Julio Ramón Ribeyro nasceu em Lima, no Peru, em 1929. Estudou letras e direito mas abandonou direito no último ano do curso, depois de começar a escrever. Viajou pela Europa durante a década de 50, desempenhando tarefas tão variadas como porteiro e vendedor de produtos de impressão. Voltou ao Peru em 1958 mas em 1960 fixou-se em Paris, onde trabalhou como tradutor e redactor da France Press. Foi adido cultural e embaixador peruano junto da UNESCO e regressou ao Peru de forma definitiva apenas em 1993. Menos famoso do que outros autores latino-americanos surgidos no terceiro quartel do século XX (por exemplo, o seu conterrâneo Vargas Llosa), é ainda assim reconhecido como um dos principais nomes das letras peruanas, tendo recebido em 1994, poucos dias antes de falecer, o prémio Juan Rulfo. Escreveu maioritariamente contos mas Prosas Apátridas, editado agora em Portugal pela Ahab, não é bem um livro de contos. São duzentos textos numerados, quase todos bastante curtos, que incluem aforismos, divagações e análises de acontecimentos e atitudes observados nos sítios mais variados. Por exemplo, no número 57 pode ler-se: As únicas pessoas civilizadas da praia de Albufeira são estes campónios que às vezes descem das suas quintas de figueiras e amendoeiras, trajados de negro sob um sol abrasador, com a sua estranha maneira de usar o chapéu, muito descaído sobre os olhos e levantado na nuca, e que ficam a apreciar em silêncio, um tanto espantados, mas com dignidade e indulgência e sabedoria, os turistas que, disfarçados de rãs, esfolados vivos na soalheira, embrulhados nas suas toalhas, lubrificados como armas de fogo, desembarcaram de veículos rolantes vindos do Norte e agora rebolam alegremente na areia, lendo Die Welt, The Times, Le Monde e introduzindo, sem se aperceberem, nesse espaço belíssimo, os primeiros sinais da barbárie. Isto terá sido escrito na década de setenta do século passado e serviu-me de grande conforto. Primeiro, porque corpos «lubrificados como armas de fogo» é uma imagem que ficará comigo para sempre e que me fará olhar de outra forma para praias sobrelotadas já nos próximos meses. Depois, porque o texto demonstra que a degradação do Algarve como, decerto, todas as restantes degradações portuguesas, foi afinal culpa de estrangeiros (atente-se, logo à cabeça, na referência aos alemães – e aos alemães conservadores, ainda por cima – através do Die Welt). Tivessem os estrangeiros ficado a tomar banho no Báltico ou no Canal da Mancha, o Algarve ainda seria um paraíso e nós continuaríamos, cheios de estilo, a usar roupa preta e chapéus tombados sobre os olhos.
Mas voltemos ao livro. O facto de ser constituído por textos curtos, sempre maravilhosamente escritos, refira-se, é uma das suas forças (lê-se com grande facilidade e despoleta sorrisos, trejeitos e murmúrios regulares) mas permite a ocasional sensação de insubstancialidade. No fundo,
Prosas Apátridas é um blogue
avant la lettre, como
José Mário Silva salientou
aqui. Ou melhor:
Prosas Apátridas é como o livro extraído de um blogue – objecto de utilidade duvidosa mas muito comum hoje em dia – só que, neste caso,
o blogue
nunca existiu. E esta circunstância, para além de tornar inesperadamente difícil responder à até agora nada polémica questão: «Quem nasceu primeiro: o blogue ou o livro do blogue?», suscita a possibilidade de
Prosas Apátridas, o livro, ser um objecto indefinido e incompleto, uma entidade cuja essência não é clara. Matutava eu nesta inesperada questão existencialista que desconheço se Sartre ou Camus alguma vez abordaram (como noutros objectos de fabrico artificial, precede a essência dos livros a sua existência ou estaremos perante objectos tão humanos que as coisas funcionam exactamente ao contrário?) quando, numa hiperligação fulminante, me surgiu uma ideia fantástica, passe a rara imodéstia, que permitiria resolver o problema e só não coloquei de imediato em prática por medo de vir a receber uma carta dos advogados da Ahab (nem sempre os editores de livros percebem as intenções de um artista buscando o sentido
total de uma obra). Mas posso contá-la, até para que alguém mais corajoso do que eu a aproveite. Trata-se de dar início a um blogue chamado
Prosas Apátridas, o qual teria exactamente duzentos
posts, publicados ao ritmo de um por dia. Isso mesmo: os duzentos
posts deste livro-de-blogue-sem-blogue, desvendados durante os próximos duzentos dias. Mas não se deveria ficar por aqui ou o exercício confinar-se-ia a um gesto vácuo e vacuidade é algo que, estou certo, todos detestamos (sim, mesmo quem leu até este ponto). Considerando que a intenção seria
completar o livro, criando
a posteriori (por não ter existido
a priori) um blogue com tudo aquilo a que ele não consegue chegar (a flexibilidade e a interactividade permitidas pela internet e interditas ao papel impresso), o blogue
Prosas Apátridas incluiria imagens e vídeos (ah, o material que se poderia obter para ilustrar os corpos «lubrificados como armas de fogo»), hiperligações (vá,
cliquem na capa do segundo livro, infelizmente esgotado há muito) e comentários (sorrio ao pensar na espontaneidade e elegância das reacções a nacos de prosa como o texto número 57 transcrito acima ou o número 77, acerca dos hábitos dos machos mediterrânicos que, frustrados de apenas conseguirem roçar-se em mulheres atraentes nos autocarros e no metro, se masturbam como «orangotangos enjaulados»). E talvez
Prosas Apátridas, o blogue, pudesse depois ser editado em livro, dando origem a um verdadeiro livro de blogue – cumprindo a visão que Ramón Ribeyro certamente teria tido se há trinta anos já existissem blogues e unindo existência e essência num único volume compacto. Para evitar confusões e marcar a diferença, o novo livro poderia receber o título
Prosas Apátridas v2.0. Maior e melhor do que o original, ainda que sem uma única ideia nova, como qualquer sequela que se preze. Que tal, Ahab, vamos a isto?