como sobreviver submerso.

Segunda-feira, 3 de Janeiro de 2011
Efeitos da poesia moderna

Por exemplo, se alguém empregasse numa conversa a palavra «caridade», achávamos que era uma espécie de citação frívola, irrelevante ou despropositada do Livro de Sermões. Para falarmos na nossa casa acerca de fazer «caridade», usávamos a expressão «ter bom coração», e uma pessoa caridosa, como se diz numa linguagem espiritual, era simplesmente uma pessoa com «bom coração» ou «boa». A palavra «amor» também nunca se ouvia na nossa casa, excepto se algum bêbado ou uma criada solteira particularmente estúpida vinda do campo se lembrasse de citar alguns versos de um poeta moderno qualquer; e, ainda por cima, o vocabulário desses poemas era de tal maneira indecente que se acontecesse ouvi-los, desciam-nos arrepios gelados pela espinha abaixo, e o meu avô sentar-se-ia sobre as mãos, por vezes inclusivamente lá fora, no muro do jardim, fazendo caretas, encolhendo os ombros e contorcendo-se como se tivesse piolhos, e diria: «Toc, toc!» e «Francamente!». Globalmente, a poesia moderna tinha em nós o mesmo efeito da lona a ser raspada.

Halldór Laxness, Os Peixes Também Sabem Cantar.

Edição Cavalo de Ferro, tradução de Mário Cruz e João Cruz.

 

OK, é tudo circa 1900 mas ainda assim...



publicado por José António Abreu às 20:20
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Domingo, 1 de Novembro de 2009
Dos malefícios da poesia
Neste excerto de 2666 que Henrique Bento Fialho (que diz não acreditar no destino mas escreve como se estivesse a afogar-se nele) colocou no Antologia do Esquecimento, Bolaño refere um dos papéis tradicionais da poesia: estimulante sexual. O uso da lírica nas conquistas amorosas é amplamente referido na história da literatura (talvez de forma excessiva e, amiúde, caricatural mas isso não é muito importante agora). Há quem descubra outras utilizações e detecte outras consequências. Em Os Testamentos Traídos,(1) Kundera escreveu: «Depois de 1948, ao longo dos anos da revolução comunista no meu país natal, compreendi o papel eminente que desempenha a cegueira lírica no tempo do Terror que, para mim, era a época em que “o poeta reinava ao lado do carrasco” (A Vida Não É Aqui). Pensei então em Maiakovski; para a Revolução Russa, o seu génio fora tão indispensável como a polícia de Dzerjinski. Lirismo, liricização, discurso lírico, entusiasmo lírico fazem parte integrante daquilo a que se chama o mundo totalitário; esse mundo não é o gulag; é o gulag cujos muros exteriores estão atapetados de versos e diante dos quais se dança.» Depois de, na juventude, também ter escrito poesia alinhada com o regime comunista, Kundera tentou sempre evitar o entusiasmo (e o sentimentalismo) excessivo. A Vida Não é Aqui, mencionado acima, é todo ele um libelo contra os perigos do lirismo: o jovem poeta Jaromil (um alter-ego de Kundera?), inebriado pela revolução Checa de 1948 (em grande medida, por influência de poetas e pintores vanguardistas), tem atitudes (p. ex., forçar a namorada a denunciar o irmão que tenciona fugir do país) para as quais arranja justificações que só fazem sentido à luz desse inebriamento. Para Kundera, não há compromissos no lirismo. Como Jaromil explica à namorada: «O amor quer dizer tudo ou nada. O amor é total ou não é amor. Eu estou deste lado e ele está do outro. Tu tens de estar comigo e não num sítio qualquer a meio caminho entre nós.»(2) Noutro ponto do livro, Kundera escreve: «A poesia é um território onde toda a afirmação se torna verdade. O poeta disse ontem: a vida é inútil como uma lágrima, hoje diz: a vida é alegre como riso, e tem razão nos dois casos. Diz hoje: tudo acaba e se afunda no silêncio, dirá amanhã: nada acaba e tudo ressoa eternamente, ambas as coisas são verdade. O poeta não precisa de provar nada; a única prova reside na intensidade da sua emoção.»
 
Com a sua tendência para a análise e para a racionalidade não é de estranhar que Kundera se tenha afastado progressivamente do romance (e o romance de Kundera foi desde início – o fabuloso A Brincadeira – um romance analítico, que conquista o leitor pelo poder da revelação e da compreensão) em direcção ao ensaio. Nem que, depois de ver A Insustentável Leveza do Ser adaptado ao cinema (com resultados bastante razoáveis, diga-se), tenha feito um esforço consciente para escrever livros impossíveis de filmar.
 
Como Kundera, Bolaño mergulhou na poesia ainda muito jovem. (Será a juventude crucial para que seja possível alguém apaixonar-se cegamente pela poesia, como parece sê-lo para que se abracem entusiasticamente ideiais revolucionários?) Mas, enquanto Kundera viveu uma ditadura de esquerda, Bolaño fugiu de uma ditadura de direita. E, porque o lirismo e a utopia estão muito mais próximos da esquerda do que da direita, a crença na salvação pela poesia (o que procuram os «realistas viscerais» em Os Detectives Selvagens senão uma forma de substituir a realidade existente, mesquinha e prosaica, por uma nova, nascida da arte e da utopia?) pareceu viver nele durante anos. A poesia enquanto literatura mas também a poesia enquanto revolução política (Bolaño foi Trotskista, tendo mantido contactos com organizações como a Frente Farabundo Martí, de El Salvador). Mas talvez também ele tenha percebido que as consequências do lirismo, do entusiasmo excessivo, podem ser nefastas. Afinal, acabou a escrever prosa, assombrado por visões do Mal e do papel que a Arte desempenha nas suas manifestações.

 

(1) Edições Asa, 1993, tradução de Miguel Serras Pereira.

(2) Edições D. Quixote, 1990 (1ª edição), tradução de Miguel Serras Pereira. 



publicado por José António Abreu às 00:58
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Sexta-feira, 19 de Junho de 2009
Cyrano, gatos e sedução de raparigas

Apenas sei de cor três poemas: um de Fernando Pessoa, um de Miguel Torga, um de W. B. Yeats. Tenho na memória versos de mais uns quantos mas só por sorte conseguiria declamar os poemas a que pertencem do início ao fim sem erros crassos ou bloqueios fatais. Decorei estes três há tantos anos que esqueci a razão por que a minha memória os reteve. Lembro-me apenas de os ler muitas vezes. Talvez me tenha apercebido que quase os sabia de cor e tivesse insistido até que isso fosse verdade. Habitualmente, de nada me serve sabê-los. Hoje em dia não andamos pelas ruas ou pelos gabinetes a declamar poesia e a maioria de nós não é convidada para programas de TV onde, qual Odete Santos declamando Gedeão, tenhamos hipótese de espantar o mundo com os nossos conhecimentos. Espantar ou embaraçar, porque, nos dias que correm, demonstrar cultura de forma gratuita é frequentemente um embaraço. Na maior parte do tempo nem sequer me lembro que os sei de cor. No entanto, há um par de anos descobri que saber três poemas – ou apenas um, desde que o certo – ainda pode ser útil.

 
Foi num daqueles cursos de formação que demoram semanas. Éramos menos de uma dezena de formandos, quase todos com pouco mais de vinte anos. Raramente sinto que tenho a idade que o BI me dá (agora quarenta, na altura trinta e sete ou trinta e oito) mas, quando a companhia são jovens acabados de sair da universidade, ligeiramente assustados com as poucas hipóteses de emprego mas ainda expectantes e quase sem cinismo, é difícil evitar sentir que se está noutra fase da vida. Uma das raparigas presentes era daquelas miúdas sensíveis e desengonçadas que parecem pouco à vontade com a realidade e com o próprio corpo. Os sorrisos começavam e acabavam-lhe abruptamente, os movimentos de mãos e braços nem sempre pareciam coordenados, as demonstrações de espanto, alegria ou tristeza surgiam em mini-explosões mal controladas. Era vegetariana e adorava animais. Gatos, acima de quaisquer outros. Uma tarde, após um intervalo em que os gatos dela haviam sido mais uma vez tema de conversa, escrevi numa folha de papel:
 
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama
 
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gente
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes
 
És feliz porque és assim
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim
Conheço-me e não sou eu.
 
Fernando Pessoa
 
Entreguei-lhe a folha. Leu o poema com uma expressão de espanto crescente. Quando acabou olhou para mim e perguntou: «De onde é que tiraste isto?» Sorri. Apontei para a cabeça. A admiração dela era tão genuína que quase desatei a rir. Como não gosto de parecer o que não sou, disse-lhe: «Só sei mais dois. Calhou este ser sobre gatos.» Não sei se ela acreditou ou se pensou que eu estava apenas a tentar ser modesto. Em qualquer dos casos, acho que me olhou de outra forma durante todo o resto do curso.
 
A crer em peças famosas, houve tempos em que a poesia era essencial para conquistar o coração feminino. Hoje ninguém parece atribuir-lhe essa capacidade. Eu nunca o fizera. Mas, no instante em que vi a reacção da minha jovem colega de formação, nasceram-me dúvidas. Passei a questionar-me se não manterá afinal resquícios desse antigo poder.
 

Já é tarde. Tivesse eu menos vinte anos, faria um esforço para decorar mais alguns poemas…



publicado por José António Abreu às 12:47
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