como sobreviver submerso.

Segunda-feira, 3 de Agosto de 2009
Pleonasmo translinguístico

Os espanhóis de Puebla de Sanabria, povoação muito merecedora de uma visita situada mesmo junto ao cantinho superior direito de Portugal (perto de Rio de Onor e do Parque Natural de Montesinho), chamaram "Rua" à rua principal que sai da inevitável e florida Plaza Mayor. Ou seja, calle Rua (ou talvez calle de la  Rua). Acho simpático. Pergunto-me se teremos em Portugal alguma rua da Calle.



publicado por José António Abreu às 18:49
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Quinta-feira, 2 de Julho de 2009
Batota

Caminho na quase escuridão das arcadas da Ribeira quando vejo um miúdo em contraluz e de costas para mim saltar para uma bola. Falha a intercepção. A bola passa-lhe por cima, cai nas pedras da calçada e rebola até parar contra a parede, meia dúzia de metros à minha frente. Avanço. Com um chuto devolvo-a ao guarda-redes. Ele pontapeia-a para o largo, para outro miúdo que se encontra perto das primeiras mesas. Depois prepara-se para tentar novamente a defesa. Ergo a máquina e tiro um par de fotos enquanto a bola vem pelo ar. Apercebo-me que a velocidade de obturação é demasiado baixa para que fiquem nítidas. Baixo a máquina e lanço novamente a bola para o primeiro miúdo, que voltou a não conseguir defender. Este chuta para o outro, que a pára sem dificuldade. Recua e prepara-se para rematar de novo. Reparo que veste calções num tom de verde parecido com o das cadeiras que se encontram amontoadas junto à parede da direita. Ergo a máquina. Ele hesita. Uma expressão de resolução surge-lhe na face. Grita-me: «Senhor, cuidado com a máquina.» Não me mexo. Ele grita de novo. Gesticulo para que esteja à vontade. A expressão dele endurece. Recua mais um passo e depois avança para a bola e pontapeia-a com força. A bola descreve um arco, passa por cima do guarda-redes cujo salto foi mais uma vez tardio, e vem na minha direcção. Tiro uma única fotografia e baixo a máquina à pressa. A bola cai mesmo à minha frente. Sem dificuldade, paro-a debaixo do pé direito. A expressão do rematador passa a espanto. Eu também estou surpreendido mas tento manter-me impassível. Devolvo a bola pela terceira vez mas agora sigo atrás dela. Não vou arriscar outro chuto. Quando passo pelo miúdo, ele olha-me com respeito. Reprimo a vontade de sorrir e sigo em direcção à beira-rio.

 
Ele não sabe mas fiz batota. Receoso, disparei demasiado cedo e estraguei a fotografia (ficaria muito melhor com a bola maior e mais perto da câmara). Mas, de momento, uma foto perdida parece-me um preço baixo a pagar pela satisfação infantil que sinto.

(Mais tarde, admito que provavelmente ele também teve medo de se meter em sarilhos e chutou com menos força do que planeara inicialmente. Mesmo assim foi uma bela recepção.)



publicado por José António Abreu às 08:42
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Quinta-feira, 7 de Maio de 2009
Lembrete.

«Olhe, tire mas é fotografias à minha casa, para ver se me dão outra.»

A senhora tem sessenta e tal anos, talvez mais, é pequenina, tem pele e cabelo enrugados, e não usou um tom agressivo. Antes um misto de desencanto e mordacidade. Traz com ela uma miúda de sete ou oito anos, vestida com saia azul e blusa e meias cor-de-laranja. Os olhos chamam-me imediatamente a atenção. São enormes e redondos, entre o espanto e a curiosidade.
Parei na rua estreita, máquina fotográfica pendurada do pescoço. Sorrio. «É aqui a sua casa?» pergunto.
«É a do primeiro andar», diz, imobilizando-se à minha frente. «Chove lá dentro e não se aguenta com o frio. Está a ver os buracos na parede? Dão mesmo para o meu quarto. À noite é um frio que não se aguenta.»
Vejo os buracos na parede, nas juntas entre as pedras. Ela conta-me que a senhoria morreu há cerca de um ano e que, desde então, por desinteresse e dificuldades económicas da herdeira, a casa se tem degradado. Que já foi à Câmara e que uns senhores da Câmara vieram a casa dela e mandaram colocar uma janela nova na sala. Mas que nada fizeram acerca dos buracos que estão cada vez maiores. Que gostava que lhe dessem ­uma casa nova. Corrige: dessem não, arrendassem, pois sabe muito bem que teria que pagar uma renda, e superior aos sete euros e meio que paga actualmente. «Há quatro ali em cima, está a ver? as amarelas?, que a Câmara arranjou e estão vazias.»
Enquanto a velha me conta tudo isto, a miúda deambula por perto. Aproxima-se agora. Espreita para a objectiva da máquina fotográfica. Levanto-a ligeiramente para que veja a lente frontal. Digo para a velha: «Já pediu uma casa à Câmara?»
«Pedi quando cá vieram os homens. Mas tenho que ir à Câmara outra vez. Já me disseram onde é que é preciso ir.»
A miúda continua a tentar espreitar o interior da máquina através da objectiva. Sorrio. Levanto a câmara. «Queres ver?» Mostro-lha. Um pombo caminha pelas pedras do chão. Tiro-lhe uma foto, sem me preocupar com a focagem ou com a velocidade de obturação. Deixo a miúda vê-la no ecrã da máquina. Sei que está tremida mas no ecrã parece razoável. Para a miúda, a velha diz qualquer coisa como «Estás a ver? O pombo aparece ali…» Ergo novamente a máquina. Digo: «Deixas-me tirar-te uma?» Os olhos da miúda tornam-se ainda maiores. Faz pose. Tiro-lhe duas fotos em rápida sucessão. Prometo: «Daqui a uns dias trago-ta.» A velha agradece. Diz: «Pode deixá-la aqui em casa e eu nessa altura já lhe conto o que me disseram na Câmara.» Faço que sim com a cabeça, despeço-me depois de desejar que tudo corra pelo melhor e afasto-me.
 

Estou em falta. Já passou um mês e ainda não fui lá levar a foto.

 

    



publicado por José António Abreu às 08:26
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