A fé na qual me educaram foi-se esvaindo na racionalidade (na minha racionalidade) e na indiferença (não acredito mas, acima de tudo, não penso no assunto). Ainda assim, incomoda-me o carácter cada vez mais laico do Natal. Incomodam-me os esforços que se fazem para extrair dele a religião, alegando respeitos para com quem não deveria ter motivos para se sentir desrespeitado: a matriz de um país - feita também da religião que, mal e bem, o foi construindo - não deveria agredir quando celebrada, apenas quando imposta. A substituição progressiva mas inexorável do Menino Jesus pelo Pai Natal (e eu acho piada à figura acolhedora e transbordante de bonomia do Pai Natal), o frenesi consumista, a repetição anual de reportagens televisivas ocas, os actos formais de prazer duvidoso (os presentes que se compram porque tem de ser, os sublimes jantares de empresa), as manifestações de cariz turístico-comercial que se tornam lugar de semi-indiferente peregrinação (quantas vilas-Natal há hoje em dia?), parecem-me tentativas desesperadas para encontrar um sentido para a quadra, fora daquele que ela possui há séculos. Tentativas inglórias, como seria de esperar: cada vez mais as pessoas julgam pueris os seus esforços e se sentem mais isoladas.
Expurgamos a religião do Natal, esquecendo (ou ignorando) que quase todas as nossas celebrações estão ligadas a ela: a Páscoa, os dias de Todos-os-Santos e de Finados, até esse momento de origem pagã, o Carnaval, último excesso antes da Quaresma. E, na verdade, é melhor quando assim ocorre. Os feriados religiosos têm uma densidade, um peso histórico, social, identitário, que nenhum dos restantes consegue atingir, ainda que pretendam celebrar o país (25 de Abril, 10 de Junho, 5 de Outubro, 1 de Dezembro) ou direitos conquistados (1 de Maio). Não é preciso celebrar a religião para aceitar que o Natal deve ser celebrado com ela. Basta saber aceitar a história e os valores que formam uma verdadeira comunidade: desde logo, a «inclusão» e a «tolerância» de que tanto se fala. Permitam-me pois que os votos de um ateu (creio) sejam de um Santo Natal para todos.
É claro que hoje em dia a assunção de Nossa Senhora seria imediatamente travada por um míssil Patriot.
É isso tudo, salvo que a razão a que Chesterton submeteu as suas imaginações não era precisamente a razão, mas sim a fé católica, ou seja, um conjunto de imaginações judaicas submetidas a Platão e Aristóteles.
Recordo duas parábolas que se opõem. A primeira consta no primeiro tomo das obras de Kafka. É a história do homem que pede para ser admitido na lei. O guarda da primeira porta diz-lhe que lá dentro há muitas outras e que não há sala que não esteja custodiada por um guarda, cada um mais forte que o anterior. O homem senta-se a esperar. Passam os dias e os anos e o homem morre. Na agonia pergunta: «Será possível que em todos estes anos que estive à espera ninguém tenha querido entrar senão eu?» O guarda responde-lhe: «Ninguém quis entrar porque só para ti estava destinada esta porta. Agora vou fechá-la.» (Kafka comenta esta parábola, complicando-a ainda mais, no capítulo nove d'O Processo.) A outra parábola está no Pilgrim's Progress, de Bunyan. A multidão fita cobiçosa um castelo guardado por muitos guerreiros; na porta está um guarda com um livro para escrever o nome daquele que for digno de entrar. Um homem intrépido aproxima-se desse guarda e diz-lhe: «Anote o meu nome, senhor.» A seguir saca da espada e lança-se sobre os guerreiros e recebe e devolve feridas sangrentas, até abrir caminho por entre o fragor e entrar no castelo.
Chesterton dedicou a sua vida a escrever a segunda das parábolas, mas algo nele propendou sempre para escrever a primeira.
(Obras Completas de Jorge Luís Borges, Vol. II, Editora Teorema (1998), tradução de José Colaço Barreiros.)
Devo confessar que me lembrei deste texto por causa dos últimos dois parágrafos – dos quais, aliás, me lembro frequentemente. Aplicando-se na perfeição à vida de Chesterton, aplicam-se também à da maioria das pessoas, dediquem-se à escrita de romances ou de e-mails, sejam crentes ou agnósticas. Passamos a vida procurando viver (ou procurando convencer-nos de que vivemos) a segunda parábola mas, na verdade, poucos de nós conseguem deixar de viver a primeira. E talvez duas das melhores formas de encaixar a percepção dessa incapacidade passem por aceitar a existência de desígnios superiores, os quais é mais produtivo aceitar do que combater, e por usar o humor, esse excelente método de controlar ilusões e megalomanias. Chesterton usava ambas. Serão mais perigosas (para os outros e para si próprias) as pessoas incapazes de usar qualquer delas.
Jesus ressuscitou mas não ficou cá por baixo.
Um Deus que morre a uma Sexta-Feira e ressuscita a um Domingo pode até ser ideal para os habitantes dos países do Norte da Europa mas é totalmente inadequado para os portugueses.
A única conclusão a que chegara em todo aquele tempo que passara sentado na Basílica de Guadalupe fora que a fé é, certamente, uma realidade psicológica, e que quando não é convidada a fixar-se sobre coisas invisíveis, invade as visíveis e monta uma enorme confusão.
Robertson Davies, O Quinto da Discórdia.
Edição Ahab, tradução de Maria João Freire de Andrade.
A única conclusão a que chegara em todo aquele tempo que passara na basílica de Guadalupe fora que a fé é, certamente, uma realidade psicológica, e que quando não é convidada a fixar-se sobre coisas invisíveis invade as visíveis e monta uma enorme confusão.
Robertson Davies, O Quinto da Discórdia.
Edição Ahab, tradução de Maria João Freire de Andrade.
Todas as nossas religiões, excepto a judaica e a grega, pensam mais em nós mortos do que em nós vivos.
Uma questão que qualquer pessoa – crente ou não – se coloca algumas vezes durante a vida é a clássica: se Deus é bom e omnipotente, por que permite tantas desgraças e actos maldosos? Conheço a teoria do livre arbítrio mas, mesmo assumindo que Deus nos liberta para o bem e para o mal e fica a assistir impávido e sereno a violações, assassinatos e outros actos pouco simpáticos, apenas nos punindo depois da morte, isso não explica os desastres naturais. Sendo todo-poderoso, é Ele que os causa? Ou, mais uma vez, apenas assiste, nada fazendo por não querer ou não poder? Das duas uma: ou Deus é sádico ou afinal é impotente. Nenhuma das hipóteses me parece lisonjeira ou passível de fácil aceitação por parte da Igreja.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets