É precisamente sobre isso que converso um dia com A., um velho inglês que vive aqui há muitos anos: a força da Europa e da sua cultura reside, ao contrário do que acontece com outras culturas, na capacidade crítica, sobretudo de autocrítica. Na sua capacidade de analisar e pensar, numa busca e numa insatisfação constantes. O espírito europeu reconhece as suas limitações, aceita a sua imperfeição, é céptico, duvida, põe tudo em causa. Há outras culturas às quais falta este espírito crítico. Mais ainda – têm tendência para a superioridade, para considerarem que tudo o que as distingue é perfeito; por outras palavras, não conseguem ser autocríticas. Estão constantemente a responsabilizar outras pessoas e outras forças (maldições, diversas formas de domínio estrangeiro) pelas desgraças. Os representantes destas culturas vêem na crítica uma ofensa pessoal, uma tentativa consciente de os humilhar, uma forma de os maltratar. Se lhes disser que a sua cidade está suja, é como se lhes dissesse que eles próprios estão sujos, ou têm as orelhas mal lavadas, o pescoço e as unhas carregadas de sujidade. Em vez de estarem disponíveis para a crítica, arrastam atrás de si todo o tipo de traumas, complexos, sentimentos de ódio, indignação, insatisfação e manias. Isto leva a que cultural e estruturalmente eles não sejam capazes de desbravar o terreno do progresso, e sejam incapazes também de ter em si vontade para a mudança e o desenvolvimento.
Será que as culturas africanas (em África, há tantas como religiões) pertencem a estas culturas inatingíveis e sem poder de crítica? Africanos como Sadig Rashid começaram a reflectir sobre isso, pois querem encontrar uma resposta para a pergunta: por que razão é que África está a ficar para trás na grande corrida dos continentes?
Ryszard Kapuscinski, Ébano – Febre Africana.
Edição Campo das Letras (2001), tradução de Maria Joana Guimarães.
A pergunta aplica-se a outras zonas do mundo, não apenas a África. Em grande medida, aplica-se a Portugal. E a possível explicação também. Kapuscinski, um dos maiores repórteres de sempre, talvez exagerasse ao considerar a capacidade de autocrítica europeia assim tão elevada. Ou, pelo menos, talvez se referisse a uma Europa um pouco diferente da actual, uma Europa próspera e optimista, onde as razões para medos e nacionalismos estavam historicamente baixas. Seja como for, se, ao pensar em «Europa», Kapuscinski incluía Portugal, então enganava-se redondamente. Sempre encaixámos mal as críticas e raramente fazemos autocrítica (dizer que as coisas estão mal, como se fosse apenas culpa alheia, não é autocrítica). Talvez a nossa ligação a África (se aceitarmos – e poucas pessoas sabiam tanto sobre África como Kapuscinski – que os africanos também são assim) tenha algo a ver com o assunto. Ou talvez nos seja inato. Seja como for, nos últimos anos esta característica agravou-se. Viu-se reforçada por um Primeiro-Ministro que encara as críticas como ofensas pessoais (ainda por cima, julgando-se um líder insuperável, toma-as como ataques ao país) e é totalmente incapaz de admitir erros. Perante o aplauso de muitos, que lhe elogiaram e ainda elogiam as tácticas, Sócrates reforçou a nossa incapacidade para a autocrítica, a ideia que temos de que reconhecer enganos é sinal de fraqueza. Ao fazê-lo, tornou-nos menos evoluídos, menos disponíveis para aprender e melhorar. Esperemos que não o suficiente para estarmos já incapazes de o perceber.
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