A posição do PS: fechar centros de saúde no interior do país era um acto de boa gestão; fechar uma maternidade em Lisboa é um crime de lesa-majestade.
A posição de muita gente que protesta: sim, o governo deve cortar nos gastos; não, não deve fechar uma estrutura redundante.
A polémica acerca da falta de tolerância de ponto no Carnaval mostra várias coisas interessantes. Aquela a que acho mais piada é como, avaliando pelo que a televisão nos mostra, hoje quase não há casos urgentes nos hospitais e centros de saúde. Pelos vistos, os portugueses só têm problemas de saúde nos dias de trabalho.
(Donde talvez o Ministro da Saúde devesse tentar convencer o resto do governo a aumentar e não a diminuir o número de feriados. A poupança que isso permitiria...)
Vamos ao médico confessar pecados: sim, não resisti a umas feijoadas e a uns cozidos à portuguesa. Assustam-nos com destinos atrozes: ataques cardíacos, AVCs, doenças degenerativas. Prometem-nos a salvação em troca de penitências: cortar nos doces, na bebida e no tabaco, fazer exercício físico, dormir mais. A medicina transformou-se numa religião. Com exactamente a mesma regra basilar: se te dá prazer ao corpo, deves evitá-lo. Como deixámos de visar o longo prazo e de acreditar no imaterial, não se pretende já salvar a alma mas apenas o corpo. Templos onde se promete a salvação em troca de muito esforço e de um dízimo de algumas dezenas de euros por mês abrem por todo o lado. Nas televisões há emissões evangélicas em horário nobre. Os fiéis tornam-se apóstolos e procuram converter os restantes. Muito bem; nada de mal há nisto. Mas os governos, infiltrados (ah, as corridinhas de Sócrates), produzem cada vez mais leis destinadas a obrigar-nos a seguir os novos mandamentos. Quem não mostrar devoção (e é difícil esconder a heresia, pois esta reflecte-se no corpo) arrisca-se a castigos severos, por muitas desculpas metabólicas que apresente. Um destes dias vai ser preciso laicizar novamente o Estado. À força, quase de certeza. É melhor começar a fazer exercício para estar em forma quando o momento chegar.
Tenho o colesterol elevado*. A gordura acumula-se-me nas veias e artérias. A minha médica, que tem três ou quatro quilos desnecessários (sou um gentleman, eu) mas um par de olhos bonitos, é simpática e se dá ao trabalho de tentar esconder o cansaço, explica-me que isso aumenta os riscos de doenças cardiovasculares. Que as minhas artérias podem acabar bloqueadas. Sorrio. Lembro-me fugazmente de que na última consulta houve uma piada que correu mal (qualquer coisa sobre a gordura saturada no meu corpo ter de esperar vez atrás de todas as minhas outras saturações) mas não resisto: «Não passa com frequência na Avenida da Boavista, pois não? Faz parte da condição das artérias bloquearem de vez em quando.» Ela não acha graça e ralha-me como se eu tivesse oito anos. Felizmente mantém um vestígio de sorriso nos lábios em vez de adoptar aquele tom enjoativamente didáctico que os estudantes de medicina devem ser obrigados a aprender numa qualquer cadeira universitária. Espero que termine e depois digo, desejoso de ver até onde irá o sentido do dever dela (mas também um pouco receoso das consequências): «Há bloqueios que me preocupam mais. Os bloqueios criativos, por exemplo.» Fica perplexa durante um instante. Semicerra os olhos (são verdes). Bate com a ponta da esferográfica no tampo da secretária. Pergunta-me: «Mas não é escritor, pois não?». Sorrio novamente. «Porquê? Isso diminuía o risco de vir a ter um problema vascular?» Começa a estar irritada. Nota-se-lhe nos olhos (verdes) e na boca. Responde: «Não. Mas ajudava a explicar a teimosia e a falta de senso.» Sorrio ainda mais. «Só escrevo e-mails. E relatórios chatos. E num blogue.» Resfolega ligeiramente («resfolegar» não é um termo que, à partida, eu associasse com ela mas, de momento, é o único que me parece ilustrar razoavelmente o trejeito que esboça e o som que emite). Murmura, rolando ligeiramente os olhos (verdes): «Devia ter adivinhado.» «Porquê?» «Acha que tem sempre de fazer um comentário despropositado mesmo quando o assunto é sério.» Fico em silêncio. Touché, penso (mas não digo). Porto-me bem durante o resto do tempo. E agora não sei se mude de médica, se na próxima consulta lhe leve uma caixa dos mais calóricos chocolates que encontrar.
* Obrigado pela preocupação mas ainda não atingiu níveis críticos. E prometo que vou atacar o problema, passando a deslocar-me a pé à casa de banho.
Uma discreta notícia no site do jornal Público informa-nos que, de acordo com um estudo realizado em Nova Orleães, os gordos estão mais sujeitos a terem doenças cardiovasculares que os magros mas também lhes resistem melhor. Já não é apenas em caso de fome generalizada (evidentemente, os magros morreriam primeiro) que os gordos têm vantagem. No meio da histeria comunicacional e legislativa que procura desenfreadamente impor-nos padrões de comportamento e aparência, é divertido ver como a ciência é complexa e contraditória. Ou, se calhar e contra todas as expectativas, Deus tem sentido de humor.
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