E aqui estão, exactamente como os deixámos, livros, jornais e discos, e maços de cartas, e embrulhos, revistas e manuscritos. É impossível ter a correspondência em dia. Oscar Wilde dizia ter conhecido um jovem promissor que se arruinara com o vício de responder a cartas. Não me é possível ver todo este amontoado de papéis, mais os dois ou três livros que chegam todos os dias.
Saul Bellow, Jerusalém - Ida e Volta.
Edição Tinta-da-China (2011), tradução de Raquel Moura.
Hoje já não se escrevem cartas. Escrevem-se mensagens de telemóvel e de correio electrónico, posts e comentários. O vício são os blogues, o Facebook e o Twitter. Quantos jovens promissores se arruinarão andando por aqui?
Tens ambições. Mas és ambicioso de uma forma genérica. Não és suficientemente concreto. Tens de ser concreto. Napoleão, por exemplo, era. Goethe era. Vê o caso deste professor Sayce que realmente fez a viagem pelo Nilo. Conhecia tudo o que havia nas margens ao longo de mais de mil quilómetros. Coisas específicas! Nomes e moradas. Datas. Todo o mistério da vida está nos dados específicos.
Saul Bellow, As Aventuras de Augie March.
Edição Quetzal, tradução de Salvato Telles de Menezes.
Bom, alguns especialistas são apenas patéticos. Coleccionadores de caricas. Indivíduos que sabem de cor composição e resultado da equipa de futebol do Benfica em todos os encontros por ela disputados desde 1930. Gente que dedicou anos a conseguir efectuar malabarismo com cinco bolas de ténis enquanto faz o pino dentro de uma piscina insuflável. Mas estas são as pessoas que não souberam direccionar convenientemente a especificidade da ambição. E, ainda assim, por vezes conseguem quinze minutos de fama, num programa televisivo qualquer. Nos tempos que correm, isto já pode ser considerado sucesso. Valida-lhes a extravagância; durante umas semanas, transforma-as nas pessoas mais importantes da rua delas.
Eu não tenho esse problema. Tenho o oposto, o mesmo de Augie March. Disperso-me. Não consigo ser específico, dedicar-me de alma e coração a um objectivo bem definido, ignorando todas as restantes solicitações. Nunca terei sucesso, assim. Porque, de facto, todas as pessoas de sucesso parecem focadas. Ser especialistas em alguma coisa. Especialistas em sucesso, pelo menos.
Há meio século que ouço conversas como esta. Lembro-me bem do que diziam pessoas inteligentes e informadas nos últimos anos da República de Weimar, o que diziam uns aos outros nos primeiros dias depois de Hindenburg nomear Hitler. Lembro-me das conversas à mesa de jantar no tempo de Léon Blum e Édouard Daladier. Lembro-me do que diziam as pessoas sobre a aventura italiana na Etiópia e sobre a Guerra Civil Espanhola e sobre a Batalha de Inglaterra. Estas discussões inteligentes nem sempre se revelaram erradas. O que têm de errado é que os interlocutores transmitem invariavelmente a sua inteligência ao tema da discussão. Posteriormente, os estudos históricos revelam que o que aconteceu na realidade era desprovido de tal inteligência. Essa inteligência esteve ausente dos Campos da Flandres e de Versalhes, ausente quando se tomou o Ruhr, ausente de Teerão, Ialta, Potsdam, ausente das políticas britânicas durante o Mandato da Palestina, ausente antes, durante e depois do Holocausto. A história e a política não se assemelham em nada às noções concebidas por pessoas inteligentes e bem informadas. Tolstói tornou isso bem claro nas páginas iniciais de Guerra e Paz. No salão de Anna Scherer, os elegantes convidados discutem o escândalo de Napoleão e do duque d’Enghien, e o príncipe Andrei diz que apesar de tudo há uma grande diferença entre Napoleão o imperador e Napoleão a pessoa privada. Há raisons d’état e há crimes privados. E a conversa prossegue. O que continua a ser perpetuado em todas as discussões civilizadas é o próprio ritual da discussão civilizada.
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