como sobreviver submerso.
Ernestina, de J. Rentes de Carvalho, é a história dos avós, dos pais, e do próprio Rentes de Carvalho até ao momento em que, com quinze anos de idade e por acção de uma segunda Ernestina (a primeira é a mãe), se tornou, no sentido carnal da expressão, um homem. É um livro de memórias que se lê exactamente como um livro de ficção. Talvez alguns acontecimentos até tenham sido moldados às conveniências da narrativa. Ou não. Não sei e não importa. De resto, interessam menos os acontecimentos individuais (por fortes que alguns sejam) do que o efeito de conjunto, de recriação de uma época, que se obtém ao ler o livro.
A acção decorre entre Estevais (perto de Torre de Moncorvo), a terra de origem da família, e Vila Nova de Gaia, onde Rentes de Carvalho nasceu e cresceu. O isolamento, a dureza e a pobreza de Estevais fazem com que esteja sempre presente no espírito dos seus habitantes o desejo de uma vida melhor – se não para eles próprios, ao menos para filhos e sobrinhos. Porque em Estevais «morriam da malária e da cólera, do tifo, da tuberculose, do antraz, do vómito-negro, mas também do desejo e do isolamento. Levavam-se os doentes a cavalo ou de liteira para Moncorvo, viagem dum dia inteiro por maus caminhos e, chegados lá, o único médico ou não estava ou dizia-lhes para esperar. (...) No Verão, porque a pouca água se tornava salobra, havia mais doenças e sobretudo os pequenitos morriam como passarinhos: levava-os o sarampo, as «bexigas», a soltura; acontecia fenecerem dum momento para o outro e dizia-se então que era um bem, uma caridade de Deus que os chamara a si para lhes poupar o sofrimento de viver» (pág. 36).
Eu lia e não conseguia deixar de pensar nas fotografias de Trás-os-Montes de
George Dussaud. Cheguei a retirar o
livro da estante e a folheá-lo. A maioria foi tirada na década de oitenta do século passado. Há cerca de trinta anos, portanto. Os acontecimentos descritos em
Ernestina são bastante mais antigos: vão do início do século XX ao Verão de 1945. Mas as fotos de Dussaud e as palavras de Rentes de Carvalho combinam excepcionalmente bem. A Natureza é agreste numas como nas outras e as condições de vida não lhes ficam atrás. Por seu turno, os humanos são rudes mas voluntariosos, com uma tenacidade que tanto consegue gerar admiração como desconforto (e, muitas vezes, ambas as sensações em simultâneo).
E depois há Porto e Gaia, cidades onde o rio mantém um intenso movimento de barcos, onde as cheias inundam ruas e forçam deslocações em bote, onde no tabuleiro de cima da Ponte Luís I «era o vaivém de eléctricos amarelos, camionetas de carreira, camiões, automóveis, grupos de gente» enquanto «sem eléctricos e com curvas apertadas a cada extremo, a ponte de baixo era mais sossegada, com o seu trânsito de carrejões, vareiras, leiteiras e padeiras, carvoeiros, carros de bois. De longe a longe, um camião com pipas, um táxi com pressa, mas buzinar não adiantava, porque quem ia pesado de carregos caminhava pelo meio do tabuleiro, sem ceder um palmo» (pág. 136). Douro, Faina Fluvial e Aniki Bobó, de Manoel de Oliveira, vêm à mente nos capítulos passados em ambiente citadino.
A ligação entre os dois mundos faz-se por um lento comboio a vapor, que se apanha de madrugada na Estação de S. Bento e chega a ter de parar dentro do túnel mais longo do percurso para recuperar fôlego, deixando os passageiros à beira da asfixia e de um ataque de pânico. Vai a abarrotar de gente carregada de presentes para toda a família e de farnéis para o caminho, porque a viagem dura quase todo o dia e o restaurante da Régua é demasiado caro para a maioria. O resto do percurso até Estevais realiza-se em cima ou ao lado de burros, por montes e vales onde «crescia a hortelã, a macela, o manjericão, e os seus olores, misturados com o sem-número de perfumes dos pomares e do mato, entonteciam as abelhas que revoavam à nossa volta» (pág. 226). O capítulo descrevendo a viagem é um dos vários no limiar do prodígio.
Como já deve ter ficado claro nos excertos acima, a escrita de Rentes de Carvalho é indiferente a modas e tendências e, à imagem das personagens e das situações que descreve, até ligeiramente anacrónica para os tempos que correm. (Mas não mais do que ligeiramente, como as fotografias de Dussaud mostram bem.) É uma escrita delicada, evocativa, sem pejo de utilizar construções («às mãos ambas», por exemplo) e termos caídos em desuso (em alguns casos, porque a actividade que descrevem já não existe).
Ernestina é um grupo de personagens reais (porque existiram mas também porque bem delineadas), que exigem do leitor mais do que a posição simplista de aceitação ou rejeição. É um conjunto de eventos hilariantes (a tentativa de construção do carro com motor a jacto; os esforços para curar um eczema, que incluem receitas incríveis de bruxas e curandeiros, e um mergulho nas águas geladas do Douro), tristes (morre-se e adoece-se muito), ou apenas tocantes. É, acima de tudo, um livro com uma capacidade de evocação e de criação de ambientes absolutamente excepcional.
Ernestina, de J. Rentes de Carvalho.