como sobreviver submerso.
Um post de José Mário Silva no Bibliotecário de Babel chamou-me a atenção para um texto de José Vegar em que este analisa as possíveis consequências da progressiva passagem dos livros a suporte digital. Estou globalmente de acordo com o texto e acho de um insustentável optimismo as visões (bem patentes em alguns comentários ao post de José Mário Silva) defendendo que apenas as editoras (essas maléficas entidades) perderão com a mudança, que o livro se «democratizará», e que mais gente poderá publicar e ser lida. Será conveniente principiar por declarar que nada tenho contra os suportes digitais. Para além de um leitor MP3, possuo um Kindle. Mas, ao contrário dos referidos optimistas, vejo como muito preocupante a possibilidade de subsistência dos escritores que não sejam best-sellers.
Parte do problema é mais ou menos óbvia, tem sido razoavelmente debatida e prende-se com a inexistência de fontes de rendimento alternativas para os escritores. Os músicos podem dar concertos e cobrar ingressos (não por acaso, o preço destes disparou nos últimos anos, num esforço para compensar as perdas na venda de CDs). Os escritores, não. Se as pessoas passarem a ver o livro como já vêem a música (isto é, como algo que se obtém gratuitamente), os escritores, e em especial os menos conhecidos, não terão outra hipótese que não escrever no tempo que o verdadeiro emprego lhes deixar disponível. (As consequências para o cinema poderiam ser ainda mais graves, uma vez que fazer filmes exige o dispêndio de somas elevadas; daí a aposta em tecnologias como o 3-D, que funcionam muito melhor numa sala de cinema do que numa sala de estar.)
Este é o ponto mais evidente. Mas não é o único nem o que me levou a escrever este texto. Há umas semanas a Economist trazia um artigo sobre como a internet, tendo facilitado o acesso à cultura e multiplicado as escolhas, vem provocando a concentração dos interesses das pessoas em cada vez menos obras. Os estúdios cinematográficos apostam mais em blockbusters e sequelas de filmes de sucesso, as editoras (de música, livros, jogos) em nomes seguros. Os principais prejudicados nem são as obras que já antes eram para franjas da população (continuam a sê-lo e até têm maior facilidade de exposição) mas aquelas que ficam entre o sucesso planetário e os circuitos de culto. Ou seja, a maioria. A explicação? As pessoas não têm tempo nem disponibilidade para escrutinar tudo o que vai saindo e querem ter um denominador comum. Precisam de temas de conversa, para além do estado do tempo, das peripécias dos filhos e dos resultados do campeonato de futebol. Ora só os grandes sucessos constituem terreno comum. Isto já acontecia antes mas a internet, ao disponibilizar tanta informação não filtrada, agravou o problema.
Para muitas pessoas, esta mudança não trará consequências notórias. Como antes, usufuirão do que estiver a dar (os tais blockbusters ou best-sellers), sem repararem que a oferta está mais estratificada. As consequências ficam para os cineastas, escritores e músicos que gostariam de construir uma obra sólida num meio-termo de exposição mediática, que não conseguirão apoio porque as probabilidades de que alguém repare neles é demasiado baixa (as franjas são excessivamente radicais para o fazerem, o grande público demasiado distraído). Alguns terão a sorte de se tornarem fenómenos da net como, de resto, já existem vários exemplos no universo musical. Mas serão poucos e, no caso da literatura, é dúbio que consigam gerar rendimentos para poderem viver da escrita. Ainda por cima, a internet também acelerou o processo de obsolescência: é-se um génio num determinado momento, está-se gasto no seguinte. (Ou, como diria Heidi Klum, «One day you're in, the next day you're out.»).
É por tudo isto que não estou optimista e que vejo com algum cepticismo o argumento de que a internet e os formatos digitais permitem uma maior disseminação da cultura. O potencial existe mas poucas pessoas excepto as que já hoje compram livros ou no passado compravam discos usam ou usarão esses meios para expandir horizontes, sendo que mesmo estas podem acabar por concluir que a oferta se reduziu e – neste caso não tenho sequer dúvidas, porque sucedeu com a música – o esforço necessário para descobrir as obras de qualidade é muito maior do que antes (umas quantas das tais maléficas editoras dão algumas garantias de qualidade). Quanto à esmagadora maioria, apenas os utiliza e utilizará para obter aquilo de que se fala. Num ponto quase todos convergirão: a pouca vontade de pagar um cêntimo pelo que quer que seja.
P.S.: Há – leiam os comentários ao post do Bibliotecário de Babel – quem encare como extraordinariamente positiva a possibilidade de no futuro nos podermos 'ver' nos espaços descritos no livro, e de termos até possibilidade de interagir com e alterar a história. Esta última hipótese já existe e chama-se «jogo de vídeo». Quanto à primeira, faz-me uma certa confusão tanta vontade de ver as coisas em vez de as imaginar.
O i de hoje informava-nos* que analistas do banco de investimento Morgan Stanley na Grã-Bretanha pediram a Matthew Robson, um estagiário de 15 anos, para elaborar um relatório sobre a relação dos adolescentes com os media e que, ao recebê-lo, ficaram tão impressionados que decidiram publicá-lo.
O relatório do miúdo tinha descobertas fantásticas: os adolescentes não ouvem rádio, na televisão vêem essencialmente desporto e séries, não lêem jornais, preferem jogos de consola a jogos de computador, não gostam de anúncios, adoram música mas não compram discos nem gostam de pagar os downloads, usam as idas ao cinema como experiência social, não gostam do twitter mas estão viciados no Facebook. Robson chegou a estas conclusões analisando o seu comportamento, o dos amigos e pesquisando na internet.
Ao acabar de ler a notícia, eu pensava em duas coisas. Primeiro, na proposta de Miguel Portas durante a campanha para as eleições europeias: está visto que, com jovens como estes, baixar a idade de voto para os dezasseis anos é um acto de sensatez e justiça. Depois, e mais importante, que esta história nos permite confirmar a noção de que gestores e analistas financeiros são absolutamente incapazes de ver a realidade a menos que esta lhes seja colocada à frente num relatório. E que depois adoram mostrar no-la para que possamos perceber as fantásticas descobertas de que são capazes.
* A notícia está online numa versão mais curta do que a que foi publicada em papel.