como sobreviver submerso.
Apenas sei de cor três poemas: um de Fernando Pessoa, um de Miguel Torga, um de W. B. Yeats. Tenho na memória versos de mais uns quantos mas só por sorte conseguiria declamar os poemas a que pertencem do início ao fim sem erros crassos ou bloqueios fatais. Decorei estes três há tantos anos que esqueci a razão por que a minha memória os reteve. Lembro-me apenas de os ler muitas vezes. Talvez me tenha apercebido que quase os sabia de cor e tivesse insistido até que isso fosse verdade. Habitualmente, de nada me serve sabê-los. Hoje em dia não andamos pelas ruas ou pelos gabinetes a declamar poesia e a maioria de nós não é convidada para programas de TV onde, qual Odete Santos declamando Gedeão, tenhamos hipótese de espantar o mundo com os nossos conhecimentos. Espantar ou embaraçar, porque, nos dias que correm, demonstrar cultura de forma gratuita é frequentemente um embaraço. Na maior parte do tempo nem sequer me lembro que os sei de cor. No entanto, há um par de anos descobri que saber três poemas – ou apenas um, desde que o certo – ainda pode ser útil.
Foi num daqueles cursos de formação que demoram semanas. Éramos menos de uma dezena de formandos, quase todos com pouco mais de vinte anos. Raramente sinto que tenho a idade que o BI me dá (agora quarenta, na altura trinta e sete ou trinta e oito) mas, quando a companhia são jovens acabados de sair da universidade, ligeiramente assustados com as poucas hipóteses de emprego mas ainda expectantes e quase sem cinismo, é difícil evitar sentir que se está noutra fase da vida. Uma das raparigas presentes era daquelas miúdas sensíveis e desengonçadas que parecem pouco à vontade com a realidade e com o próprio corpo. Os sorrisos começavam e acabavam-lhe abruptamente, os movimentos de mãos e braços nem sempre pareciam coordenados, as demonstrações de espanto, alegria ou tristeza surgiam em mini-explosões mal controladas. Era vegetariana e adorava animais. Gatos, acima de quaisquer outros. Uma tarde, após um intervalo em que os gatos dela haviam sido mais uma vez tema de conversa, escrevi numa folha de papel:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gente
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes
És feliz porque és assim
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa
Entreguei-lhe a folha. Leu o poema com uma expressão de espanto crescente. Quando acabou olhou para mim e perguntou: «De onde é que tiraste isto?» Sorri. Apontei para a cabeça. A admiração dela era tão genuína que quase desatei a rir. Como não gosto de parecer o que não sou, disse-lhe: «Só sei mais dois. Calhou este ser sobre gatos.» Não sei se ela acreditou ou se pensou que eu estava apenas a tentar ser modesto. Em qualquer dos casos, acho que me olhou de outra forma durante todo o resto do curso.
A crer em peças famosas, houve tempos em que a poesia era essencial para conquistar o coração feminino. Hoje ninguém parece atribuir-lhe essa capacidade. Eu nunca o fizera. Mas, no instante em que vi a reacção da minha jovem colega de formação, nasceram-me dúvidas. Passei a questionar-me se não manterá afinal resquícios desse antigo poder.
Já é tarde. Tivesse eu menos vinte anos, faria um esforço para decorar mais alguns poemas…