e aspecto geral de pulga alimentada a esteróides anabolizantes, e por encarar com cepticismo todas as histerias geradas pela televisão, o cão não me inspira receio. Ainda assim, pergunto-me o que aconteceria se, repentinamente, ele se passasse. Não a mim - neste tipo de coisas, um tipo começa por imaginar-se espectador. É mais o que aconteceria à senhora, idosa e pequenina. Imagino-a a ser arrastada pelo pavimento ou a largar a trela e ficar imóvel, em pânico. Depois digo-me que há outras possibilidades. Que ela escolheu aquela raça e traz o cão sem açaime porque gosta do risco; porque, pequenina e idosa que seja, frágil e cansada que pareça, teve uma vida preenchida por aventuras e actos de desafio, por um desfile de prazeres que eu nem consigo imaginar e que, agora, passear um pit bull pela trela é dos poucos que lhe restam: uma última provocação a quem com ela se cruza e uma forma de manter algum suspense na vida. Depois penso que ainda há outra hipótese, uma versão-limite da anterior: que ela traz o cão não apenas pela emoção de passear pela trela um animal que os noticiários televisivos garantem poder passar-se a qualquer instante e que ela nunca conseguiria segurar se tal acontecesse mas porque deseja realmente que ele ataque alguém. Ou seja, por desejar o acto e não a emoção de o antecipar. Por querer surgir na televisão, declarar que o animal lá teria as suas razões, que a maioria das pessoas merece ser estraçalhada, que o cão nunca se enganava nos seus instintos. Sempre com ar sereno e - passe o paradoxo, nada incomum em pessoas baixas - ligeiramente altivo. Isto faz-me olhar para ela com outros olhos, com - deve haver algo de doentio em mim - um respeito renovado. Depois percebo que, em qualquer das hipóteses, de momento sou a pessoa mais próxima e que, tanto quanto o meu ponto de vista limitado e parcial me permite avaliar, não mereço ser estraçalhado. Começo por isso a caminhar mais depressa e durante cinquenta metros resisto à tentação de olhar para trás. Mantenho-me contudo atento à possibilidade de ouvir passos de cão em corrida.
(Moral da história que, adaptada às suas próprias circunstâncias, várias pessoas tão dignas quanto eu de não serem estraçalhadas certamente subscreverão: nem cães nem notícias televisivas em registo histérico conseguem assustar-me tanto como outros humanos, ainda que pertençam à subcategoria das velhinhas pequeninas, ou como, acima de todas as hipóteses anteriores, consegue assustar-me o raio deste cérebro com tendência para elucubrações despropositadas.)
Tem vinte e poucos anos. Ainda que apenas se dirija à janela para ver se chove, tende a caminhar em passo rápido, ligeiramente inclinada para a frente, como que guiada por uma ideia súbita que receia ter tido demasiado tarde. Pergunto-lhe: «Alguma vez viste um filme de Jacques Tati? Monsieur Hulot?» Reage com uma expressão de espanto. Desconhece os nomes. «Era muito mais velho, muito menos bonito e muito mais desastrado do que tu mas lembrei-me dele, ao ver-te caminhar.» A expressão de confusão no rosto dela intensifica-se. Está desconfiada. Sorrio. Digo: «Hei-de trazer-te o ‘Mon Oncle’.»
Quando já não se tem idade para acalentar esperanças de desempenhar outros papéis, resta o de Pigmalião. Ou parte dele. A parte, ligeiramente inglória, ligeiramente ridícula, que exclui a recompensa final.
A rapariga, provavelmente ainda adolescente, caminha pelo passeio na minha direcção. É bonita mas pesa no mínimo vinte quilos mais do que as normas estéticas em vigor recomendariam. Veste uma blusa roxa com duas palavras escritas na zona do peito, em letras formadas por pontos brilhantes: Love Sucks. Sei que a adolescência é um período complicado para toda a gente mas, enquanto passamos um pelo outro, não consigo evitar perguntar-me se, pesando menos os tais vinte quilos, ela a teria comprado. Tão cedo.
(Por outro lado, a juventude é o tempo das proclamações rápidas e definitivas. Apenas mais tarde se percebe que, sim, love sucks, de muitas e diferentes maneiras - mas nem sempre. Love sucks tantas vezes quantas parece maravilhoso. Ou, com sorte e talvez saber, menos uma.)
Costumávamos acreditar que o ecrã existia apenas para nos ajudar a ver as imagens, a história, e a ilusão de vida. Mas agora estamos mais desconfiados e supomos que todos estes ecrãs são coisas reais, ferramentas fabulosas, é claro, mas barreiras subtis entre nós e a vida.
Há uns tempos, um cartoon na New Yorker mostrava um indivíduo sendo exibido ao estilo daquelas feiras antigas que tinham como atracções principais animais exóticos, mulheres barbudas e homens deformados. Um cartaz junto dele anunciava: «Veja o extraordinário homem sem tatuagens!»
As modas têm destas coisas. Transformam-se facilmente num exagero, depois numa praga, mais tarde num embaraço. No que me diz respeito, como em quase tudo, a minha rejeição surge com o excesso. Não tanto com o excesso de pessoas tatuadas (embora também um pouco; rebanhos confundem-me) mas com o excesso de área tatuada. É simples de explicar: gosto de pele. Branca, preta, castanha, cor-de-rosa; lisa, enrugada, arrepiada, gretada; uniforme, pontilhada por sardas ou sinais, mapeada com veias e artérias. Detesto tatuagens quando escondem a pele. Até gosto de tatuagens quando realçam a pele.
P.S.: O grau de anonimato será o mesmo mas decidi abandonar o 'jaa' e passar a assinar os textos com o meu nome - que sempre esteve no perfil. Evidentemente, vê-lo no ecrã pode ser tão embaraçoso que eu acabe por mudar de ideias ('jaa' dá-me uma certa distância em relação a algumas baboseiras que escrevo). Mas logo se verá.
Na crítica a The Fury, o filme de 1978 realizado por Brian De Palma, Roger Ebert escreveu: Cassavetes faz sempre um adequado vilão detestável (representa os maus como se eles estivessem permanentemente distraídos por pensamentos de coisas ainda piores que poderiam estar a fazer).
Fiquei a pensar que se trata de uma atitude bastante similar à de inúmeros políticos e gestores, ao anunciarem medidas desagradáveis. Não existindo pesar genuíno, que exista convicção. Enfado é das coisas mais detestáveis com que se pode deparar. Se bem que, ainda assim, talvez não seja tão detestável como o seu reverso, a piedade insincera.
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