como sobreviver submerso.

Domingo, 29 de Maio de 2011
Prosas Apátridas - o livro, o blogue e o livro do blogue

Julio Ramón Ribeyro nasceu em Lima, no Peru, em 1929. Estudou letras e direito mas abandonou direito no último ano do curso, depois de começar a escrever. Viajou pela Europa durante a década de 50, desempenhando tarefas tão variadas como porteiro e vendedor de produtos de impressão. Voltou ao Peru em 1958 mas em 1960 fixou-se em Paris, onde trabalhou como tradutor e redactor da France Press. Foi adido cultural e embaixador peruano junto da UNESCO e regressou ao Peru de forma definitiva apenas em 1993. Menos famoso do que outros autores latino-americanos surgidos no terceiro quartel do século XX (por exemplo, o seu conterrâneo Vargas Llosa), é ainda assim reconhecido como um dos principais nomes das letras peruanas, tendo recebido em 1994, poucos dias antes de falecer, o prémio Juan Rulfo. Escreveu maioritariamente contos mas Prosas Apátridas, editado agora em Portugal pela Ahab, não é bem um livro de contos. São duzentos textos numerados, quase todos bastante curtos, que incluem aforismos, divagações e análises de acontecimentos e atitudes observados nos sítios mais variados. Por exemplo, no número 57 pode ler-se: As únicas pessoas civilizadas da praia de Albufeira são estes campónios que às vezes descem das suas quintas de figueiras e amendoeiras, trajados de negro sob um sol abrasador, com a sua estranha maneira de usar o chapéu, muito descaído sobre os olhos e levantado na nuca, e que ficam a apreciar em silêncio, um tanto espantados, mas com dignidade e indulgência e sabedoria, os turistas que, disfarçados de rãs, esfolados vivos na soalheira, embrulhados nas suas toalhas, lubrificados como armas de fogo, desembarcaram de veículos rolantes vindos do Norte e agora rebolam alegremente na areia, lendo Die Welt, The Times, Le Monde e introduzindo, sem se aperceberem, nesse espaço belíssimo, os primeiros sinais da barbárie. Isto terá sido escrito na década de setenta do século passado e serviu-me de grande conforto. Primeiro, porque corpos «lubrificados como armas de fogo» é uma imagem que ficará comigo para sempre e que me fará olhar de outra forma para praias sobrelotadas já nos próximos meses. Depois, porque o texto demonstra que a degradação do Algarve como, decerto, todas as restantes degradações portuguesas, foi afinal culpa de estrangeiros (atente-se, logo à cabeça, na referência aos alemães – e aos alemães conservadores, ainda por cima – através do Die Welt). Tivessem os estrangeiros ficado a tomar banho no Báltico ou no Canal da Mancha, o Algarve ainda seria um paraíso e nós continuaríamos, cheios de estilo, a usar roupa preta e chapéus tombados sobre os olhos.

 

Mas voltemos ao livro. O facto de ser constituído por textos curtos, sempre maravilhosamente escritos, refira-se, é uma das suas forças (lê-se com grande facilidade e despoleta sorrisos, trejeitos e murmúrios regulares) mas permite a ocasional sensação de insubstancialidade. No fundo, Prosas Apátridas é um blogue avant la lettre, como José Mário Silva salientou aqui. Ou melhor: Prosas Apátridas é como o livro extraído de um blogue – objecto de utilidade duvidosa mas muito comum hoje em dia – só que, neste caso, o blogue nunca existiu. E esta circunstância, para além de tornar inesperadamente difícil responder à até agora nada polémica questão: «Quem nasceu primeiro: o blogue ou o livro do blogue?», suscita a possibilidade de Prosas Apátridas, o livro, ser um objecto indefinido e incompleto, uma entidade cuja essência  não é clara. Matutava eu nesta inesperada questão existencialista que desconheço se Sartre ou Camus alguma vez abordaram (como noutros objectos de fabrico artificial, precede a essência dos livros a sua existência ou estaremos perante objectos tão humanos que as coisas funcionam exactamente ao contrário?) quando, numa hiperligação fulminante, me surgiu uma ideia fantástica, passe a rara imodéstia, que permitiria resolver o problema e só não coloquei de imediato em prática por medo de vir a receber uma carta dos advogados da Ahab (nem sempre os editores de livros percebem as intenções de um artista buscando o sentido total de uma obra). Mas posso contá-la, até para que alguém mais corajoso do que eu a aproveite. Trata-se de dar início a um blogue chamado Prosas Apátridas, o qual teria exactamente duzentos posts, publicados ao ritmo de um por dia. Isso mesmo: os duzentos posts deste livro-de-blogue-sem-blogue, desvendados durante os próximos duzentos dias. Mas não se deveria ficar por aqui ou o exercício confinar-se-ia a um gesto vácuo e vacuidade é algo que, estou certo, todos detestamos (sim, mesmo quem leu até este ponto). Considerando que a intenção seria completar o livro, criando a posteriori (por não ter existido a priori) um blogue com tudo aquilo a que ele não consegue chegar (a flexibilidade e a interactividade permitidas pela internet e interditas ao papel impresso), o blogue Prosas Apátridas incluiria imagens e vídeos (ah, o material que se poderia obter para ilustrar os corpos «lubrificados como armas de fogo»), hiperligações (vá, cliquem na capa do segundo livro, infelizmente esgotado há muito) e comentários (sorrio ao pensar na espontaneidade e elegância das reacções a nacos de prosa como o texto número 57 transcrito acima ou o número 77, acerca dos hábitos dos machos mediterrânicos que, frustrados de apenas conseguirem roçar-se em mulheres atraentes nos autocarros e no metro, se masturbam como «orangotangos enjaulados»). E talvez Prosas Apátridas, o blogue, pudesse depois ser editado em livro, dando origem a um verdadeiro livro de blogue – cumprindo a visão que Ramón Ribeyro certamente teria tido se há trinta anos já existissem blogues e unindo existência e essência num único volume compacto. Para evitar confusões e marcar a diferença, o novo livro poderia receber o título Prosas Apátridas v2.0. Maior e melhor do que o original, ainda que sem uma única ideia nova, como qualquer sequela que se preze. Que tal, Ahab, vamos a isto?
 

Julio Ramón Ribeyro, Prosas Apátridas.

Edição Ahab (2011), tradução de Tiago Szabo.



publicado por José António Abreu às 16:09
link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito

dentro do escafandro.
pesquisar
 
Janeiro 2019
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
18
19

20
21
22
23
24
25
26

27
28
29
30
31


à tona

Prosas Apátridas - o livr...

reservas de oxigénio
tags

actualidade

antónio costa

blogues

cães e gatos

cinema

crise

das formas e cores

desporto

diário semifictício

divagações

douro

economia

eleições

empresas

europa

ficção

fotografia

fotos

governo

grécia

homens

humor

imagens pelas ruas

literatura

livros

metafísica do ciberespaço

mulheres

música

música recente

notícias

paisagens bucólicas

política

porto

portugal

ps

sócrates

televisão

viagens

vida

vídeos

todas as tags

favoritos

(2) Personagens de Romanc...

O avençado mental

Uma cripta em Praga

Escada rolante, elevador,...

Bisontes

Furgoneta

Trovoadas

A minha paixão por uma se...

Amor e malas de senhora

O orgasmo lírico

condutas submersas
subscrever feeds