Eu devia ter uns três anos quando vi a Madame Rosa pela primeira vez. Antes disso, não temos memória e vivemos na ignorância. Parei de ignorar com três ou quatro anos e, às vezes, sinto falta disso.
Em casa, empanturrou-se com calmantes e passou a tarde a tarde a olhar em frente, com um sorriso feliz porque não sentia nada. Nunca me chegou a dar nenhum calmante. Era uma mulher excepcional e posso dar-vos já um exemplo disso. Pensem por exemplo na Madame Sophie, que tem uma casa clandestina para filhos de puta na rue Surcouf, ou aquela a quem chamam a Condessa porque é viúva do Senhor Conde, em Barbés, ora bem, essa senhoras chegam a aceitar dez miúdos ao dia, e a primeira coisa que fazem é empanturrá-los com calmantes. A Madame Rosa sabia isso de fonte segura, por uma portuguesa africana que se defendia no bairro da Truanderie, e que retirara o filho da casa da Condessa num tal estado de calma que não se aguentava de pé, porque estava sempre a cair. Quando o punham de pé, o rapaz caía e voltava a cair e podia-se brincar assim com ele durante horas. Mas a Madame Rosa não era nada assim. Quando ficávamos agitados ou quando havia miúdos ao dia que estavam seriamente perturbados, porque há disso, era ela que se empanturrava com calmantes.
«És um bom, rapaz, Momo, mas tenta ficar quietinho. Ajuda-me. Estou velha e doente. Desde que saí de Auschwitz, só tive problemas.»
Aproveitei-me também do nosso Banania para surripiar nas lojas. Deixava-o sozinho com o seu sorriso para que desarmasse, e as pessoas juntavam-se à volta dele, graças aos sentimentos comovidos e enternecedores que ele suscitava. Quando têm quatro ou cinco anos, os negros são muito bem tolerados.
Causei-me uma verdadeira sensação, com este cão. Comecei a gostar dele que nem fazem ideia. Os outros também, à excepção talvez do Banania, que se estava completamente a borrifar, já era feliz assim, sem razão, nunca vi até hoje um negro feliz com razão.
Era difícil encontrar uma enfermeira suficientemente nova para subir os seis andares e nenhuma era económica como queríamos. Desenrasquei-me com O Mahoute, que se injectava na legalidade porque tinha diabetes e o seu estado de saúde lho permitia. Era um gajo muito porreiro que tinha vingado sozinho, mas que era principalmente negro e argelino. Vendia rádios e outros frutos do roubo, e o resto do tempo tentava desintoxicar-se em Marmottan, onde tinha acesso livre. Veio dar a injecção à Madame Rosa, mas só por pouco não correu mal porque se tinha enganado no frasco e enfiou no cu da Madame Rosa o quinhão de heroína que tinha guardado para o dia em que acabaria a desintoxicação.
Tudo isso são histórias de miúdos que não se fizeram abortar a tempo e que não eram necessários.
Romain Gary (Émile Ajar), Uma Vida à sua Frente.
Edição Sextante, tradução de Joana Cabral.
Em 1956, Romain Gary ganhou o Goncourt com Les Racines du Ciel. Segundo as regras do prémio, não poderia vencer novamente. Em 1975, o Goncourt foi atribuído a Émile Ajar, por La Vie devant Soi. Ajar fez saber que recusava. O júri respondeu: «O Goncourt é como a vida e como a morte: não se aceita nem se recusa. Émile Ajar é, não obstante, o laureado.» Desta forma, Romain Gary, também Émile Ajar (o facto apenas se tornou conhecido depois da sua morte, por suicídio, em 1980), tornou-se o único autor a ter vencido o Goncourt duas vezes. Momo, o miúdo que cresce quatro anos num único dia por razões inteiramente lógicas, que não está ainda restringido pelas regras do politicamente correcto e se permite assim ver muitas vezes o mundo com os olhos mas sem a hipocrisia dos adultos que o rodeiam, que encara com ferocidade e desespero a decadência e morte da única pessoa que sente amá-lo verdadeiramente, que vive num mundo em que ser esperto o bastante para quebrar as regras sem ser apanhado é algo digno de admiração, teria provavelmente achado piada.
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