Há a parolice do presente, soberbamente corporizada no primeiro-ministro e demais membros do governo, e depois há o futuro. Sendo que, acerca deste, lá bem no íntimo, cientes que estamos da gravidade das ameaças tecnológicas, políticas, económicas, demográficas e ambientais, bem como das exigências destrutivas que queremos ver satisfeitas no curto prazo - dinheiro, fama, poder, beleza, juventude, «felicidade» -, até já desistimos dos humanos, não foi? Na sua inocência, o cão é que ainda consegue suscitar pena - e alguma militância.
Note-se a diferença de valores. Num mundo de relações online, de expectativas e impaciências desmesuradas, de taxas de juro negativas, de dinheiro nascido da concessão de crédito, talvez seja natural que os bens tangíveis percam importância e que a riqueza (a global como a dos famigerados ricos-que-continuam-a-enriquecer) seja cada vez mais virtual - e volátil. A própria inflação transferiu-se dos bens transaccionáveis para as bolsas e, dentro destas, em especial para as empresas que poucos ou nenhuns bens físicos produzem. Compare-se a evolução dos principais índices bolsistas com a evolução da economia dos respectivos países e o resultado só pode suscitar preocupação. Que percentagem da riqueza mundial se perderia hoje com um - bastante provável, de resto - crash bolsista? Quanto dinheiro desapareceria com a assumpção da incapacidade de pagamento de tantas dívidas gigantescas, públicas como privadas?
Mas este mundo também tornou a riqueza mais acessível às pessoas com as ideias certas e a coragem de as levar por diante. No fim de contas, fazer uma app custa muito menos do que projectar, construir e comercializar um automóvel. Talvez este facto explique em parte a insatisfação (a raiva, mesmo) que grassa nos países ocidentais (e utilizo o termo de forma abrangente, não geográfica). Por muitos defeitos e distorções que existam, por muitas ameaças que se perspectivem, nunca ao longo da história das sociedades organizadas (e hierarquizadas) as oportunidades perdidas o foram por motivos tão auto-atribuíveis.
Imaginemos uma fila para aquisição de bilhetes para um espectáculo muito concorrido e com os ingressos prestes a esgotar. Um idoso ou um portador de deficiência passa à frente de quem chegou primeiro?
Obviamente.
(...)
Porque é que o Governo entendeu legislar sobre esta matéria? Haverá uma generalizada falta de bom senso entre os portugueses? Porquê legislar e ter força de lei aquilo que por muitos é visto como bom senso?
A razão é exactamente essa. Esta é uma situação que é vista como bom senso e o bom senso como se costuma dizer é algo como o oxigénio ou o ar que respiramos: só sentimos a falta dele quando de facto não está lá.
Houve um tempo em que a esquerda afirmava acreditar na bondade humana; hoje, prefere desconfiar, controlar e punir. Bom senso seria legislar sobre o essencial e deixar em paz tudo o resto. Mas não apenas organismos públicos diversos e secretarias de Estado para a «Inclusão» têm de justificar a sua duvidosa razão de ser como o Estado vive da imposição e do controlo de regras. Quanto mais existirem, mais Estado pode existir.
Repare-se que a lógica da secretária de Estado é extensível a quase tudo. O bom senso também recomenda que não se ande pelas ruas em fato de banho durante o Inverno, que não se vá engripado a locais onde esteja muita gente, que se ajudem indivíduos à procura da rua x ou da praça y, que se modere o humor diante de desconhecidos, que não se ingiram (e que não se disponibilizem) produtos com elevados teores de açúcar, gordura ou álcool. Mas será necessário legislar sobre estes assuntos?
Os defensores da hemorragia legislativa acreditam que ela torna a sociedade mais justa e solidária. Na verdade, é mais provável que contribua para o aumento do nível de acrimónia. Em primeiro lugar, o excesso de legislação faz com que as pessoas sintam, justa ou injustamente, que os outros estão mais protegidos do que elas: há legislação conferindo privilégios a tantos grupos específicos e até a animais; que legislação se preocupa comigo? Em segundo, leva-as a sentirem-se menorizadas: ao Estado não basta informá-las de que determinado comportamento é preferível a outro; força-as a ele, plasmando-o em lei (a qual, reconheça-se - até um Estado gargantuesco tem limites -, fica muitas vezes por aplicar). Finalmente, converte gestos de boa vontade em imposições - e enquanto ceder voluntariamente o lugar numa fila gera satisfação, ser obrigado a fazê-lo dá azo a reservas e desconfianças. Não pode ser coincidência que, nas sociedades ocidentais, a leis cada mais «perfeitas» pareçam corresponder níveis de individualismo e de falta de cortesia cada vez mais elevados. Num ambiente em que todos os comportamentos se encontram legislados, a única liberdade reside no egoísmo.
É desta forma que, perante o aplauso de muitos e o silêncio indiferente, ignorante ou cobarde de muitos mais, o politicamente correcto se vai transformando em ditadura. Proíbem-se actos, proíbem-se palavras e, quando for possível ler pensamentos, proibir-se-ão todos os considerados impróprios. Sempre em nome de magníficos princípios, numa sociedade cada vez mais crispada.
Há um momento na descida para a paralisia económica em que ao Estado já não basta cobrar impostos. A solução? Colocar empresas privadas a garantir o pagamento de benefícios sociais. Como a mentalidade da «verdadeira esquerda» (Bloco, PCP, actual PS) exclui o conceito de relação causa-efeito, fazê-lo não implica obrigar essas empresas a distribuir os custos da medida por todos os seus clientes ainda não suficientemente pobres para terem eles mesmos direito aos benefícios mas apenas diminuir-lhes o nível «obsceno» de lucros (é sabido: para a esquerda, uma empresa privada ou tem lucros obscenos ou gestão criminosa). Começa-se pela EDP, entidade fornecedora de um bem que muitos, consciente ou inconscientemente, acham que devia ser gratuito (ei, a electricidade é uma espécie de download, certo?) e que todos apreciam odiar. E abre-se caminho para ir mais longe. Para, sei lá, tornar obrigação do Continente, do Pingo Doce e do Lidl a distribuição mensal de cento e tal mil cabazes de compras; para tornar obrigação da Galp, da BP e da Repsol a oferta mensal do combustível correspondente a cento e tal mil depósitos; para tornar obrigação da McDonald's, da Pizza Hut e da H3 a entrega mensal de dez (ou talvez quinze) vezes cento e tal mil menus; para tornar obrigação da Fidelidade, da Tranquilidade e da Allianz a subscrição anual de cento e tal mil apólices de seguro; para tornar obrigação da MEO, da NOS e da Vodafone a disponibilização de cento e tal mil pacotes de telemóvel, televisão e internet (sem período de fidelização); para tornar obrigação da Zara, da Cortefiel e da H&M o fornecimento de cento e tal mil vales de trezentos euros em roupa e calçado (bastará por estação, que os beneficiários da medida não pertencem à esquerda-caviar); para tornar obrigação da Mota-Engil, da Teixeira Duarte e da Soares da Costa a construção e oferta de cento e tal mil habitações (mantenhamos os pés na terra e digamos em cinco anos). Ou, melhor ainda, por que não obrigar que todas as empresas privadas desviem cinco (e, mais tarde, dez) por cento da facturação para apoios que o Estado, gordo e deficitário (pudera), será cada vez mais incapaz de providenciar?
O maravilhoso país que emergirá de toda esta consciência social é, evidentemente, um país sem competitividade mas também sem empresas privadas. No fundo - e aqui se encontra afinal uma relação de causa-efeito bem delineada -, o sonho da esquerda.
A fé na qual me educaram foi-se esvaindo na racionalidade (na minha racionalidade) e na indiferença (não acredito mas, acima de tudo, não penso no assunto). Ainda assim, incomoda-me o carácter cada vez mais laico do Natal. Incomodam-me os esforços que se fazem para extrair dele a religião, alegando respeitos para com quem não deveria ter motivos para se sentir desrespeitado: a matriz de um país - feita também da religião que, mal e bem, o foi construindo - não deveria agredir quando celebrada, apenas quando imposta. A substituição progressiva mas inexorável do Menino Jesus pelo Pai Natal (e eu acho piada à figura acolhedora e transbordante de bonomia do Pai Natal), o frenesi consumista, a repetição anual de reportagens televisivas ocas, os actos formais de prazer duvidoso (os presentes que se compram porque tem de ser, os sublimes jantares de empresa), as manifestações de cariz turístico-comercial que se tornam lugar de semi-indiferente peregrinação (quantas vilas-Natal há hoje em dia?), parecem-me tentativas desesperadas para encontrar um sentido para a quadra, fora daquele que ela possui há séculos. Tentativas inglórias, como seria de esperar: cada vez mais as pessoas julgam pueris os seus esforços e se sentem mais isoladas.
Expurgamos a religião do Natal, esquecendo (ou ignorando) que quase todas as nossas celebrações estão ligadas a ela: a Páscoa, os dias de Todos-os-Santos e de Finados, até esse momento de origem pagã, o Carnaval, último excesso antes da Quaresma. E, na verdade, é melhor quando assim ocorre. Os feriados religiosos têm uma densidade, um peso histórico, social, identitário, que nenhum dos restantes consegue atingir, ainda que pretendam celebrar o país (25 de Abril, 10 de Junho, 5 de Outubro, 1 de Dezembro) ou direitos conquistados (1 de Maio). Não é preciso celebrar a religião para aceitar que o Natal deve ser celebrado com ela. Basta saber aceitar a história e os valores que formam uma verdadeira comunidade: desde logo, a «inclusão» e a «tolerância» de que tanto se fala. Permitam-me pois que os votos de um ateu (creio) sejam de um Santo Natal para todos.
Alexander Stubb, o ministro das Finanças finlandês, esteve em destaque durante a sequência de reuniões do Eurogrupo sobre a questão grega. Interventivo, adepto do Twitter, sem papas na língua a reflectir as reservas dos seus concidadãos (diz-se, ainda assim, ter sido bastante mais comedido nas declarações em inglês do que nas que emitiu em finlandês), merece-me esta nota por algo que pouca atenção despertou em Portugal.
Cai-Göran Alexander Stubb foi deputado ao Parlamento Europeu entre 2004 e 2008, ministro dos negócios estrangeiros entre 2008 e 2011 e ministro dos assuntos europeus e do comércio externo entre 2011 e 2014. Em Junho desse ano, Jyrki Katainen, líder do partido de Stubb e primeiro-ministro, demitiu-se. Stubb assumiu ambos os cargos. Nas eleições de Maio último, o seu partido obteve apenas o segundo lugar no número de votos e o terceiro no número de assentos no Parlamento. Na sequência das negociações que se seguiram para a formação do governo, Stubb transitou do lugar de primeiro-ministro para o de ministro das finanças.
Não estou a ver um político português fazer algo similar. Aceitar este tipo de «despromoção» num país em que até se tornou regra a demissão do líder do principal partido derrotado. Sinais de falta de maturidade democrática, dirão alguns. Certo. Mas não apenas dos políticos e não apenas «democrática»; também «social». O líder derrotado demite-se e nunca faria o que Stubb fez por muito mais do que vaidade pessoal ou crença genuína de ser essa a melhor solução para o país. Fá-lo também porque, de outro modo, perderia o respeito dos portugueses. E isto permite extrapolar para áreas que não a da política. Permite compreender como Passos está certo ao salientar o estigma que, em Portugal, tende a cair sobre os desempregados (sobre quem perde o emprego). Os portugueses gostam de discursos empolgados acerca de respeito e de solidariedade, oferecem empenhadamente um quilo de arroz ou de massa nas campanhas do Banco Alimentar contra a Fome mas, raspada a camada superficial de verniz, estão longe de constituir uma sociedade respeitadora do esforço, do risco pessoal e da consequência mais negativa destes: o ocasional insucesso.
Rui Moreira surge apenas para almoçar e é mais alto do que parece na TV. José Alberto Carvalho está na plateia desde o início e é mais baixo do que parece na TV. Na mesa, Nuno Garoupa afiança que «o Porto é o início desta saída de Lisboa», Pedro Magalhães fala no «lado escuro e no lado claro da tecnologia» e David Lopes debruça-se sobre uma das frases expostas nas paredes (Login, logo existo?) enquanto ao seu lado, muito adequadamente, os outros dois usam os smartphones pousados sobre a mesa. No que me diz respeito, não sei bem o que estou aqui a fazer.
- A «pegada digital» que deixamos online, as questões dos comportamentos e da privacidade;
- As consequências das evoluções tecnológicas nas áreas da bioengenharia, da cibernética, da inteligência artificial e da sensorização da realidade;
- Os efeitos na sociedade (e, desde logo, no mercado de trabalho) das mudanças na produção de bens e serviços decorrentes de avanços nos sistemas de informação, na automação e na impressão 3D;
- As implicações das novas tecnologias na cidadania e nos sistemas políticos.
E pronto. Acho que é tudo. Ah, não, também por lá encontrei colaboradores de outros blogues. São detestáveis. Mas o almoço estava óptimo.
Alastram, são cada vez mais assumidas, tornam-se moda. Quem, há vinte ou trinta anos, ouvira falar da intolerância à lactose ou ao glúten?
Nos tempos actuais - e ainda que a ciência o tenha validado -, a química é um conceito pouco exacto para descrever o mecanismo de atracção entre duas pessoas. As reacções químicas tendem a alterar significativamente os elementos que as sofrem. Mais correcto e moderno será ver as relações como redes Wi-Fi, nas quais se saltita entre hotspots consoante a força do sinal.
Em 1879, no final de Uma Casa de Bonecas, do norueguês Ibsen, Nora abandona o lar (incluindo os filhos) após perceber que nunca passara de uma boneca, de um troféu servindo os interesses do marido. Foi um escândalo, apesar de Nora não ter vontade de abandonar os filhos. Na Alemanha, obrigaram Ibsen a alterar o final.
Em 1953, no final de Monika e o Desejo (ou, em versão mais conforme o original, Verão com Monika), do sueco Bergman, Monika abandona casa e família (incluindo o filho) por não desejar aceitar as responsabilidades da idade adulta. O filme também suscitou alguma polémica mas mais na sequência das cenas de nudez e do pormenor de Monika não ter as axilas depiladas do que em resultado de Monika abandonar o filho por não aceitar viver uma vida manietada por ele.
Em 1966, em Persona, também de Bergman, a enfermeira Alma conta a história de Elisabet, a actriz que se recusa a falar, defronte desta. Elizabet engravidou por lhe terem dito que a falta de instinto maternal a tornava pior actriz e depois recusou o filho. O filme foi discutido mas não parece ter existido polémica em torno dos motivos de Elisabet: egoísmo (antes de engravidar), repulsa (depois).
Se Elisabet engravidou voluntariamente e Nora amava os filhos, sensivelmente por alturas de Persona a pílula fez com que o problema de Monika deixasse de ser uma inevitabilidade, transformando os filhos numa escolha prévia. Mais do que contra os homens (para quem, fora do âmbito de um casamento desejado e financeiramente estável, os filhos também sempre constituíram um pesadelo, embora – a injusta vantagem masculina – nem sempre uma responsabilidade), a liberdade sexual feminina foi conquistada contra a maternidade. Ibsen, personalidade complexa que aos dezoito anos engravidou uma rapariga dez anos mais velha e nunca manteve contacto com o filho, sabia-o – ou, pelo menos, intuiu-o. Bergman, que viveu num tempo em que estilhaçar tabus era quase um pré-requisito para se poder ser levado a sério, também. Que a sociedade (pelo menos a sociedade que já ouviu falar das peças de Ibsen e dos filmes de Bergman) pareça tender a aceitar que a ligação entre uma mãe e um filho pode, naturalmente, quase sem discussão, ser subjugada à ideia da liberdade individual e da busca por uma felicidade cada vez mais ilusória (porque centrada em elementos externos: fama, riqueza, beleza, consumo, ...), bom, esse é um daqueles assuntos que as noções do politicamente correcto vêm transformando num tabu, numa época em que parecem restar tão poucos (um sério problema para a arte, que, exceptuando uma ou outra tímida tentativa para redefinir o conceito de inocência – no cinema, fiquemos por Malick –, pouco mais faz do que insistir em efeitos de choque cada vez mais gastos ou em jogos de interpretação quase aleatória, com pouco evidentes ligações ao real). De forma mais genérica: até que ponto são os valores necessários numa sociedade «desenvolvida»? E que valores? Sendo certo que há vantagens numa sociedade não manietada pelos mais tradicionais: as noções de culpa desvanecem-se pois, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba no mesmo barco. Não há culpados mas também não há inocentes. A outra personagem feminina de Persona, a tal enfermeira chamada Alma, não abandonou qualquer filho; abortou um.
Ela diz que que um chulo vai lá almoçar, e também um traficante de droga, ambos em plena luz do dia. Apontou-mos, com muitos sussurros excitados. O chulo vestia um fato de três peças e parecia um corretor da bolsa. O traficante de droga tinha um bigode cinzento e roupa de ganga, como um sindicalista dos velhos tempos.
Margaret Atwood, O Assassino Cego. Tradução minha.
E depois, claro, quando os números recolhidos formam uma tendência, a Netflix sabe o que fazer:
For almost a year, Netflix executives have told us that their detailed knowledge of Netflix subscriber viewing preferences clinched their decision to license a remake of the popular and critically well regarded 1990 BBC miniseries. Netflix’s data indicated that the same subscribers who loved the original BBC production also gobbled down movies starring Kevin Spacey or directed by David Fincher. Therefore, concluded Netflix executives, a remake of the BBC drama with Spacey and Fincher attached was a no-brainer, to the point that the company committed $100 million for two 13-episode seasons.
Bem-vindos pois à versão moderna de House of Cards. Mas qual o problema, se de tudo isto resultou uma excelente série? O problema é a tendência para se formar um círculo vicioso, em que cada vez mais é fornecido às pessoas aquilo de que elas já gostam, sendo escritores, realizadores, actores, editores, etc, obrigados a trabalhar de acordo com guias bem estabelecidos. Onde fica a criatividade de quem faz e os prazeres inesperados de quem vê? Onde fica o risco de quem produz e o alargar de horizontes de quem assiste? Não sei. De qualquer modo, sejamos francos: há uma parte da população que há muito (talvez desde sempre) recusa qualquer esforço no consumo de televisão, alimentando-se de novelas, todas iguais, todas recheadas de clichés, de concursos e de talk shows básicos. Nesse sentido, que as estatísticas da Netflix a tenham conduzido a House of Cards, a Spacey e a Fincher até pode ser considerado um sinal positivo do nível de exigência médio dos espectadores dos serviços de TV por subscrição. E em muitas séries da HBO também existem, de forma nada inocente, temas recorrentes: a nudez, a violência. Mas nada disto elimina completamente o risco de uniformização excessiva, de formatação. E depois há outros riscos: desde logo, o de manipulação – e não somente por parte de canais televisivos:
The Obama campaign used the same kind of number crunching to target voters with more accuracy than any political campaign had ever accomplished before. Online advertisers are also gathering vast amounts of detailed information about us from our smartphones, our Facebook likes and our Google searches.
[…]
The companies that figure out how to generate intelligence from that data will know more about us than we know ourselves, and will be able to craft techniques that push us toward where they want us to go, rather than where we would go by ourselves if left to our own devices. I’m guessing this will be good for Netflix’s bottom line, but at what point do we go from being happy subscribers, to mindless puppets?
Não se esqueça, disse-me uma vez, que o amor pelos animais não acontece naturalmente aos humanos se não se predispuserem a prestar-lhes atenção e a aceitar o amor que eles têm por nós. É como o amor de Deus, inteiro e desinteressado, e por essa razão tanto mais difícil de perceber e abraçar, um amor sem negócio, sem contrapartida, sem condições.
Também ele não soubera o que eram os animais até muito tarde e, tal como sucede a todos os que os descobrem, tratara-se de uma verdadeira conversão, como aquela que se exprime na parábola de S. Paulo na estrada de Damasco: de súbito acende-se dentro de nós uma claridade que nunca mais é possível apagar. Há muita gente que não gosta de animais nem de pessoas, o que é compreensível; há gente que gosta de animais mas não de pessoas, o que é lógico; mas não há ninguém que não goste de animais e goste de pessoas, esta última hipótese não pode verificar-se, porque quem não consegue experimentar o amor sem causa não pode encontrar em parte alguma causa bastante para o amor.
Trata-se de uma obra de ficção e o ponto de vista inicial é de uma personagem com posições frequentemente discutíveis. Mas, goste-se ou não, considere-se ou não preocupante que muita gente pareça defender mais os direitos dos animais do que os de outras pessoas, ache-se ou não que o ser humano, tendo forçado tantas espécies de animais à domesticação e ao cruzamento forçado para que o ajudassem a melhorar as suas condições de vida, tem uma responsabilidade perante eles e não devia hoje, num mundo ocidental em que a máquina os substituiu, estar tão predisposto a ignorar-lhes as conveniências, abandonando-os ou permitindo o seu abate assim que se tornam incómodos, não deixa de ser verdade: talvez mais do que gostar-se dos animais porque o cinema e a literatura os 'antropomorfizaram', gosta-se deles pelo motivo quase diametralmente oposto: porque não são parecidos com os humanos; não traem nem magoam de propósito e, pelo menos no caso dos cães, tendem a reforçar as posições dos humanos com que se relacionam em vez de as criticarem (ainda que saibamos ter errado, é óptimo obter apoio incondicional). Numa sociedade em que as pessoas, parecendo comunicar cada vez mais, se encontram cada vez mais fechadas em si mesmas, numa sociedade onde a cada dia se renova o paradoxo de que a exposição dos detalhes mais íntimos não equivale a exorcizar os medos nem as inseguranças, antes a renová-los e fortalecê-los, numa sociedade de interesses e frieza, à qual a crise económica veio acrescentar ainda mais dúvidas e temores, os outros humanos não inspiram confiança. Podem ter segundas intenções. Podem – e certamente irão – mudar. Os animais, não – ou não com maldade. A maldade é exclusivamente humana.
O livro, acerca do qual, tendo lido pouco mais de metade hoje de manhã, ainda não possuo uma opinião definitiva, está deliciosamente bem escrito. Em – sucede com praticamente todos os autores de língua portuguesa que vale a pena ler – português pré-Acordo.
1. Novas divindades
O ser humano da sociedade ocidental moderna transferiu a crença num deus para a crença na tecnologia. Em raras ocasiões isto se torna tão evidente como depois de uma catástrofe natural. Com tantos satélites e sistemas de medição e telescópios e computadores, como foi possível que ela não tenha sido prevista? E, se foi, por que não se previu ao detalhe (a cidade, a rua atingida) e por que não se implementaram atempadamente (ainda que a margem fosse de minutos ou até de segundos) medidas de protecção? E, se foi prevista e até se implementaram medidas de protecção, a que propósito se permitiu que ocorressem danos? Há nesta crença simultaneamente uma enorme ingenuidade e uma enorme arrogância. Ingenuidade em pensar que tudo se pode prever ao mais ínfimo pormenor; arrogância ao acreditar que o ser humano tem capacidade para moldar a natureza aos seus interesses, fazê-la obedecer às suas conveniências e, em luta corpo a corpo, vencê-la. Não é assim; ainda não é, pelo menos. Acreditar nisto (ou entrar na histeria típica das televisões e agir como tal) dá origem a uma esquizofrenia que leva as autoridades a sentir terem de emitir alertas ao mais ínfimo sinal de perigo, banalizando os alertas e atenuando-lhes os efeitos, e faz com que a qualquer desastre se siga a inevitável busca por culpados (mas se até em fóruns da internet se disse que podia acontecer...). Numa época em que tantas pessoas se sentem frágeis e impotentes perante um mundo que, da economia à tecnologia, não dominam, é algo irónico verificar como parece acreditar-se que outras pessoas têm sempre soluções à disposição. Para o cidadão médio, os profetas actuais sentam-se defronte de ecrãs de computador e precisam apenas de saber interpretar os sinais que neles vêem para que, depois, as autoridades tratem do resto – e tudo acabe bem. Os desastres naturais passaram de castigos dos deuses a incompetência humana.
2. O Estado-paizinho
Outra expectativa de muitos humanos actuais (certamente dos portugueses) é que, em situações de catástrofe natural, o Estado «ajude». É verdade que, até certo ponto, o Estado tem obrigação de ajudar: de socorrer, de tratar, de procurar minorar consequências, de alojar provisoriamente. Mas o Estado não tem nem deve ter a obrigação de pagar todos os estragos nem de reconstruir tudo que foi destruído. Fazê-lo implica usar recursos extraídos à totalidade dos cidadãos para compensar quem, tendo muitas vezes forma de se proteger, escolhe não o fazer. (Um exemplo: por que não se encontram seguros todos os edifícios municipais? Um seguro feito em bloco – digamos através da Associação Nacional de Municípios – ficaria baratíssimo.) A tendência para clamar por apoio estatal, tão enraizada entre nós (surge sempre que ventos fortes levam telhados, que chuvas intensas causam inundações, que incêndios destroem florestas, sempre até que uma empresa privada se encontra em dificuldades financeiras) tem custos que, pelos vistos, ainda não percebemos – entre os quais (e é um círculo vicioso) os da perpetuação da mentalidade que nos mantém reféns.
Adenda: Levando isto mais a situação financeira do país em conta, as declarações de Miguel Macedo foram correctas. E as de Passos Coelho lamentáveis. Ainda que o primeiro pudesse ter sido mais diplomático e o segundo quisesse apenas realçar esse facto.
Gostas muuiiiiito da tua mãe? Então diz-lhe com um presente no Dia da Mãe!
E o coraçãozinho a transformar-se numa carteira. Lindo. Só um mau filho poderá resistir.
No dia seguinte estávamos no quarto do Seb olhando o «Rubber Soul». Ninguém disse nada durante muito tempo. Estávamos sentados, debruçados sobre o disco, mudos, zangados, exactamente como o John, o George, o Ringo e o Paul se debruçavam sobre nós, fitando-nos duramente.
Não nos reconhecíamos.
– E como é? – perguntou Seb em voz baixa.
– Ainda não ouvi.
Olharam para mim e acenaram as cabeças, eu tinha corrigido a traição do Help. Retirei cuidadosamente o disco da capa, Seb colocou-o no novo gira-discos, Gerard, premiu on e a agulha elevou-se, sozinha, aterrando na primeira faixa, suavemente, como uma pena.
Ficámos a ouvir o disco o resto de serão, tocando-o vezes sem conta, os nossos ouvidos conchas enormes e nós deitados no fundo do mar, ouvindo, ouvindo, tentando interiorizar as músicas. Gunnar apontou desesperado para uma fotografia do John numa floresta de pinheiros enquanto ouvíamos o Norwegian Wood sem entender nada.
– Floresta norueguesa! – agoniou. – Floresta norueguesa! E que caralho é uma cítara, afinal?
Lars Saabye Christensen, Beatles.
Edição Cavalo de Ferro (2005), tradução de Kristian Amby.
Todos nos lembramos de, em criança, desejar ardentemente uma coisa (um disco, um brinquedo, uma peça de roupa) e dos dias ou semanas que lhe dedicámos depois de a obter. Nas décadas de sessenta, setenta ou oitenta (Beatles trata da adolescência de quatro rapazes na Oslo dos anos sessenta e do fervor com que acompanhavam cada novo álbum dos Beatles), a maioria das pessoas não tinha dinheiro para comprar muitos presentes aos filhos, o que transformava cada compra num evento. Cada presente era fruído durante longo tempo, a menos que se partisse ou fosse passível de ser facilmente desmontado. Entretanto, o nível de vida médio subiu (em tempos de crise, tendemos a esquecer-nos) e as crianças começaram a receber ofertas mais regularmente. Os próprios adultos, que se permitiam indulgências com ainda maior parcimónia do que aquela com que presenteavam os filhos, passaram a um nível de auto-indulgência incomensuravelmente superior. Ainda bem, claro. Nada tenho contra poder aceder-se a mais coisas. Mas assalta-me a sensação de que algo se perdeu. Cada nova aquisição deixou de ter a importância que tinha. A fartura (ainda que quase sempre relativa) leva a que poucas coisas sejam hoje fruídas com o nível de intensidade que mereciam. No que me diz respeito, já não me lembro da última vez que ouvi um álbum com a atenção que dediquei a The Joshua Tree ou andei tanto tempo acompanhado por uma canção como nos tempos de True Faith. Talvez por alturas de OK Computer, certamente que não na última década. Continuo a ouvir imensa música, até mais do que por alturas da minha adolescência, quando o dinheiro de que dispunha para a comprar era muito limitado, e continuo a procurar música nova, mas reduzi o grau de profundidade com que a ouço. E o mesmo acontece noutras áreas (na literatura, um pouco menos). A quantidade substituiu não a qualidade dos itens mas a da sua fruição; substituiu a profundidade da análise.
Exagero? Talvez. Saudosismo? Também é provável. Afinal, como Pedro Mexia afirmava numa crónica sobre homens adultos coleccionadores de cromos incluída em Nada de Melancolia, as pessoas da idade dele (o que – bof – me inclui) estão viciadas em nostalgia. Mas ainda assim não resisto a continuar. As experiências são hoje não exactamente menos intensas (pelo menos, não para as crianças) mas acima de tudo mais efémeras. E não por culpa daquilo que as gera: é verdade que o efeito de novidade diminuiu (poucas coisas novas são verdadeiramente novas) mas, ainda assim, continuam a ser disponibilizadas diariamente excelentes obras em quase todos os campos que se entenda analisar. O problema reside nos consumidores. Requer-se novidade constante mas cada nova dose produz efeito durante menos tempo. A música, consumida em temas individuais e não em álbuns – a noção de obra parece também estar a desvanecer-se – é amontoada aos milhares de faixas em leitores portáteis e computadores. Os filmes, colagens de efeitos especiais concebidas para animar adolescentes durante duas horas, são esquecidos logo após o início do genérico final (com honrosas excepções, a que poucos ligam). Talvez os jogos de vídeo ainda consigam prender miúdos (e graúdos) durante algumas semanas mas já não têm o carácter quase mítico de há quinze ou vinte anos e também eles têm vindo a tornar-se mais «acessíveis» (mais fáceis, mais curtos, mais iguais entre si). E esta tendência está longe de se confinar aos bens culturais. Após seis meses de uso, um telemóvel já desagrada. Um carro é substituído ao fim de três ou quatro anos. Na moda, as cores «certas» mudam de estação para estação, a cintura das calças e das saias sobre ou desce uns centímetros todos os anos, a ponta dos sapatos femininos muda de redonda para quadrada para bicuda e depois volta a redonda em períodos cada vez mais curtos. A ânsia da «novidade» é gigantesca, o tédio espreita a cada esquina e poucas pessoas sabem gerir a insatisfação. Felicidade passou a significar acesso contínuo a entretenimento de acesso rápido e posse dos mais recentes bens materiais. E, claro, também ela é cada vez mais efémera.
Como isto começou e vai acabar com um excerto em que o assunto é música, talvez não seja descabido referir que a situação pode ter sido agravada pelo facto de muitas coisas terem deixado de ser pagas. Poucas pessoas – pouquíssimos jovens, certamente – pagam hoje a música que ouvem. E o mesmo se começa a passar com os filmes, os jogos, os livros – tudo o que é passível de download. Não pagar leva a amontoar mais coisas: inevitavelmente, quanto mais não seja por falta de tempo, a muitas quase não se presta atenção e mesmo as restantes sofrem por não serem apreciadas com calma. Talvez pior: o hábito de não pagar leva à perda de noção do valor dessas coisas. A distorções curiosas como, por exemplo, muita gente se recusar a pagar doze ou quinze euros por um álbum musical (ou menos, em sites como a Amazon, o iTunes ou o Zune), algo a que está associado um trabalho de meses ou anos, mas estar disponível para pagar os mesmos quinze euros por uma t-shirt feita na China com a fotografia da banda a que se nega o pagamento da música estampada no peito. A facilidade com que se obtêm coisas que ainda há uma vintena de anos custavam dinheiro, para as quais era necessário poupar, deprecia-as. Faz com que se consumam e ponham de lado mais depressa. E parece também fazer aumentar a predisposição para aceitar que tudo pode ser obtido de graça. Afinal, se é possível obter as canções, por que não o leitor de mp3, o telemóvel ou o computador onde as ouvir – ou a t-shirt? Como se viu há uns meses em Londres, não são dúvidas morais que impedem muitas pessoas de entrar numa Fnac e sair de lá com iPads debaixo do braço. São questões de oportunidade. Paradoxal mas quiçá inevitavelmente, os bens materiais vêm-se tornando cada vez mais importantes mas também cada vez menos eficazes na incessante busca da felicidade.
E a melancolia (desculpa lá, Mexia, mas como evitar uma pitadazinha?) surge da percepção de que, afinal, descobrir coisas – descobrir mesmo, mergulhando nelas, saboreando-as, analisando-as, dando-lhes tempo, permitindo que nos interroguem, usando-as para descobrir outras coisas – continua a ser das melhores experiências que se podem ter na vida.
Seb estava dentro do altifalante à procura da cítara, tinha de ser algo muito estranho. Mas Ola estava satisfeito com o What goes on, tinha agarrado num par de lápis com que batucava, franca melhoria. Eu achei o Michelle delicodoce, mas o Girl era o máximo, fazia-me sentir todo amargo e quente. O Nowhere Man passou-nos totalmente ao lado, e por cima. Gunnar estava quase no choro, o suor brotava-lhe da testa e a boca estava escancarada e vazia.
– Mas afinal o qu’ é que a-a-aconteceu? – murmurava Ola.
A porta abriu-se abruptamente e lá estava o pai de Seb, o comandante, cara tisnada e a camisa dobrada e arregaçada mostrando os pêlos que transbordavam no peito e nos braços, como musgo negro.
– Olaré. Que carantonhas!
– Olha, pai – disse Seb. – O qu’ é uma cítara?
Entrou para o meio do quarto e plantou bem os pés no chão, como se estivesse no mar alto.
– Cítara. Vou contar-vos, pois. Uma vez chegámos a Bombaim com petróleo. E o nosso cozinheiro era indiano. Trabalhava como um herói, não pensem que se come pouco a bordo de um navio. E o indiano, ‘tão a ver, os indianos não comem carne, porque acham que a qualquer momento os antepassados podem aparecer por aí como vacas, ou gafanhotos, e por isso não comem carne. Mas o nosso indiano tinha de preparar carne todos os dias, e ‘tão a ver como devia ser, pra ele, todos os dias a pensar que estava a preparar o avô. Mas mesmo assim nunca havia barulho com ele.
Seb pigarreou.
– Oh pai. O qu’ é uma cítara?
– Calma. Não havia barulho com este menino, não, ou antes, havia uma barulheira dos diabos, porque ele tocava cítara, todas as noites. Era o consolo dele. Um instrumento enorme. Pelo menos cem cordas. Soa a mulheres maldispostas.
– Como que uma guitarra indiana? – perguntou-lhe Seb.
– Isso mesmo. Gosto em vê-los, rapazes.
E o comandante desapareceu. Pusemos de novo o Norwegian Wood.
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