como sobreviver submerso.

Quinta-feira, 2 de Outubro de 2014
O medo de não estar à altura do passado

Blog_U2

 

Os U2 levaram-me a instalar o iTunes. Parece que muitos dos 500 milhões de utilizadores ficaram pouco satisfeitos ao descobrirem um álbum do quarteto irlandês na sua colecção; eu, refractário à instalação de software de utilidade duvidosa (devo ser das pessoas com menos apps no telemóvel), tratei ainda assim de instalar o programa para o obter (a Apple já pode anunciar que tem 500 milhões e um utilizadores). Por muito que os U2 sejam hoje vistos como irrelevantes, impõem-se gestos mínimos de respeito.

 

É sintomático que tanta gente tenha ficado irritada. Os U2 passaram de moda. Tornou-se «bem» dispensá-los com um trejeito de desprezo, sem conceder à sua música recente mais do que alguns segundos de desatenção. Hoje em dia, os juízos são rápidos, definitivos – e frequentemente pré-determinados. Afinal, há tanto para ver e ouvir. Para quê perder tempo com vozes do passado?

 

Não vou abordar a questão da parceria com a Apple. Se existisse, incomodar-me-ia a falta de coerência entre mensagem e atitude (comum tanto na música como noutras artes). Os U2, porém, foram uma banda de intervenção apenas por acidente e deixaram há muito de o ser. A sua música ressente-se? Talvez. Mas não é por aí – a Sunday Bloody Sunday seguiram-se imensas coisas interessantes sem uma mensagem política evidente. Mesmo a ironia dos tempos de Achtung Baby e Zooropa foi mais celebração do que contestação.

 

O novo álbum, Songs of Innocence, é pouco coeso mas não merece a crítica feroz da Pitchfork. (Nem a – habitual, valha-os Deus – entusiástica da Rolling Stone.) Acima de tudo, revela o medo de falhar de uma banda que não se importou de parecer fora de moda na década de oitenta nem de correr o risco de ir tão para além da moda no início da de noventa que conseguiu tornar-se o epítome da ironia e da eficácia no universo da comunicação planetária (é por isso duplamente irónico que hoje tenha de recorrer a expedientes de gosto duvidoso para chegar às massas). Bono referiu-o várias vezes durante os muitos anos em que Songs of Innocence esteve em gestação: os U2 não se podem permitir lançar qualquer coisa, têm de ter a certeza de que o material está à altura das expectativas – ou seja, à altura do que fizeram na primeira década e meia de existência. Este receio de já não serem capazes é o grande problema: rouba-lhes espontaneidade, fá-los disparar em todas as direcções e sobreproduzir os temas até uma perfeição anódina. Songs of Innocence nem abre mal: The Miracle (of Joey Ramone), um tributo ao vocalista dos Ramones, tem uma sonoridade que remete para o início da banda e falta-lhe apenas a ingenuidade dos dezoito anos para resultar em pleno. (De qualquer modo, se Bono e companhia podem ser acusados de muitas coisas, é forçoso admitir que, aos cinquenta e tal anos, continuam a confessar influências e encantamentos com a facilidade dos tempos mais ingénuos.) Seguem-se duas canções que os U2 fizeram antes dezenas de vezes, sempre melhor, e que por vezes soam a The Killers, um pecado mortal quando os The Killers não passam de uma má imitação dos U2. Depois há dois temas mais intimistas, em que Bono evoca pessoas que lhe estão próximas – a mulher em Song for Someone, a mãe em Iris (Hold Me Close) –, nos quais intenção e emoção esbarram em letras demasiado fracas (não obstante pepitas como something in your eyes took a thousand years to get here) e música demasiado produzida. Entra-se finalmente numa série de temas em que a banda parece libertar-se um pouco do peso do passado e arrisca sonoridades menos habituais, baseadas num baixo forte e sincopado e num som de guitarra agressivo e mais directo. Detecta-se a mão do produtor Danger Mouse (que não é responsável pelos primeiros temas) e não há mal nisso: Eno, Lanois e Lillywhite também foram importantes no passado. Acima de tudo, na segunda metade do disco a banda parece divertir-se. Cedarwood Road abre com um som de guitarra rasgado e, num álbum de letras genericamente fracas (as capacidades de Bono estão longe dos tempos de Achtung Baby), é um hino ao optimismo (I was running down the road / The fear was all I knew / I was looking for a soul that's real / Then I ran into you / And that cherry blossom tree / Was a gateway to the sun / And friendship, once it's won / It's won, it's one) e à capacidade de superar dificuldades (and a heart that is broken / It's a heart that is open). Após graves problemas com a voz (dolorosamente evidentes em All That You Can’t Leave Behind, de 2001), Bono arrisca mesmo um falsetto em Sleep Like a Baby Tonight, a penúltima canção, e é delicioso por ser tão inesperado e por a voz ficar à beira da ruptura, o que confere ao tema (ainda assim, algo sobreproduzido) a faceta genuína que falta a outros. This Is Where You Can Reach Me Now, logo a seguir, é dos mais alegres e despreocupados do álbum – dos melhores, também. Songs of Innocence termina com The Troubles, um dueto com Lykke Li, e termina bem, numa nota de melancolia e aceitação (You think it's easier / To put your finger on the trouble / When the trouble is you / And you think it's easier / To know your own tricks / Well, it's the hardest thing you'll ever do).

 

Em Acrobat, de um Achtung Baby a que poucos negam o estatuto de obra-prima, Bono citava o título de um conto de escritor Delmore Schwartz, cantando: in dreams begin responsabilities. A responsabilidade de os perseguir mas também a responsabilidade de, tendo-os atingido, não os defraudar. É habitual considerar-se que a fama e o dinheiro libertam. Que permitem não ligar às opiniões alheias ou arrumar as botas e apreciar os rendimentos. Não quando mais do que fama e dinheiro se anseia por relevância, por continuar a justificar a posição alcançada. Existe integridade no desespero dos U2. Não chega para poder considera-se Songs of Innocence um grande álbum (quando muito, meio bom álbum), serve-lhes de empecilho, parecerá embaraçosa a todos aqueles para quem é pior tentar e falhar do que desistir mas, no fundo, merece respeito.

 

(E agora, desinstalo o iTunes ou fico à espera de que a Apple ofereça o próximo álbum dos Depeche Mode?)


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publicado por José António Abreu às 10:19
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