Quero dizer que ele não a amava? De maneira menhuma. Ele amava-a; de certa forma era-lhe devotado. Mas não conseguia alcançá-la, e sucedia o mesmo do lado dela. Era como se tivessem bebido uma qualquer poção fatal que os manteria afastados para sempre, apesar de viverem na mesma casa, comerem à mesma mesa, dormirem na mesma cama.
Como seria – sentir desejo, ansiar por alguém que está ali mesmo em frente aos olhos, dia após dia? Nunca o saberei.
Margaret Atwood, The Blind Assassin. Tradução minha.
Seria um casamento normal, daqueles que não evoluem para o ódio, apenas para a incapacidade de comunicar, na sequência do desvanecimento dos (ilusórios, de resto) interesses em comum.
No final de Orgulho e Preconceito, depois de aceitar a proposta de casamento de Mr. Darcy, recusada meses antes com base no quão desagradável e orgulhoso ele era, Elizabeth Bennet diz que, em tais casos, ter boa memória é imperdoável. Certíssimo. Todavia, não é apenas antes do casamento que ter boa memória é imperdoável; é-o muito especialmente depois. Aliás, ter boa memória é quase sempre imperdoável.
Um passo mais e teria aceitado a ficção que consiste em pretender que seduzimos quando sabemos que nos impomos.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano
Edição Ulisseia, tradução de Maria Lamas
Yourcenar colocou Adriano a pensar isto antes de dar o tal passo extra. Não deve ser fácil para um imperador saber quando está verdadeiramente a seduzir: quase sempre, os que lhe estão próximos elogiar-lhe-ão o discurso e rir-se-ão com as suas piadas. Mas, seja-se imperador ou simples cidadão, é fácil perceber quando nos impomos. Quando uma conversa se passou a reger pelas conveniências (ou uma relação pela inércia), e o sorriso de quem nos ouve já é forçado. E, no entanto, mesmo percebendo-o, aceitamos quase sempre continuar a fazê-lo, na esperança de que ocorra um milagre e a sedução reapareça. Prejudicamos tudo, e também o sabemos. Mas talvez fosse pior que desistíssemos. Desistir seria (é) remetermo-nos ao silêncio e à solidão. E a verdade é que por vezes exageramos: estamos a seduzir mais e a impormo-nos menos do que pensamos. De resto, mesmo que a nossa percepção esteja certa, os outros, sendo minimamente inteligentes (e, caso contrário, porque estamos a tentar impressioná-los?), contemporizarão. Sabem que com frequência os papéis se invertem. Todas as pessoas, mesmo as mais interessantes, são por vezes chatas.
Quanto aos que aceitam mesmo a ficção de que ainda conseguem seduzir quando, na realidade, se estão a impor, ficam para outra altura; não vale a pena falar de Sócrates neste post.
Citação de uma citação de um comentário meu a um post alheio, seguido de algumas notas sobre as relações entre homens e mulheres que só prejudicam o efeito da referida citação
«(..) um homem quer (...): uma mulher que não teria qualquer dificuldade em sobreviver sem ele mas que seja totalmente incapaz de o fazer.»
Em resposta a um texto da Margarida escrevi na caixa de comentários do Criativemo-nos uma frase que a Margarida, sempre simpática (ou então tenho um inesperado talento para impressionar mulheres que não me conhecem pessoalmente), transformou em post. Qualquer pessoa sensata agradeceria o privilégio e não acrescentaria uma vírgula ao assunto mas, convenhamos, poucas pessoas sensatas mantêm blogues. Vou então estragar o minimalismo da frase acima com umas quantas considerações que, fossem elas apresentadas por qualquer outra pessoa que não eu, consideraria ridículas.
Como a Margarida refere no post dela, a ideia tradicional é que os homens procuram mulheres que lhes permitam sentir-se fortes e protectores. Isso não parece ser verdade hoje em dia. Qualquer homem com três neurónios fica frustrado se uma mulher não tem pelo menos dois. Porquê? Vejamos: antigamente não se pressupunha que as mulheres falassem ou, pelo menos, que dissessem coisas inteligentes. Bastava que possuíssem intelecto suficiente para poderem fazer um ou outro comentário oportuno que realçasse o brilhantismo do que o marido ia dizendo. Hoje, as mulheres não só falam (e algumas falam mesmo muito) como têm opiniões próprias e fazem questão de as exprimir (atitude que antigamente reservavam para espaços como cozinhas e tanques comuns de lavagem de roupa). Mais: a inteligência e independência tornaram-se critérios importantes na escolha dos homens. Não é segredo para ninguém que um homem gosta de ser acompanhado por uma mulher atraente. Gera inveja nos outros homens e deixa as restantes mulheres a pensar (especialmente se ele não parecer irmão gémeo do Brad Pitt) que talentos escondidos possuirá (ou quão recheada será a sua conta bancária*). Em círculos onde a leitura efectuada durante o ano vai para além do jornal A Bola ter uma mulher inteligente, dinâmica, com carreira e opiniões próprias funciona de modo similar. Diz: meus caros, eu tenho capacidade para mantê-la intelectualmente satisfeita. E, como as mulheres inteligentes são suficientemente inteligentes para potenciar os atributos físicos positivos e disfarçar os negativos, uma mulher inteligente é quase sempre uma mulher atraente. O homem tem assim o melhor dos dois mundos.
Só há um problema. Pessoas inteligentes e com elevada auto-estima têm altos níveis de exigência**. Não se contentam com pouco e – se calhar não são assim tão inteligentes – até desejam cada vez mais. Quase inevitavelmente, surgem os atritos e as desilusões. Ora um homem não gosta de ser posto em causa. Pelo que ele, mesmo hoje, não deixa de desejar (confesse-o ou não) um certo nível de dependência emocional por parte da sua bela e inteligente companheira. Sorri, com condescendência e carinho, quando ela o chama para matar uma aranha pateticamente minúscula. Faz peito e retesa os bíceps quando ela lhe pede para abrir um frasco de compota. Sente-se um génio quando ela reconhece a superioridade dele a interpretar mapas. Pensa que a ama quando ela elogia os seus dotes de condução. E é mais feliz quando acredita que ela o ama perdidamente por todas estas qualidades (e, nem deve ser preciso referi-lo, por ser excepcionalmente bom na cama). Daí a frase lá de cima.
Claro que a pergunta seguinte é: pode um homem conseguir uma mulher assim? Como não sou pessoa para estar com rodeios, e por muito que, considerando a complexidade da pergunta, isto vos possa surpreender, vou ser claríssimo: talvez. Não porque a mulher se mantenha eternamente deslumbrada por ele (se até as menos inteligentes e mais carentes acabam por perceber que os homens não merecem tal, por que não o fariam as restantes?). Pode consegui-lo (desde que não cometa erros graves) precisamente por causa da inteligência e auto-confiança dela. Uma mulher inteligente e independente sabe que não precisa do marido. Mas, nos momentos de dúvida, pode perceber que, mesmo não havendo já a paixão de outros tempos (isto da paixão – vai ser uma imagem linda, acreditem – é como um motor de automóvel: não pode manter-se sempre na rotação máxima porque o desgaste rapidamente o faria partir***) e tendo entretanto o companheiro desenvolvido comportamentos tão, mas tão irritantes existem ainda assim muitos motivos para manter a relação. Por exemplo, todos os outros detalhes que sempre a encantaram: a capacidade de a fazer rir; de lhe aquecer os pés na cama; de a apaparicar quando adoentada; de matar aranhas, fingindo uma coragem que, na realidade – foi sempre tão óbvio para ela –, nunca teve. A mulher independente pode, porque se sabe independente, decidir ficar por razões perfeitamente compreensíveis. Por perceber e aceitar que o amor se transforma com o tempo numa coisa mais baseada no carinho do que na paixão, sem que isso seja necessariamente mau (é um bocadinho, vá). Aconselha-se é a não informar o companheiro do processo mental que seguiu. Porque – nunca se esqueçam – para ele é importante acreditar que ela continua ali por necessitar verdadeiramente dele.
A Margarida pergunta-se ainda se serão hoje em dia homens e mulheres assim tão diferentes, uma vez que as mulheres também buscam homens decididos, seguros de si, inteligentes (como, de resto, sempre fizeram). A minha conclusão é a dela: talvez não sejam. Especialmente porque as mulheres não procuram apenas isso: se os homens acrescentaram esses pontos à lista de características a desejar numa mulher, as mulheres acrescentaram a sensibilidade, a preocupação com a aparência, o talento para a cozinha e a disponibilidade para lavar a louça aos predicados a procurar num homem. Ou seja, homens e mulheres esperam actualmente tudo uns dos outros. Alguém ainda se surpreende que seja tão difícil manter uma relação nos dias que correm?
* Antes que me acusem de machismo, isto também funciona ao contrário, quando mulheres pouco atraentes se fazem acompanhar por mancebos com feições, corpos e, muitas vezes, intelecto de Cristiano Ronaldo.
** Se me permitem uma ideia politicamente incorrecta – e que remédio têm vocês – há uma receita que continua a produzir relações razoavelmente funcionais: aquela que une homens pouco inteligentes a mulheres pouco exigentes. Pensem um instante e vão ver que é uma excelente mistura para relações longas, embora – digo eu – pouco satisfatórias.
*** Mas não faz mal nenhum, muito pelo contrário, puxar por ele de vez em quando.
Afirma: não me incomoda que os outros (essa entidade apenas teoricamente abstracta) pensem mal de mim porque dificilmente conseguirão pensar de mim pior do que eu penso deles.
(E, no entanto, tenta ser simpático para toda a gente.)
A minha primeira hipótese foi pessimista: «a solidão entre nós é aí onde estás» porque eu acho que não me movi: continuo aqui, onde antes a solidão não existia. Mas tu, que já aqui estiveste, mudaste de sítio, criando um obstáculo (ou talvez um vácuo) entre nós.
Mas, desconhecendo a canção, posso permitir-me todas as ousadias e descortinar uma hipótese optimista: o meu amor por ti faz-me ter consciência de mim – das minhas fraquezas e incapacidades. A solidão podia então ser o sítio onde estou mas eu sei que não estou sozinho: tu estás comigo. Só que o meu amor (a minha vontade de conseguir que também não estejas só) é de tal ordem, e as minhas incapacidades tão evidentes, que sinto nunca conseguir chegar verdadeiramente aí, onde tu estás. Mesmo sabendo que estás perto.
(Nota: este pode bem ser o meu post mais descabido de sempre, por variadíssimas razões que se tornam irrelevantes perante uma única: o incrível atrevimento de me permitir elaborar sobre um texto do Pedro Mexia. Pedindo desde já as devidas desculpas, em minha defesa apenas posso alegar que os dois parágrafos acima só existem porque o post original me deixou a pensar no assunto.)
Primeiro as pessoas complicadas atraem, depois assustam.Numa relação laboral, poucos chefes gostam de subordinados exigentes e vocais, mesmo quando produzem excelente trabalho. Podem tê-los contratado porque eram os mais inteligentes, mais autónomos e mais inovadores mas, sempre que têm oportunidade, avisam-nos de que não apreciam o modo como apresentam as ideias e a crítica lhes sai tão fácil. Quando os subordinados deixam finalmente de manifestar inconformismo, respiram de alívio e orgulho por terem conseguido criar mais um colaborador de confiança. Mas (a vida é lixada; há sempre um mas), em simultâneo, estranham que a qualidade do trabalho pareça ter diminuído. Alguns chefes (os mais inteligentes) desconfiam ter algo a ver com o assunto. Quase todos, percebendo-o ou não, preferem a paz podre. Os longos silêncios. Os sorrisos falsos. As declarações de circunstância.
Quem diz relação laboral diz relação sentimental. Queremos quase sempre moldar os outros à imagem que nos é mais confortável (com frequência – mas nem sempre – à nossa). Mas a noção de conforto raramente é partilhada e, para mais, o conforto é traiçoeiro: torna-se chato. (É quase sempre uma rotina, mesmo quando inclui actos à primeira vista muito excitantes.) Acabamos a estranhar a falta de chama. Ou, se tivermos sorte, a ruptura.
Os homens são especialistas no não-dito. As mulheres não param de os lembrar (e acusar) disso. Há uma explicação: eles aprenderam há muito que as palavras os metem em tantos sarilhos como o silêncio. Talvez mais. Em especial quando o cansaço da relação já é indisfarçável, todas as palavras parecem erradas. Mas os homens aprenderam que o silêncio é preferível noutros ambientes, não apenas na relação com as mulheres. Na política, a gestão do discurso é essencial. Quem fala muito é pouco ouvido e contradiz-se (ou parece contradizer-se) mais. Sucedem-se os «tabus». Nas empresas, os que dizem o que pensam arriscam a acusação de falta de espírito de equipa enquanto os que mantêm o silêncio são tomados como leais. Os homens são seres simples, com reacções tipicamente pavlovianas. Por isso, como cães a que se ralha, aprenderam a triste arte do refúgio no silêncio. (Mais tarde, precisamente como os cães que, apesar das humilhações, se imaginam lobos, fantasiam tudo o que deviam ter dito.) Diz-se – uma ideia muito masculina – que quem cala, consente. É mentira: quem cala tem medo de discordar ou já não se dá ao trabalho de o fazer.
É sabido mas ainda assim apeteceu-me escrevê-lo, entrando nos territórios do Pedro Lomba, até por discordar parcialmente do que ele escreveu aqui (e que vi primeiro transcrito pela Margarida, aqui). A amizade feminina faz-se de palavras e de troca de informação. As mulheres sabem tudo da vida umas das outras. O que acontece, o que sentem, de quem é a culpa (dos homens, dos filhos, de outras mulheres). A amizade masculina vive tanto de palavras como de silêncios. De cumplicidade que não exige troca de informação. As discussões são sobre futebol, carros e mulheres mas, neste caso, raramente sobre as mulheres com quem são casados. Para os homens, mesmo os bons amigos, as confidências são um embaraço. São algo a enfrentar com um trejeito de compreensão, uma palmada nas costas e frases como «É pá, nem sei o que te diga» ou «Esquece isso, anda experimentar o meu carro novo». Os homens não querem verdadeiramente saber detalhes e não precisam de compreender as razões dos amigos para os apoiarem.
É por isso que considero a frase «desta vez mete-te na vida dele; faz perguntas; as pessoas gostam que lhes façam perguntas» só parcialmente verdadeira. Perguntas sobre os interesses comuns, sim. Toda a gente gosta de falar acerca do que aprecia e gosta de saber que outras pessoas estão interessadas nos mesmos assuntos (e, mais ainda, em ouvi-las). Assuntos íntimos, dolorosos, embaraçosos: os homens preferem não os discutir (ou fazem-no apenas com amigos muito, muito especiais, que a maioria nem sequer tem). Mas uma das vantagens da amizade sobre as relações amorosas é poder fazer-se essa opção.
A mente analítica, direccionada, formalista (por vezes roçando o autismo) dos homens permite-lhes manter, quando se dedicam a escrever sobre emoções, um controlo e uma clareza que, com frequência, faltam às mulheres. Não por acaso, mesmo nas últimas décadas, de maior equilíbrio entre os sexos, há mais grandes escritores do sexo masculino do que do feminino. Sendo homem, gostaria de acrescentar que estou consciente de que a primeira frase é uma generalização (na realidade, três, ou, atendendo ao «com frequência», talvez duas e meia) e de que as generalizações são sempre injustas para alguém (por exemplo, para a Agustina Bessa-Luís, que fez 87 anos no passado dia 15 sem que eu o tivesse assinalado).
Há pessoas com quem não nos apetece estar. Não lhes temos ódio ou qualquer outro sentimento «forte». Há apenas algo que nos retrai e afasta delas. Consideramo-las frívolas, ou tagarelas, ou demasiado carentes. Mas por vezes, depois de, contrariados, termos passado algum tempo com elas (num almoço ou num jantar, num encontro fortuito na rua ou num café, numa reunião familiar) surpreendemo-nos ao chegar à conclusão de que não custou tanto como receávamos e até de que apreciámos aqueles momentos. Reconhecemo-lo com uma vergonha ligeira, pela injustiça que cometemos mas também pela cedência a que somos forçados: não é agradável que pessoas de quem decidíramos não gostar nos mostrem que não tínhamos razões válidas para o fazer. E, por isso, continuamos a não ter vontade de estar com elas.
No filme “Things We Lost in the Fire”, Audrey Burke (interpretada por Halle Berry) recorda o falecido marido dizendo “I miss the silliness”. Talvez por força de ilusões teatrais, literárias ou cinematográficas, associamos com frequência o amor à paixão, à transcendência, à angústia. Como a Tereza do Kundera, temos tendência a vê-lo como algo pesado. É menos imediata a associação a momentos de riso e inconsequência. Mas – como, no fundo, todos sabemos – muitos dos momentos mais marcantes de uma relação (sexo à parte, ou nem isso), provavelmente os mais importantes para que ela permaneça coesa, são os que, analisados friamente, parecem apenas ridículos. São aqueles que não se contam ou apenas se contam a bons amigos. São aqueles cuja lembrança força um sorriso, mesmo que o momento não o aconselhe. São, como dizia a destroçada Audrey (sorrindo apesar do desespero, ao recordar-lhes a leveza), os momentos de tontice.