como sobreviver submerso.

Quarta-feira, 11 de Novembro de 2009
A rapariga com a tatuagem do dragão

Li finalmente Os Homens que Odeiam as Mulheres, primeiro volume da trilogia Millennium, de Stieg Larsson. (Na realidade li The Girl with the Dragon Tattoo, uma vez que comprei a versão para o Kindle.) É um bom livro mas parece-me estar longe de merecer a atenção (e devoção) de que vem sendo alvo. Um aviso prévio: tentarei não revelar demasiados pormenores da trama mas quem ainda não o leu e pense fazê-lo deve fique por aqui.
 
Tenho de começar por admitir um erro de percepção. A partir de tudo o que lera sobre o livro imaginara um enredo caleidoscópico, carregado de suspense e de acção. Encontrei um policial quase clássico. Nada contra. Registo apenas a ligeira surpresa que senti.
 
1. O enredo
Há duas histórias que têm pontos de ligação mas não estão propriamente interligadas. O livro começa com Mikael Blomqvist, jornalista financeiro, editor da revista Millennium, sendo condenado por difamação. A pessoa sobre quem escreveu – o financeiro Hans-Erik Wennerström – é-nos apresentada desde o início como alguém sem escrúpulos que irá tentar levar a revista à falência. Mas, durante a maior parte do livro, Wennerström vai ter um papel secundário. Será a família Wanger, que lidera outro grupo económico, e os esqueletos nos seus armários, que ocupará a maior parte do tempo de Blomqvist e da sua aliada Lisbeth Salander, jovem pouco sociável, forçada por lei a manter um tutor que lhe administre o dinheiro e verifique que ela não se mete em sarilhos, hacker exímia, piercings na cara, tatuagens dispersas pelo corpo. O «caso Wanger» é bastante interessante. Mas convenhamos que, numa lógica de livro policial, onde as personagens mais odiosas raramente são os assassinos, há apenas duas ou três pessoas que poderiam ser as culpadas. E uma delas é mulher, o que, num livro claramente feminista, torna altamente improvável que o seja. As mulheres podem não ser perfeitas, podem ter fechado os olhos a certas coisas, mas os vilões são os homens. Isso é claro ao longo de todo o livro. Assim sendo, qualquer leitor regular de policiais não ficará surpreendido com a identidade do criminoso nem com o que realmente sucedeu a Harriet Vanger.
O «caso Wennerström» é – lamento escrevê-lo – fraquíssimo. Em primeiro lugar, Wennerström é uma personagem distante e indistinta. Isto podia servir para aumentar a sua aura ameaçadora mas apenas o torna pouco credível. Wennerström nunca surge como um oponente verdadeiramente maligno. Depois, as últimas dezenas de páginas do livro são uma espécie de libelo contra as grandes corporações. Blomqvist, apoiado em informação obtida por Salander, vinga-se e denuncia os excessos do capitalismo. Apesar do simplismo como tudo acontece (excepção feita a uma jogada arriscada, solitária e altamente improvável de Salander), tudo seria mais fácil de aceitar se Wennerström não fosse excessivamente culpado. De crimes financeiros ao tráfico de armas, passando pela inevitável violência contra as mulheres, Wennerström (uma figura secundária ao longo do livro e que, repito, nunca conhecemos) parece estar relacionado com quase todas as actividades ilícitas do planeta. Enquanto lia, eu esperava que surgisse a menção ao 11 de Setembro. Na sofreguidão da escrita talvez Larsson se tenha esquecido.
 
2. O estilo
Pouco há a dizer. Larsson era um escritor apenas razoável. Muito melhor quando deixava a acção explicar os acontecimentos do que quando colocava as personagens (ou o narrador) a tentar justificá-los. Dois exemplos:
- As páginas que se seguem à descoberta do culpado são excelentes. Plenas de tensão, de susto, de horror. Quando, mais tarde, Blomqvist e Salander falam sobre as motivações por trás dos crimes, a força esvai-se. Larsson não devia ter tentado explicar a maldade. Para o conseguir sem cair no lugar comum precisaria de ser melhor escritor.
- Em certos pontos da narrativa Larsson não resistiu a dar ao leitor «injecções de conhecimento». No início do Capítulo 12, depois de Salander ter sido molestada sexualmente, Larsson, cheio de boas intenções, explica como ela poderia ter agido, o que a polícia teria feito, as provas que teriam sido recolhidas e segue depois para uma descrição do funcionamento do sistema legal sueco no que à custódia de pessoas diz respeito. Talvez fosse a costela de jornalista a vir à tona. Mas um escritor tem de conseguir introduzir a informação de modo mais subtil.
Há ainda um aspecto (quase anedótico) que me parece digno de menção: Larsson, como bom opositor das grandes corporações, coloca Blomqvist e Salander a trabalhar em portáteis da Apple. Como se a Apple não fosse ela própria uma grande corporação, com produtos mais caros do que a concorrência e sistemas operativos totalmente fechados. Não interessa, claro. Tudo é imagem e mesmo os jornalistas anti-capitalismo caem nos truques do (e alimentam o) sistema que denunciam.
 
3. As personagens
De forma geral, as personagens masculinas são mal conseguidas. Os homens são simpáticos ou canalhas, dedicados ou desinteressados, honestos ou patifes. Pouco mais. Mesmo Blomqvist tem pouca espessura.
De forma geral, as personagens femininas são bem conseguidas. Duas ou três são mesmo excelentes. Torna-se evidente que Larsson estava mais interessado nelas. E, em Lisbeth Salander, criou uma personagem memorável. Não é fácil consegui-lo, num género que já viu quase tudo: cocainómanos, padres, velhotas simpáticas, lordes altivos, misóginos cultivadores de orquídeas, vigaristas com sentido de justiça, detectives xenófobos, detectives homossexuais, idosos em cadeira de rodas. Salander é o ponto mais forte do livro. É também um anzol: para os muitos homens que não conseguem deixar de sentir que poderiam ser amigos e protectores de alguém assim (quase todos estão errados) e para as mulheres que, mesmo não tendo tatuagens ou piercings, conseguem entender Lisbeth perfeitamente. Ainda que os livros valessem apenas por Salander (e, apesar de tudo, valem mais) Larsson já teria deixado algo memorável.
 

Tenho o segundo volume no Kindle. Lê-lo-ei um destes dias mas confesso ter menos pressa do que esperava. E agora vou desligar o computador porque, se há coisa que fica clara ao ler o livro, é que a net é um sítio perigoso.



publicado por José António Abreu às 21:59
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