como sobreviver submerso.

Quarta-feira, 20 de Abril de 2011
Suicídio, parte II
O suicídio também é difícil de enfrentar por ter a carga do acto definitivo e do inominável (por genética ou decisão divina, estamos programados para o encarar com horror). A assumpção de um papel também servirá para tentar escapar a este problema. Um papel curto e directo (bang!) ou, para quem isso não baste, um papel mais elaborado, que passe primeiro por uma declaração eloquente – por, e é só um exemplo, entrar num sítio qualquer e matar meia dúzia de pessoas (o cinema e a televisão tornaram tão fácil vermo-nos a fazer isto) – que anteceda o derradeiro tiro nos próprios miolos. Ou talvez o tiro nos miolos desferido por um polícia assustado ao ver-se finalmente perante os seus mais recalcados medos e inconfessados anseios, o que sempre permitiria evitar ter de se representar o clímax da peça, a cena culminante e intimidatória, a morte de Otelo (mas sem arrependimento) ou de Julieta (mas sem amor).

 

A verdade é que para quem leva uma vida comum nos países «desenvolvidos» apenas o suicídio resta como opção de morte significativa (a doença e o acidente são demasiado contingentes e, desse modo, pouco dignos de apreço). Isto se aceitarmos que ainda há actos com significado. Ou seja, se por esta altura não os tivermos esvaziado já a todos de qualquer significado, digamos, significativo. O que – e fechemos o círculo neste ponto, para nos dedicarmos a pensamentos mais «positivos» – não deixa de constituir um dos mais válidos argumentos a favor do suicídio.



publicado por José António Abreu às 13:16
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Terça-feira, 19 de Abril de 2011
Encenação

(...) todos os dias pensava em matar-se com a arma que tinha no sótão - uma espingarda Remington 870 que guardava na casa de campo isolada para defesa pessoal - e mesmo isso parecia teatro, mau teatro. Quando um actor representa o papel de alguém que está a desmoronar-se, fá-lo com organização e coerência; quando é ele próprio que está a desmoronar-se, e representa o papel do seu próprio fim, isso é outra coisa, uma coisa transbordante de terror e medo.

Philip Roth, A Humilhação.

Edição D. Quixote, tradução de Francisco Agarez.

 

A incongruência do suicídio é um dos maiores obstáculos enfrentados por quem o pondera. É difícil pensar no suicídio e não lhe detectar um lado de falsidade – de fuga, de encenação, de cliché. A solução para o problema no último Roth editado por cá é engenhosa, em especial num tempo em que a consciência de se desempenhar um papel extravasa em muito o universo dos actores profissionais. A assumpção plena do suicídio como encenação, como performance. Não procurar evitar a incongruência mas mergulhar nela. Cometer suicídio como que aguardando as palmas.

 

(E porém, ainda que há vários anos namore obsessivamente a ideia da morte, parecendo buscar uma via de, mais do que aprender a aceitá-la, ser capaz de ir ao seu encontro, Roth ainda não se matou.)



publicado por José António Abreu às 08:04
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Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010
As incongruências do suicídio

Nota prévia: não se pretende indispor ninguém com este texto, excepto pessoas que o mereçam.

 

A ideia do suicídio, cujo papel na literatura Bruno Vieira Amaral descreveu de forma brilhante aqui (e aqui, que ele funciona em estéreo), não me incomoda minimamente. Como escreveu Camus em O Mito de Sísifo, é até a única questão filosófica relevante perante a consciência de quão absurda é a vida e a nossa relação com ela (o Bruno tem a citação em francês, que sempre é mais elegante). Camus defendia como alternativa ao suicídio a revolta, a liberdade e a paixão mas acabou morto num acidente de carro muito antes de podermos comprovar que seguiria as próprias teorias até ao fim. Seja como for, a verdade é que sempre que tento visualizar-me suicidando-me esbarro num par de dificuldades que receio inultrapassáveis.
 

A primeira está relacionada com o método. Há tantos à disposição e nenhum me satisfaz. Sejamos francos: existirá algum que não pareça forçado, incongruente, como uma piada de mau gosto mal contada? Um tiro exige a posse de uma arma e é o pináculo da falta de subtileza: muito visto, barulhento, espalha sangue e pedacinhos de osso e de cérebro a metros de distância. Cortar os pulsos deixa uma imagem de masoquismo (dá a sensação de que se morre devagar) e eu – dizem-mo com frequência e sou forçado a admiti-lo – tenho mais de sádico do que de masoquista. (De resto, quem é quer ser descoberto nu mergulhado numa cabidela?) Saltar de um edifício provoca um grande espalhafato, pode magoar alguém que vá a passar e é uma opção problemática para quem tem medo de alturas. Saltar de uma ponte pareceu-me sempre uma má opção porque, se por um lado a água nos afoga caso a pancada não nos mate, por outro água é coisa mole e pode apenas partir-nos ambas as pernas, do que resultaria uma morte atabalhoada ou um salvamento humilhante por parte de um rabelo a fingir apinhado de turistas a sério. (Os lisboetas podem alterar para um cacilheiro a abarrotar de pessoal sonolento a caminho do emprego, o que sempre seria um pouco menos mau: é improvável que tivessem máquinas fotográficas com zoom e o acontecimento ajudá-los-ia a passar o dia – «Vocês nunca vão ser capazes de adivinhar o que me aconteceu...» –, não fazendo mal nenhum uma pessoa sentir-se útil, mesmo após escolher a via do suicídio – excepto se isso afectar a concentração, claro.) Ainda por cima, um afogado fica mais inchado e luzidio do que uma boneca insuflável tamanho XXL depois de ser partilhada pelo pessoal de uma obra de construção civil, e a água costuma estar fria. (Sim, tenho problemas com a água; por que acham que uso escafandro?) Veneno parece-me um bocado Vitoriano e não é para apreciadores de comida (prefiro empanturrar-me de gorduras saturadas e esperar que a Natureza siga o seu curso). Meter o carro debaixo de um comboio é demasiado doloroso porque estragaria o carro, e meter-me apenas a mim debaixo de um comboio assusta-me a valer. (Para mais, incomoda-me a ideia de ficar com o som do apito do comboio nos ouvidos e recuso dar mais um argumento a Sócrates para construir o TGV, com as suas linhas vedadas.) Electrocussão com 220 V não me oferece garantias suficientes e assaltar uma subestação da EDP para arranjar uma linha de 30 000 V não deve ser fácil (vá-se lá saber se não têm cercas electrificadas) e é coisa para se acabar na cadeia, alvo da atenção de gajos com mais tatuagens do que neurónios. (Antes morrer.) O que resta? Forca? Sou péssimo a fazer nós e é um método terrivelmente demodé. (Imaginem as comparações com o Saddam.) Abrir o gás do fogão? Lamento, segundo o manual de instruções, o meu fogão tem uma válvula de segurança que corta o gás se não for detectada a presença de uma galinha ou de um pedaço de lombo de porco no forno. (É possível que tenha percebido mal o modo de funcionamento do sistema mas gosto de pensar que os electrodomésticos são pelo menos tão inteligentes quanto eu, e ligeiramente mais do que as restantes pessoas – excepto você, caro(a) leitor(a), inteligente o bastante para continuar a ler isto.) Fechar-me numa garagem com o motor do carro a trabalhar? Hmmm, ainda resulta, agora que os catalisadores eliminam o monóxido de carbono dos gases de escape? E onde é que arranjo uma garagem? Não estou a ver a coisa resultar no parque de estacionamento de um centro comercial. Enfim, creio ser suficiente para que entendam o meu problema: todos os métodos suficientemente testados de suicídio (pelo menos de suicídio rápido, que de suicídio lento vamos tratando todos os dias em que nos levantamos da cama para suportar filas de trânsito e um emprego chato) me parecem desagradáveis. Lugares comuns, sem discrição, subtileza ou humor. Talvez sirvam para quem se encontre verdadeiramente no limite da resistência mas não para mim. Não por enquanto, pelo menos. E poucas coisas são mais embaraçosas do que falhar um suicídio por falta de convicção no método escolhido. (Se alguma vez isso me acontecer, posso optar desde já pela Joana Amaral Dias como minha terapeuta?) Resta-me pois continuar a correr pelos campos durante trovoadas, com a armação de um guarda-chuva apontada aos céus. Se um destes dias lerem no jornal a notícia de um homem morto por um relâmpago enquanto passeava à chuva, considerem este post o meu bilhete de despedida.

 

Mas admitamos que, desesperado com a limitada retórica dos discursos de Sócrates (merece uma retórica limitada continuar a chamar-se retórica?), eu decidia mesmo suicidar-me, e era bem sucedido. O que aconteceria então? A segunda dificuldade. Qualquer suicídio chama a atenção para o suicida e perturba as pessoas que permanecem vivas (ou assim o pensam). Em termos gerais e abstractos, acho bem perturbar as pessoas. Estilhaçar-lhes o mundo formatado e pouco imaginativo. Rebentar-lhes com os clichés feitos certezas e guias de vida. O suicídio é excelente nisso. Tem um lado de provocação e de altivez. É como usar um cachecol do Sporting num encontro entre o Benfica e o Porto (o descaramento do filho da mãe!) sem se correr o risco de levar com um petardo na tola. (E, ainda que se levasse, qual o problema, estando morto?) É uma forma definitiva de dizer: não estive para vos aturar mais. E aqui surge o meu problema. É que, na verdade, não quero que as pessoas se choquem por minha causa – em particular aquelas poucas para quem represento alguma coisa de positivo. (Deixem-me continuar a acreditar, está bem?) Imagino-as abananadas, tentando genuinamente perceber as razões que me haviam levado a acabar com a vida, e não gosto. Imagino-me estendido num caixão, vestido com uma roupa demasiado formal para o acto que acabei de cometer (se alguma vez me suicidar, bastam uns jeans e uma t-shirt, ok?), rodeado por quatro pessoas destroçadas e várias outras consultando amiúde e mal disfarçadamente o relógio, e acho que não é coisa para mim. Prefiro não incomodar. Não me apetece que a última imagem que as pessoas tenham de mim seja a de um filho da mãe que fez questão de dar chatices até ao fim. Repare-se: um cancro toda a gente entende. Os doentes de cancro, estóicos na dor, sublimes na forma de encarar a aproximação inexorável do fim, são um exemplo, uma inspiração. Quando morrem, são respeitados. Agora os sacanas dos suicidas? Filhos da mãe que se acham os campeões do sofrimento? Prima-donas que se consideram demasiado frágeis para aguentar a depressão que toda a gente sente? Espertalhões que resolvem saltar a meio da viagem, sem a pagar? Ninguém gosta deles. E a triste, triste verdade é que não desejaria que, depois de morto, pensassem mal de mim. Pelo contrário, quero elogios: «Era um bom tipo», «Tinha um sentido de humor um bocadinho ácido mas fantástico», «O melhor amigo que alguém podia ter», «Apreciava animais e eles adoravam-no» e todas as tretas do costume. Narcisismo? Talvez um pouco. E então? Ao menos depois de morto gostava de experimentar a sensação de ser apreciado.

 

(Reparo agora que os meus problemas com a ideia do suicídio têm todos a ver com o absurdo. Do suicídio, não da vida. Se fosse de filosofar, talvez houvesse aqui material para um tratado. Uma espécie de expansão da Teoria do Absurdo segundo a qual o suicídio, por ser tão absurdo quanto a vida, poderia ser abraçado sem hesitações. Bah, fica para uma próxima oportunidade.)

 

Adenda: a t-shirt pode ser branca, preta ou verde, que é a cor do Sporting e da esperança, mas o que seria mesmo porreiro era ter escrita uma frase divertida, como É Favor Ranhosos e Choramingas Não se Debruçarem Sobre o Caixão, Estou Livre do Teixeira dos Santos, Não me Façam Cócegas, Também Vos Cheira a Enxofre?, ou a singela Invólucro Vazio. Obrigado. Bem hajam.



publicado por José António Abreu às 13:21
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