como sobreviver submerso.

Sexta-feira, 15 de Julho de 2011
Notas de viagem (5/5: Roma)

Com a imagem de um homem utilizando um velho Fiat Seicento como se fosse uma scooter numa auto-estrada entupida de veículos ainda fresca na cabeça, faço questão de entregar o automóvel na Hertz imediatamente após entrar na cidade. Enquanto arrasto a mala pelas ruas constato que poucos passeios têm rampas e que a cor dos semáforos é apenas uma sugestão de comportamento. Ainda não o sei mas esta primeira e nada original imagem de Roma vai marcar tudo o resto.

Roma é um caldeirão de contradições. Essencial na evolução política e cultural do ser humano, está em relação ao seu passado um pouco como Portugal em relação aos Descobrimentos: não se percebe bem como pôde atingir tais alturas. Ou talvez perceba mas a explicação não é simpática: tanto no período Clássico como no Renascimento, quase tudo passou pela decisão de meia dúzia de indivíduos com demasiado poder. Mais do que o povo «comum», mais do que os artistas e/ou os teóricos do pensamento, terão sido os humores, as preferências, as crenças e as invejas de líderes muito pouco escrutinados a empurrar Roma (como, nos séculos antes do e durante o Renascimento, também Florença e Veneza) para a glória. É aliás curioso pensar que, enquanto turistas, admiramos hoje um pouco por todo o mundo os efeitos da autocracia política e religiosa. (Não que ela seja indispensável: mesmo em democracia, e porque as arenas para lutas de gladiadores são agora de outro tipo, é sempre possível construir estádios de futebol.)

Mas a aparente dissonância entre as capacidades dos romanos actuais e a obra dos seus antecessores não é a única contradição em Roma. Há outra, mais prosaica: sendo uma cidade com tantos pontos de interesse e tão voltada para o turismo, a que se chega com as imagens de Audrey Hepburn e Gregory Peck andando de scooter em torno do Coliseu e de Anita Ekberg tomando banho na Fontana di Trevi, é também uma cidade que se sente estar farta de visitantes. Ao contrário do que afirmam os guias de viagem, quase não há jardins ou parques; para descansar, os turistas sentam-se na beira dos passeios e em qualquer degrau da Scalinata di Spagna que se encontre à sombra. Apesar da quantidade de visitantes, não há casas de banho públicas e os restaurantes limitam o acesso às suas a clientes; para urinar, muitas mulheres e alguns homens (é sempre mais complicado para as mulheres) fazem fila junto às casas de banho dos McDonald’s. Não se estando à espera de perfeição na organização e limpeza, as tendas no Campo di Fiori são tão numerosas que é impossível ter uma visão adequada da praça; Giordano Bruno parece perdido no alto do pedestal, olhando para a face superior dos toldos. Roma é uma cidade que se sujeita ao turismo (entraria em colapso sem ele) mas que recusa preocupar-se com o bem-estar dos turistas. E se isso por um lado é bom (o visitante não se sente num cenário erguido em sua homenagem), por outro é com frequência exasperante. Mas há mais: se conseguirmos esquecer o peso da História (nada fácil, é verdade) e apesar de todas as igrejas, praças e monumentos, em poucas zonas Roma é verdadeiramente bonita. Pelo menos não no sentido em que capitais europeias como Paris, Viena, Amesterdão ou Lisboa o são.

Talvez o exemplo mais flagrante de como certas experiências potencialmente sublimes são arruinadas pelo excesso de turismo, que não é culpa dos romanos, e pela falta de organização, que é, seja a visita aos Museus do Vaticano. As salas de Raffaello são magníficas (por uma qualquer razão obscura, atrai-me particularmente a aula prática de

Euclides no fresco A Escola de Atenas.) Há na Pinoteca obras de Caravaggio e Da Vinci. A galeria dos mapas é simultaneamente grandiosa e delicada. Porém, a existência da Capela Sistina e o percurso necessário para a atingir transformam o interior dos museus num gigantesco mal-entendido. O exemplo mais notório talvez ocorra nas salas imediatamente antes da capela, onde se encontram expostas obras de artistas ‘modernos’ como Van Gogh, Chagall, Gauguin, Kandinsky, Dali e Bacon. As pessoas passam aos magotes, atiram um olhar rápido às paredes mas, com raras excepções, nem sequer abrandam no percurso entre a porta de entrada e a de saída. Podem existir não sei quantos quilómetros de galerias nos Museus do Vaticano mas tudo o que a maioria dos visitantes deseja ver é a Capela Sistina. Que, aliás, é uma maldição para ela mesma (é impossível apreciá-la condignamente quando nos sentimos um cordeiro tentando manter a cabeça erguida no meio de um rebanho em movimento) e para o resto dos museus (como apreciar a galeria dos mapas, por exemplo, se não se pode deambular calmamente de uma pintura para outra sem ser arrastado pela massa de gente a caminho da porta de saída?) Deveria ser arranjada uma entrada directa para a capela ou então (como na Galleria Borghese) limitar-se o número de admissões. Poupar-se-ia muita exasperação a quem deseja apreciar outras áreas e facilitar-se-ia a vida àqueles que apenas pretendem, regressados a casa, poder afirmar terem estado no interior da Capela Sistina. Nem Michelangelo, nem Rafaello, nem Caravaggio, nem Pinturicchio (que decorou os aposentos Bórgia), nem Van Gogh nem dezenas de outros merecem ter as obras apreciadas por gente exasperada.

Mas também é nesta aparente indiferença pela lógica que se encontra muito do melhor de Roma. Na igreja de Santa Maria della Vittoria estão cinco ou seis turistas e eu quase lanço os braços ao ar e grito «milagre». Depois penso que, a ser, será ligeiramente profano. O meu principal objectivo ao visitar a igreja é ver O Êxtase de Santa Teresa, de Bernini. E a questão surge, inevitável: como diabo (perdão, «diabo» não – ou, se calhar, sim) alguém autorizou que se colocasse uma obra destas no interior de uma igreja? Para mais, em meados do século XVII? Eu sei que, dois séculos antes, já houvera o David de Donatello e que entre David e Santa Teresa existiram outros casos, entre os quais a miríade de referências aos deuses «pagãos» da Grécia e Roma clássicas a que o Renascimento deu origem. Mas este é um caso especial. Está numa igreja e, por muitas interpretações politicamente correctas que se tentem, por muito que esteja de acordo com os escritos da própria Santa Teresa de Ávila, segundo os quais foi uma noite visitada por um anjo que a trespassou com uma flecha, levando-a a mergulhar num êxtase de dor e prazer, por muito boa vontade que Bernini garantisse junto do clero do século XVII (apesar do papa da altura ter prescindido dos seus serviços), por muito que alguns estudiosos defendam que Bernini não o via como tal, como foi possível ignorar que isto é um orgasmo? Não pode ter sido. Pelo que só encontro duas explicações. Se, como Woody Allen afirmou, masturbação é fazer amor com a pessoa de quem mais gostamos, um orgasmo espontâneo, ocorrido durante o sono, só pode ser fazer amor com Deus. E ainda que, ao contrário do que sucedia com os tais deuses clássicos, o Deus cristão não seja conhecido por se permitir contactos com os humanos, talvez os papas e os cardeais do século XVI Lhe percebessem as necessidades melhor do que nós pensamos. Melhor do que nós, na realidade. Ou então – segunda hipótese – limitaram-se a esconder um sorriso e a encolher os ombros. Quando em Roma sê romano não passa afinal de um conselho para adaptar as regras às conveniências e aceitar todas as contradições.

(Releio este texto e ele parece-me longo, desconexo, contraditório. Deve estar pronto.)


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publicado por José António Abreu às 23:48
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