Certas carreiras – e vidas – ficam marcadas por um ou dois acontecimentos a que nunca mais é possível escapar. Na carreira de Sinéad O'Connor, os acontecimentos foram dois e ocorreram há cerca de vinte anos. Consistiram numa versão sublime de um original de Prince (
Nothing Compares to You) e no acto – insensato, corajoso ou ofensivo, consoante o entendimento de cada um, mas indubitavelmente
sincero, ao invés de tantos outros que se vêem por aí hoje em dia – de ter rasgado uma fotografia do Papa durante um episódio de
Saturday Night Live. A fama e a polémica, que condizem tão bem com a encenação, condizem muito mal com a sinceridade, atreita a dúvidas, contradições, exageros, actos irreflectidos. Sinéad foi – passe a deselegância da imagem – crucificada. Numa tomada de posição célebre e oportunista, até Madonna a criticou. Mais: vasculhando a sua vida privada, descobriu-se que nunca fora um exemplo de estabilidade emocional. Não precisámos de mais. Desde então, Sinéad viu-se praticamente ostracizada. E que a sua música, continuando a seguir a mesma rota de sinceridade, se tivesse tornado mais difícil, menos imediata, só ajudou a empurrá-la para fora das luzes da ribalta. Hoje, Sinéad O'Connor é a grande voz por trás de
Nothing Compares to You e, acima de tudo, a maluquinha que rasgou a foto do Papa. Vejam a
pequena entrevista que precedeu a interpretação acima e constatem como o entrevistador se sente forçado a perguntar se ela está bem – e como ela reage com inconveniente mas tocante honestidade. De certa forma, fosse ela um homem, talvez se tivesse saído melhor. Ninguém olha para cantores polémicos como maluquinhos. Embora, claro, o ideal tivesse sido morrer durante aquela primeira metade da década de noventa – de preferência, suicidando-se. Ter-se-ia transformado num ícone,
à la Janis Joplin, Jim Morrison ou Kurt Cobain. Porém, apesar de casamentos falhados, problemas com a custódia dos filhos, depressões, fibromialgias e outras crises, Sinéad sobreviveu, e sobreviveu tão inclassificável como sempre. Na década passada lançou três álbuns, nenhum deles 'normal':
Sean-Nós Nua (2002) era formado por um conjunto de canções
folk,
Throw Down Your Arms (2005) por temas
reggae e
Theology (2007) por canções espirituais rastafari. Em Março passado lançou finalmente um álbum dentro da linha que associamos ao seu nome. O título dispensa comentários:
How About I Be Me (And You Be You). Neste primeiro
single garante que
the sun's peeping out of the sky / Where there used to be only gray / The wolf is getting married /And he'll never cry again. Terá sido optimista. Há poucos dias
anunciou no site oficial que cancelava a
tournée prevista por se encontrar
unwell due to bipolar disorder (sempre a sinceridade). Enfim – como o título de um filme francês da década de noventa garantia, as pessoas normais não têm nada de especial. E raramente fazem música que valha a pena ouvir.