como sobreviver submerso.
Sexta-feira, 3 de Dezembro de 2010
OK, nem sempre o mau tempo é bom
O Renault Twingo está prestes a fazer dez anos. É azul vivo e tem comandos interiores em verde quase fluorescente. O vento fá-lo abanar enquanto percorre a estrada estreita, ladeada de casas baixas. O pára-brisas embacia com facilidade e as escovas mostram-se incapazes de afastar a quantidade de água que o atinge. De vez em quando, do lado direito, por entre casas, vê-se o mar, uma faixa quase branca em fundo cinzento-azulado. Nada disto parece incomodar ou distrair o meu condutor. Vai inclinado para a frente, agarrado ao volante, manuseando a alavanca das mudanças com gestos firmes, quase bruscos. Eu também vou inclinado para a frente, porque o meu banco tem as costas na vertical. Procurei a alavanca de ajuste mas não a encontrei (terá caído ou estará num local diferente do habitual?) e, como a viagem não se prevê longa, optei por não dizer nada. Sigo com o nariz quase encostado ao pára-brisas – ou assim me parece. Devemos constituir uma visão divertida, dois homens debruçados sobre o painel de instrumentos de um pequeno Twingo, como que tentando constantemente ler a placa de uma rua ou o número das portas. Pergunto: «Como este tempo os aviões levantarão voo?» O meu condutor encara a questão com a displicência de quem não precisa de apanhar qualquer avião para chegar a casa mas também com a de quem, residindo nas ilhas, está habituado a atrasos e a cancelamentos de voos. «Duvido», diz. O sotaque é evidente mas, ainda assim (felizmente), não tão forte que eu tenha de fazer um esforço para entender o que diz. «Isto é habitual? Das duas vezes que cá estive antes apanhei sempre bom tempo. Também era quase Verão…» Abana a cabeça mas mantém os olhos na estrada. «Não. Um tempo assim já não acontecia há muitos meses. E até tivemos um Verão de S. Martinho excelente, que durou até agora.»
Muitos meses não é uma medida de tempo que me diga grande coisa (afinal, ainda nem chegámos ao Inverno) mas condiz com a displicência que já percebi ser marca registada dele. E, apesar de tudo, juntamente com a referência ao Verão de S. Martinho, permite-me pensar, num daqueles desabafos mentais em que nos achamos perseguidos pelo azar ou por forças superiores, como se Deus não tivesse mais nada para fazer do que nos chatear pessoalmente, que é preciso pontaria para vir a S. Miguel precisamente na altura em que o tempo acaba de mudar. E depois, claro, penso que se calhar é mesmo de propósito. Afinal, eu andava a pedi-las, após fazer
tantos elogios ao
frio e ao «mau» tempo na última semana.
Entretanto ele devolveu-me ao hotel. Passaram três horas e faltam outras três para a hora do voo. Até agora, consegui manter-me razoavelmente seco. O vento e a chuva têm diminuído de intensidade. Com sorte, talvez consiga regressar.
Segunda-feira, 29 de Novembro de 2010
Pontas de nariz
O frio é mais democrático do que o calor. No Verão, os corpos adquirem todos os seus factores diferenciadores. Mulheres e homens comparam-se e, consoante o resultado, sentem vontade de sorrir triunfantemente ou de se esconder no ralo do passeio mais próximo. Uma mulher atraente conhece o efeito que as pernas tonificadas saindo da mini mini-saia que veste exercem em homens heterossexuais e mulheres com pernas menos tonificadas (oh, se conhece) e sente-se muito bem com isso (oh, se sente). No Verão, atingimos os píncaros da vaidade e do egoísmo. (Disclaimer: as frases anteriores não significam que o autor destas linhas, doravante designado por autor destas linhas, seja incapaz de apreciar os meses de Verão, em especial quando mulheres atraentes com pernas tonificadas saindo de mini mini-saias andam nas suas redondezas, por doloroso que tal circunstância às vezes seja; o autor destas linhas está até disponível para admitir ser este o único tipo de masoquismo que aprecia.) Já durante o Inverno, enterradas em dezassete camadas de roupa grossa, as diferenças esbatem-se: existem incomensuravelmente menos factores diferenciadores entre pontas de nariz enregeladas, espreitando de garruços, cachecóis e protectores de orelhas, do que entre pernas tonificadas saindo de mini mini-saias. No Inverno, estamos também disponíveis para um maior grau de empatia: sabemos o que as outras pessoas estão a sentir e sabemos que é exactamente o mesmo que nós próprios estamos a sentir. Acredito que algumas mulheres atraentes (e homens, que hoje em dia há homens preocupados com cada coisa) vejam como um desperdício terem um corpo tão bem torneado por baixo do casacão e não poderem esfregá-lo na cara das outras pessoas (imagem não-literal, embora passível de gerar efeitos literais). Poderá até ser por isso que algumas afirmam não gostar do Inverno. (Já agora, considerando as demonstrações de sangue quente que as caracterizam, nunca percebi a razão por que as mulheres sofrem mais com o frio do que os homens.) Mas estes assomos de vaidade e egoísmo desaparecem à primeira rajada de vento, com a necessidade de meter as mãos sob as axilas e de bater com os pés no chão (torna-se difícil manter a altivez enquanto se bate com os pés no chão com as mãos enfiadas sob as axilas). E voltamos então à questão da igualdade entre pontas de nariz. Pondo a coisa de modo tão directo quanto, com os dedos enregelados como estão, consigo pôr: há por aí uma quantidade enorme de atraentes pontas de nariz femininas para cujas possuidoras eu não olharia duas vezes no Verão.
Sexta-feira, 26 de Novembro de 2010
Com um friozinho no estômago (e nas outras partes do corpo também)
Desculpem lá (ou não desculpem, é como quiserem que hoje estou-me nas tintas) mas andamos insuportavelmente piegas. Ameaças de chuva, vento, frio, calor, subida do nível dos rios, mar encrespado e excesso de radiação ultravioleta, entre outros eventos de similar grau de raridade, geram uma profusão estonteante de alertas amarelos, cor-de-laranja e vermelhos. Os noticiários abrem com isso, as pessoas não falam de outra coisa nos autocarros, empregos e locais de refeição, os elementos das «entidades oficiais» aproveitam para fingir que merecem todos os cêntimos que custam fazendo declarações impregnadíssimas de gravitas, cientistas proferem banalidades com ar de quem profere banalidades, ministros e secretário de Estado referem-se ao assunto como se estivessem a trabalhar em formas de eliminar a chuva, o vento, o frio, o calor, a subida da água dos rios, a ondulação marítima e o excesso de radiação ultravioleta (que, como todos sabemos, é ultraviolenta). Ora #X%§&@! Que tal um alerta amarelo para a entrada de bandos de patos bravos no espaço aéreo português? Ou um alerta laranja para os orgasmos da loura que visitava um dos meus colegas de universidade? (De ouvido, posso adiantar que não reside na zona metropolitana do Porto.) Ou um alerta fúcsia para os riscos de homofobia? Ou, se quisermos falar a sério, um alerta vermelho para os níveis de desemprego, de impostos e de corrupção? «Boa noite. Felgueiras, Oeiras e vários concelhos das Beiras» (é só para rimar) «encontram-se em alerta vermelho por suspeita de corrupção. Brigadas da Polícia Judiciária procedem a buscas desde esta tarde e efectuaram já dezenas de detenções. As autoridades afirmam que, se tudo correr conforme o previsto, o nível de alerta poderá descer para laranja ou mesmo para amarelo dentro de poucas horas.» Isto sim, era uma boa abertura de noticiário
Por estes dias, a ameaça
é o frio. Brrrrrrrrrrrrrr. Eu sei que não sou normal:
gosto de frio. Sei que ainda sou menos normal do que isso:
detesto muito calor. E sei também que o frio coloca problemas sérios a idosos e a pessoas com dificuldades económicas. Vai daí, se alertas coloridos são fundamentais para que possam ser despoletadas acções tendentes a proteger essas pessoas (do género fornecimento de luvas, cobertores e sopinha quente – argh), eu não me oponho: apliquem lá os alertas que quiserem, das cores que muito bem entenderem. Mas, fora isso, parem com o raio dos alertas. Acima de tudo, parem com o raio da histeria nos meios de comunicação social. De resto, a verdade é que os alertas estão longe de ser o verdadeiro problema. Os alertas são uma consequência e não a causa. O verdadeiro problema é estarmos insuportavelmente piegas (já o tinha referido, não já?). Caramba, Portugal não é a Noruega (10 ºC negativos em Oslo no momento em que escrevo). A maioria das casas das pessoas que se queixam tem muito melhor aquecimento do que tinham as casas dos avós delas – e os avós delas sobreviveram e, talvez para combater o frio, até se entretiveram a arranjar descendência, que é algo que nós também não fazemos muito hoje em dia. Mas claro que o problema é precisamente esse, não é? Acomodamo-nos ao conforto e depois berramos ao sentir uma aragem. Entramos em pânico com umas gota de chuva. Maldizemos a vida quando o termómetro desce dos dez graus. Os alemães – os tais que muita gente quer que sustentem os nossos vícios – estão a aguentar dois graus negativos neste momento, pelo menos em Berlim. E nós achamo-los pouco solidários e queixamo-nos do frio. Tenhamos vergonha.
Uff, até fiquei com calor.
Terça-feira, 12 de Janeiro de 2010
Devaneio com (ou por causa da) chuva
Nove menos um quarto da manhã. Chove. A luz é fraca, cinzenta, mortiça. Os faróis dos automóveis, os candeeiros públicos e os painéis publicitários nas paragens de autocarro (tristonhos, apesar das raparigas e rapazes sorridentes), são as poucas e quase inglórias fontes de luz. Não apetece chamar «dia» a isto. Dentro de edifícios, olhando para o exterior a partir de compartimentos bem iluminados (e especialmente nos que possuem amplas superfícies vidradas), tem-se uma sensação estranha: é quase como estar num laboratório ou talvez sob os focos de uma exposição. A melancolia destes dias não me é totalmente desagradável (depois de sair da chuva, admito). Mas desconfio que para a maioria dos portugueses, adeptos do Sol e do «bom tempo», seja quase como viver numa deprimente realidade alternativa. Ainda assim, talvez alguém devesse avaliar a produtividade nacional nestas alturas. Em nenhumas outras temos condições tão próximas das dos países nórdicos.
Sexta-feira, 6 de Novembro de 2009
Apologia do mau tempo
Não desgosto do tempo cinzento. Nuvens baixas e carregadas, neblina, frio, vento, chuva, neve. Condições assim combinam comigo. Ou melhor: proporcionam-me uma imagem mais calorosa de mim mesmo. Fazem com que me sinta um ponto de calor perdido numa Natureza fria e hostil. E isso é agradável. Ridículo, talvez. Ligeiramente egotista. Mas agradável. Eu contra o Inverno. Molhando-me. Avançando contra o vento. Combatendo o frio nas mãos, nas orelhas e na ponta do nariz. Fintando as gripes e as constipações ou batalhando-as energicamente (bom, talvez «energicamente» seja um exagero). O tempo frio e chuvoso combina comigo porque me mostra que sou melhor do que pensava. Quentinho e acolhedor. Pelo contrário, o tempo quente não me faz sentir fresco. No Verão, eu cedo à malevolência da Natureza (temperaturas elevadas são malévolas; veja-se a habitual representação do Inferno). Transpiro, bufo, fico inerte. Quando arranjo forças para abanar uma revista à frente da cara sinto-me ridiculamente pusilânime. Como outros gestos, não passa de uma admissão de derrota. No Inverno, não. Esfrego as mãos com energia e convicção. Aqueço-as com o bafo quente que me sai dos pulmões (soprar-lhes, no Verão, é como tentar apagar um incêndio florestal com uma garrafa de quarto de litro mal cheia de água morna). Corro para evitar a chuva (no Verão, tento nem sequer me mover). Praguejo convictamente (no Verão, quando tenho forças para dizer alguma coisa, saem-me queixinhas irritantes). Sinto-me bem enfiado num sofá a ver um filme ou a ler um livro (no Verão, o próprio conceito de «sofá» é agressivo). O tempo frio é estimulante. Bom, talvez isto seja outro exagero: não o será sempre e não o será para todas as pessoas. Mas, pelo menos, é mais estimulante do que o tempo quente. O cérebro humano não tem ventoinhas suficientes para arrefecer o processador quando estão quarenta graus à sombra. Frita. Estoira. Bum! Mas aguenta bem o frio (se estiver mesmo muito frio pode entrar em modo de hibernação mas a maior parte das pessoas nem nota a diferença).
É verdade que prefiro que não haja chuva (excepto quando estou deitado ouvindo-a bater na janela; duvido que haja alguém, mesmo o mais feroz opositor do Inverno, que não goste de estar na cama a ouvi-la). A chuva, como o excesso de calor, é um acto pouco subtil da Natureza. Repare-se como ambos nos deixam encharcados (ainda assim, antes uma boa molha que o corpo liquefazendo-se em transpiração). Já o vento, mesmo forte, é-me simpático. Há irreverência no vento. Estraga-nos a compostura e isso é quase sempre positivo. O vento está-se nas tintas para os penteados arquitectónicos de certas senhoras ou para os guarda-chuvas de arqueado punho em madeira de alguns cavalheiros. Enfrentar o vento é como aquelas lutas bem-humoradas entre amigos. Às vezes exagera-se e a coisa descamba nuns murros a sério mas, geralmente, tudo se mantém dentro dos limiares do divertimento. E depois há o nevoeiro. Desagradável quando se conduz mas – e isto talvez seja demodé mas que se lixe (a aproximação do Inverno quase fez sair um impropério mais colorido) – tão incrivelmente romântico. Uma capa de mistério caída sobre paisagens conhecidas. Um detonador de melancolia benigna (quem é que consegue ser melancólico enquanto transpira e procura respirar debaixo de um Sol monótono?). Quando, há anos, fui a Londres fiquei desiludido por não apanhar pelo menos uns minutos de nevoeiro (retrospectivamente, talvez não tivesse sido boa ideia ir lá no início do Verão mas as estações do ano não podem servir de desculpa a uma cidade que se preze: há tradições – mais que não seja, literárias e cinematográficas – que, uma vez implantadas, merecem respeito.) Mesmo cá, exijo nevoeiro de vez em quando. O nevoeiro é uma mensagem da Natureza. Um pedido para que façamos introspecção. Sem grande sucesso porque, como todos sabemos, o ser humano deixou de prestar atenção à Natureza.
Podia ainda escrever sobre a neve, sobre a ondulação marítima, sobre as trovoadas (evitaria sempre o granizo, que é novamente uma manifestação demasiado agressiva e sem pinga de humor ou de poesia), mas não vale a pena alongar-me demasiado (mesmo em dias frios como os que aí vêm poucas pessoas lêem posts longos). No Inverno, a Natureza mostra que tem tomates (tomates metafóricos, sendo ela feminina) e pergunta-nos se também os temos. (Pelos comentários que ouço, parece que não.) E depois há coisa mais bonita do que a luz do Sol furando as nuvens, atravessando uma atmosfera limpa pela chuva, aplicando uma demão de verniz brilhante nos edifícios, nas estradas, nos automóveis e até nas pessoas? Um – e há muito que desliguei o detector de imagens forçadas – sorriso de parabéns da Natureza pelo estoicismo demonstrado. Mostremo-nos à altura.
Nota: este post adquire o sentido pleno ao ser lido com os dois últimos andamentos da Sexta Sinfonia de Beethoven em fundo.
Domingo, 27 de Setembro de 2009
So many, so little
Muito bem, já comprei o livro do momento. Agora dava-me jeito comprar algum tempo. Uma década seria ideal mas dois ou três anos já ajudariam.
(E isto é só uma amostra.)
Sábado, 8 de Agosto de 2009
Benjamin Button
Estar no interior do país com uma ligação móvel à net que demora quinze segundos a carregar um ecrã branco é uma experiência que se deve saborear. A sério. Como quando o trânsito se arrasta sem parecer sair do sítio. Não são situações para ficar exasperado. São situações para esboçar um ligeiro sorriso e para visualizar a Carrie-Ann Moss (as senhoras podem visualizar o Keanu Reeves, se preferirem) suspensa no ar, braços e pernas flectidos, enquanto uma câmara rodopia à sua volta. Ou para nos imaginarmos no lugar da câmara sobrevoando as tais filas de trânsito parado. São momentos de transcendência. De ioga do quotidiano, sem necessidade de fazer o pino. E são também experiências físicas. Físicas no sentido de Newton e, especialmente, de Einstein. Se fosse tudo ainda um pouco mais lento (apenas mais um bocadinho), o tempo recuaria. Olho para o ecrã do computador onde há mais de dois minutos devia ter surgido a página de blogues do Sapo e sinto-me prestes a rejuvenescer.
Domingo, 21 de Junho de 2009
35 ºC
Passaram o dia agachados como mochos na sombra parcimoniosa das acácias, a perscrutar aquele mundo feito fornalha.
Edição da Relógio d’Água, tradução de Paulo Faria.
Imensas pessoas à minha volta exultam com a chegada do tempo quente. Eu suspiro, transpiro, esforço-me por combater a letargia e o desconforto. O meu intervalo ideal de temperaturas é entre os 15 e os 25 graus Celsius. Prefiro ambientes entre os 5 ºC e os 15 ºC que entre os 25 ºC e os 35 ºC. E estou mais disponível para enfrentar o intervalo de -5 ºC a 5 ºC que o de 35 ºC a 45 ºC. A escritora Romana Petri disse uma vez (creio que num artigo da revista Ler) que nunca poderia viver no Porto por causa do frio. Posso então considerar-me com sorte. Sei, aliás, que outras zonas do país estão ainda mais quentes. Mas… frio? Qual frio?