A resposta timorata de Barack Obama ao atentado terrorista de Orlando, evitando relacioná-lo com o Islamismo radical e parecendo atribui-lo exclusivamente à perturbação de uma única pessoa, parece demonstrar que ele ainda não entendeu ser componente essencial do modus operandi do Daesh no Ocidente (e em particular nos Estados Unidos, geograficamente distante dos países onde tem presença militar) o uso de indivíduos perturbados a cujas vidas confere sentido. Ainda que tal não seja verdade e os cuidados de linguagem procurem apenas - por razões tácticas e/ou de convicção - evitar a ideia de que existe uma guerra de civilizações, há momentos em que, não apenas por respeito às vítimas e aos seus familiares, mas também por necessidade de garantir aos cidadãos que se está consciente do grau e das características da ameaça, a ambiguidade é um erro. Estranhamente, Hollande percebeu-o. Obama, não. Donald Trump já está a capitalizar.
O novo livro de Michel Houellebecq, Soumission (tradução de «Islão») acabou de chegar às livrarias mas é discutido pela intelligentsia francesa há várias semanas. Nele, com o apoio de PSF e UMP, o candidato de um imaginário partido muçulmano (a Fraternidade Muçulmana) derrota Marine Le Pen na segunda volta das eleições presidenciais de 2022 e começa a implementar um regime patriarcal baseado na religião que (porque as mulheres são empurradas de volta às tarefas domésticas) até faz diminuir a taxa de desemprego. Houellebecq defende a plausibilidade do aparecimento de um partido assim com o facto da maioria dos muçulmanos (já cerca de 10% da população francesa) não se identificarem com os existentes: os valores tradicionais do Islamismo afastam-nos da esquerda enquanto a política económica e de imigração os afastam da direita.
Houellebecq é um polemista formidável, que admite desprezar o Islamismo (despreza um pouco menos o Cristianismo e o Judaísmo apenas porque atribui valor literário à bíblia) mas também é alguém que toca frequentemente em assuntos que mereciam discussão menos entrincheirada do que a permitida pela força castradora do politicamente correcto. No livro anterior, apresentava uma França – e uma Europa – dependente do turismo, museu a céu aberto completamente irrelevante na cena mundial - uma visão que se vem tornando cada vez menos irrealista. Para além de temas habituais na ficção literária (as desilusões associadas ao processo de envelhecimento, por exemplo), é possível encontrar nas suas obras, bem como em algumas das suas entrevistas, uma preocupação (à primeira vista curiosa, em alguém que parece acreditar em tão pouco) com a barbárie a que a progressiva substituição de valores partilhados e intangíveis pela apatia, pelo individualismo e pelo medo de ficar mal visto pode conduzir a sociedade europeia. De resto, é esta perda de valores que justifica outro tema recorrente do francês: o carácter cada vez mais utópico das relações amorosas duradouras, baseadas em monogamia sexual, que tradicionalmente estruturavam a sociedade. Num toque irónico, o cenário apresentado em Soumission, de progressiva conversão ao Islamismo da sociedade francesa (sendo que a conversão - ou, mais propriamente, a resignação – de ateus e agnósticos parece fácil de conseguir porque os movem valores práticos, materiais), resolve essa questão, pelo menos a um nível superficial.
Acima de tudo, é preciso demonstrar que a mesma liberdade individual que terá desempenhado um papel no desvanecimento dos tais valores intangíveis (ninguém é condenado à fogueira por recusar Deus, as mulheres podem ser independentes, etc., etc.) é, em si mesma, suficientemente forte e agregadora. Deixar claro que, com ou sem atentados, fazemos questão de viver normalmente num certo estilo de sociedade. Embora – convém referi-lo – não haja insulto superior a esse.
Nota: Ainda não li Soumission mas apenas vários textos sobre ele.
Tirei a lanterna da mochila e apontei-a para o livro. Vi mapas e desenhos, fotografias de revistas, de jornais e da Internet, fotografias que eu tinha tirado com a máquina do avô. O mundo inteiro estava ali. Por fim, encontrei as fotografias do corpo a cair.
Seria o pai?
Talvez.
Quem quer que fosse, era alguém.
Arranquei as folhas do caderno.
Inverti a ordem, de modo a que a última fosse a primeira e a primeira fosse a última. Quando as desfolhei, parecia que o homem estava a voar pelo céu acima.
E se tivesse mais fotografias, ele teria voado para dentro de uma janela, de regresso ao edifício e o fumo teria entrado no buraco do qual o avião estava prestes a sair.
O pai teria deixado as mensagens de trás para a frente, até o atendedor de chamadas estar vazio, e o avião teria voado para trás, para longe dele, de regresso a Boston.
Ele teria apanhado o elevador para a rua e carregado no botão do rés-do-chão.
Teria caminhado de volta ao metropolitano e o metropolitano teria atravessado o túnel para trás até à paragem da nossa casa.
O pai teria passado pelo torniquete às arrecuas, depois teria passado o passe pela máquina ao contrário enquanto lia o The New York Times da esquerda para a direita.
Teria cuspido o café para dentro da chávena, deslavado os dentes e posto pêlos na cara com uma gilete.
Teria voltado a entrar na cama, o despertador teria tocado do princípio para o fim e ele teria sonhado para trás.
A seguir ter-se-ia levantado de novo no fim da noite antes do pior dia.
Teria entrado a andar para trás no meu quarto, a assobiar «I Am the Walrus» de trás para a frente.
Ter-se-ia metido na cama comigo.
Teria olhado para as estrelas do tecto do meu quarto, que teriam afastado a luz dos nossos olhos.
Eu teria dito «Nada» de trás para a frente.
Ele teria dito «Sim, rapaz», ao contrário.
Eu teria dito «Pai?» do fim para o princípio, o que teria sido igual a dizer «Pai» do princípio para o fim.
Ele ter-me-ia contado a história da Sexta Zona, desde a voz na lata do final até ao princípio, desde «Amo-te» até «Em tempos que já lá vão…»
Teríamos ficado em segurança.
Jonathan Safran Foer, Extremamente Alto e Incrivelmente Perto.
Edição Quetzal, tradução de Ana Falcão Bastos.
Somos os bons/maus que dizem permitir que escritores, jornalistas e cartoonistas publiquem o que entendem mas, quando eles publicam, ou pretendem publicar, algo incómodo, os criticam e lhes exigem silêncio. Somos os bons/maus que consideram a lapidação ou a excisão feminina actos bárbaros mas os justificam com "especificidades culturais’. Somos os bons/maus que colonizaram e agora calam os erros e os crimes que vêem. Somos os bons/maus que, por não beneficiarem todos os actos históricos das mesmas atenuantes contextuais e por excessiva capacidade de desenvolvimento económico e social, causaram o terrorismo. Somos os bons/maus que, por motivos humanitários, libertam terroristas culpados da morte de duzentas e setenta pessoas e, em silêncio envergonhado, os vêem ser aclamados à chegada a casa. Somos os bons/maus com respeito pelos criminosos e sem respeito pelas vítimas.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets