como sobreviver submerso.
Afastem-se já demasiadas esperanças: Love está longe da perfeição de Beloved, a obra-prima de Toni Morrison (de que a D. Quixote também editou agora uma nova versão), primeira afro-americana (e apenas a oitava mulher) a ganhar o prémio Nobel da Literatura. Mas há pontos de contacto entre os dois livros, para além do título. São ambos sobre negros que sofrem às mãos dos brancos e de outros negros. São sobre mulheres que sofrem por causa de homens e de outras mulheres. São sobre pessoas que nascem para vidas duras e estão sempre conscientes de que qualquer conforto é provisório. Mas Love não vai às profundezas da violência em que Beloved mergulhava de modo sublime (se é que a violência e os sentimentos que lhe estão ligados podem ser sublimes). Afinal, estamos em pleno século XX e, apesar da violência que as lutas raciais tiveram nos Estados Unidos durante grande parte do século, não há aqui personagens matando filhos para evitar que sofram.
Love é acerca de várias mulheres que ainda se relacionam em função de um homem morto há mais de vinte anos. De como ele – rico, visionário, magnético, inconsciente, talvez odioso – condicionou para sempre as suas vidas. De como o mundo de onde vinham as marcou e de como tentaram sempre livrar-se dele. De como um rapaz que se despreza por ter bom coração (libertou uma rapariga que, numa festa, sofria uma violação colectiva, perdendo com esse acto o respeito dos colegas) e uma rapariga esperta e dura, saída, com cicatrizes de todo o tipo, das tais comunidades pobres e violentas e decidida a açambarcar tudo o que puder – bens, sexo, amor –, vão interferir no equilíbrio de forças de duas dessas mulheres, fantásticas Heed e Charlotte, que foram grandes amigas na pré-adolescência, quando nem o amor, nem o poder, nem o dinheiro eram relevantes, e que partilham há décadas uma casa e um ódio mortal. De como o verdadeiro amor nem sempre é o que se expressa mais abertamente. De como algumas das suas formas (quase me atreveria a dizer que, em Morrison, todas as suas formas) podem ser uma maldição.
Escrevi-o no início: Love não é um livro perfeito. Tem passagens excelentes e outras menos conseguidas. Tem uma estrutura (habitual em Morrison) onde as vozes e o tempo se confundem, que desagradará a alguns leitores e, mais importante, nem sempre resulta tão fluida quanto se desejaria. Acima de tudo, há motivações que não parecem suficientemente sólidas para gerarem os comportamentos que geram (ou a será a minha realidade demasiado diferente para as perceber convenientemente?). Beloved é uma obra-prima que deixa qualquer pessoa sem fôlego. Love, um livro a ler com expectativas mais modestas depois de o recuperar.