Na sequência de aturado estudo envolvendo complexos modelos matemáticos, uma calculadora de telemóvel, uma esferográfica Bic roubada numa repartição de finanças (única participação de fundos públicos no projecto), uma folha de papel milimétrico extraída discretamente do interior de uma papelaria (é fundamental que a iniciativa privada colabore nos projectos de investigação científica) e um cartão de débito a servir de régua, informa-se que, a manterem-se os actuais ritmos de crescimento da altura dos portugueses e dos saltos dos sapatos femininos, mais de metade das portuguesas terão de se baixar (ou descalçar) ao passar pelas portas já em 2028. Prevê-se também um acréscimo ainda não quantificado (preciso de mais folhas de papel milimétrico) de casos de pernas partidas e traumatismos cranianos nos hospitais, o qual teria consequências bastante negativas para as contas do Serviço Nacional de Saúde se ele ainda existisse nessa altura.
Depois de entrarem na Morávia, os alemães instalam-se ali e ocupam Ostrava, cidade de carvão e de aço, perto da qual Emil nasceu e onde prosperam indústrias como a Tatra e a Bata, as mais importantes, sendo que ambas oferecem um meio para avançar: o automóvel e o calçado. A Tatra concebe automóveis muito bonitos e caros, a Bata produz sapatos não muito feios a preços baixos.
Jean Echenoz, Correr.
Edição Cavalo de Ferro, tradução de Virgílio Tenreiro Viseu.
Isto acontecia na primeira metade da década de quarenta. Entretanto, a Tatra deixou de produzir carros bonitos para passar a produzir camiões feios. Já a Bata, bom, digamos que é agradável constatar que, apesar dos setenta anos decorridos, do nazismo e do comunismo, algumas tradições ainda são o que eram.
Merda, merda, merda! Parti um salto! E estes sapatos são novos!
(Não, nada.)
Os jornais Metro e Meia Hora de hoje trazem em destaque na primeira página um novo filme – “A Proposta” – protagonizado pela simpática mas cinefilamente descartável Sandra Bullock (gosto de ti na mesma, miúda). Podia discutir-se a relevância jornalística do assunto mas, como qualquer pessoa com um neurónio em razoável estado de funcionamento já percebeu que as primeiras páginas dos jornais gratuitos nada têm a ver com critérios jornalísticos, não vale a pena ir por aí. O Pacheco Pereira que o faça no seu novo programa. A mim prendeu-me o olhar a enorme foto na primeira página do Metro que mostra uma Sandra Bullock de joelhos no passeio perante um homem ligeiramente curvado. Para as sensibilidades feministas não ficarem já eriçadas, esclareça-se que Bullock tem afixada na face visível (a esquerda; e, como nunca me apercebi que a simpática texana fosse aparentada com o Two-face das histórias do Batman, a direita deve apresentar as mesmas condições), uma expressão que indica ter plena consciência da figura que faz mas, ainda assim, estar divertida. Uma expressão a modos que “ó pra mim a fazer de rapariga tolamente apaixonada”. Sem ter lido uma linha sobre o filme, aposto que é uma obra-prima da dimensão de um While You Were Sleeping, também com Bullock, ou de um Serendipity, com essoutra adorável rapariga, estrela de tantas obras-primas quanto os prémios Nobel que Lobo Antunes já ganhou (mas ambos merecem muito mais), Kate Beckinsale. (É verdade que Serendipity tem o John Cusack, o que transforma automaticamente qualquer filme numa obra-prima ou, se incluir também a Joan Cusack – como o Grosse Point Blank –, numa obra-irmã). Ainda assim, como o(a) leitor(a) – sim, acorde, estou a falar consigo – certamente já percebeu, tudo isto serve apenas de introdução para o verdadeiro assunto deste post. E esse assunto (reúnam as senhoras, por favor) é sapatos. Na foto, Sandra calça um par de sapatos pretos de salto muito, mas muito alto. (Nesta época de preocupações com a saúde tem uma certa piada que as mulheres se estejam nas tintas para a saúde da sua – delas – coluna vertebral mas, como homem, nada tenho contra um belo par de pernas encavalitado num par de sapatos de salto muito, mas muito alto.) Como Sandra está de joelhos, os saltos ficam espetados no ar num ângulo de aproximadamente trinta graus com a horizontal (lá por estar a falar de sapatos não vou deixar de ser homem), criando duas armas brancas (que, no caso, são pretas) que deviam estar na lista das armas proibidas. Mais importante, as belas biqueiras pretas envernizadas roçam no pavimento, sendo impossível que tenham terminado a cena incólumes. Ora, num filme direccionado ao público feminino (e a homens sensíveis como eu), este parece-me um erro de proporções bíblicas. Espero bem que, no genérico final, surja a indicação de que nenhum sapato foi maltratado durante a rodagem do filme e que, nas entrevistas ao Mário Augusto, a realizadora (Anne Fletcher, que nada me diz) explique que Sandra estava descalça e que os sapatos foram acrescentados digitalmente depois de rodada a cena. E, agora que a imagino fazendo a cena sem sapatos, não resisto também a imaginar que toda a roupa foi acrescentada à posteriori (até porque entretanto descobri isto, onde Sandra refere cenas de nudez e explica a forma correcta de fazer um filme), o que permitiria poupar imenso em guarda-roupa e abre um novo leque de interpretações para uma cena de um filme chamado “A Proposta” onde uma mulher atraente se encontra de joelhos defronte de um homem em pé, com uma expressão (pelo menos na face visível) de menina transgressora. As feministas e os sapatos que se lixem.
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