como sobreviver submerso.

Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010
Pequenas estrelas com luz particularmente bela: Julie Delpy

 

Apercebi-me de que estava a pouco mais de vinte e quatro horas de não cumprir uma promessa feita no último post do ano passado. Como abomino quem não cumpre o que promete e não me apetece entrar em 2011 a detestar-me, não me restou outra via senão alinhavar este post.

  

Era o fim-de-semana a seguir ao Natal de 2009. Duas da manhã da noite de sábado para domingo. (Sei-o porque tomei nota; decidi então escrever este post). Preparava-me para desligar o televisor e ir dormir. No ecrã do televisor, Ethan Hawke, sentado numa livraria de aspecto tradicional, falava com alguma dificuldade do livro que escrevera sobre o encontro de um rapaz americano e de uma rapariga francesa num comboio com paragem em Viena. Não me fui deitar. Fiquei à espera dela. De lado, entre estantes apinhadas de livros, hesitante como se ele (Jesse) pudesse não a reconhecer ou, mais realisticamente, com medo do momento em que ele a reconhecesse. Apesar de conseguir visualizar mentalmente o filme cena a cena (livraria, ruas, café, ruas, parque, bateau-mouche, carrinha, acesso à casa de Céline, encontro com os pais, apartamento de Céline), ou até diálogo a diálogo (correcção: apenas diálogo, uma vez que se trata de um único, fluído apesar da mudança de temas, das hesitações, do que está por trás do que é dito), fiquei mais uma vez a assistir até à lenta dança final ao som de Nina Simone, àquele «I know» que para Jesse é como aprender novamente a respirar.

 

Tudo começou – pelo menos tudo começou para mim, já que falhei os filmes em que ela entrou antes* – com um filho da mãe cheio de talento e de sorte (mesmo tendo morrido aos 53 anos) chamado Krzysztof Kieslowski (àparte totalmente irrelevante: acabei de bater o recorde mundial de tempo mais longo para escrever duas palavras totalizando menos de vinte letras). Kieslowski (como em quase tudo na vida, da segunda vez já é mais fácil, até porque neste caso o copy/paste ajuda) fez uma série de filmes sublimes em que utilizou um trio de actrizes que me fizeram ponderar a mudança de nacionalidade: Iréne Jacob (em A Dupla Vida de Verónique e Trois Coulours: Rouge), Juliette Binoche (em Trois Coulours: Bleu) e Julie Delpy (em Trois Coulours: Blanc). (Acabei por não mudar de nacionalidade porque descobri que, ao contrário das outras duas, Jacob é suíça e não francesa. Arrependo-me? Mais oui, certainement.) Em Blanc, uma jovem Delpy levava um homem a um radical acto de amor. Apesar de ela estar em cena menos tempo do que seria desejável, compreendia-se a sofreguidão do apaixonado: Delpy era luminosa como um sorriso agradecido.

 

E foi-o tanto ou mais em Antes de Amanhecer, de Richard Linklater, um filme de culto para setecentas e oitenta e oito pessoas que o viram no cinema ou em vídeo e três alienígenas que o viram na TV enquanto procuravam decidir a sorte do planeta Terra (o filme levou-os a pouparem-nos durante mais algum tempo). Com Ethan Hawke, Delpy deu corpo à fantasia «e se?» que toda a gente pondera, num momento ou noutro: e se dois desconhecidos, depois de uma troca de olhares, decidissem começar a conversar e, contrariando os planos que tinham, passassem algum tempo juntos, de modo a confirmar ou infirmar a atracção e evitar desse modo terem que remeter aquele encontro para o arquivo das experiências que poderiam ter constituído pontos de viragem na vida? No filme, Jesse e Céline encontram-se num comboio atravessando a Europa. Ele vai sair em Viena para voar de regresso aos Estados Unidos, ela segue até Paris. Para não interromperem a relação de cumplicidade que se começa a desenhar, saem ambos do comboio em Viena e passam uma noite de conversa, deambulação e descoberta. Que a cidade seja Viena é pormenor não negligenciável mas também não é fundamental. A história funcionaria em Londres, Lisboa ou Nova Iorque. Em todas elas (sejamos caridosos para com Lisboa) há parques onde se pode estar deitado na relva olhando as estrelas. Na manhã seguinte, Céline segue para Paris enquanto Jesse fica em Viena à espera da hora do voo. Porque ainda não têm a certeza se aquilo que sentem um pelo outro é para levar a sério, combinam voltar ali, à estação de comboios de Viena, exactamente seis meses mais tarde para ver se o outro lá está.

 

Encontram-se apenas nove anos depois, na livraria de Paris, em Antes do Anoitecer. (Se não viram o filme e querem saber se algum deles foi a Viena, a resposta é «sim». Qual deles e por que é que o outro não foi? Ah, isso não conto.) Estão mais velhos, mais desiludidos, menos disponíveis para acreditar um no outro. Têm vidas próprias, compromissos, responsabilidades. Mas ambos ainda se perguntam “E se?”. O filme, escrito a seis mãos por Delpy, Hawke e Linklater, é uma conversa praticamente em tempo real pelas ruas de Paris. Nada mais. E ainda bem. Como quase sempre, basta o essencial.

 

E bastam estes três filmes. Delpy também participou em Um Lobisomem Americano em Londres e em Os Três Mosqueteiros (era Constance naquela versão em que entravam Charlie Sheen, Kiefer Sutherland e Chris O’Donnell, e em que o nome «D’Artagnan» provocava risadas de cada vez que era pronunciado) mas não vale a pena falar disso. Foi Zoe em Killing Zoe, de Roger Avary. Teve uma participação breve mas explosiva no narcoléptico mas interessante Broken Flowers, de Jim Jarmusch, e outra apenas um pouco mais longa no aceitável The Air I Breathe, de Jieho Lee. E participou, com Hawke (enquanto Céline e Jesse), num curto segmento do peculiar Waking Life, do partner in crime Richard Linklater. Reconhece que podia ter entrado em mais filmes se tivesse sabido jogar segundo as regras de Hollywood: aceitar outros projectos de treta, sorrir, ser simpática para os responsáveis dos estúdios.

 

A verdade é que, sendo atraente, Delpy não é uma beleza estonteante, como a típica estrela de cinema, e também não se comporta como uma. Mostra indícios da idade que tem (quarenta e um feitos há nove dias), dá entrevistas de jeans, toca no pescoço ou nos dentes enquanto pensa no que dizer, ri-se de forma quase explosiva. Há dois tipos de beleza, em actrizes como em quaisquer outras mulheres (e talvez homens): a beleza inacessível, intimidante, alicerçada no aspecto físico e numa pose quase permanente, e a beleza mais humana, a que pode ou não corresponder uma grande beleza física mas a que corresponde sempre uma espontaneidade e uma inteligência que pedem contacto. Delpy é um exemplo perfeito do segundo grupo. Digamos que poucos homens (ou mulheres) imaginarão cruzar-se na rua com Angelina Jolie mas já parece mais possível partilhar acidentalmente um banco de jardim com ela. E encetar uma conversa descontraída e interessante, iluminada pelo aquele fantástico sorriso.

 

 

Que mais? É – diz ela – demasiado independente para suportar relações longas ou sufocantes, mas gosta de neuróticos. Escreve guiões. Realizou um excelente 2 Dias em Paris (acerca do qual Roger Ebert escreveu, exagerando um pouco, in addition to casting her parents, Delpy puts her mark on this film in many other ways: She starred, directed, wrote, edited, co-produced, composed the score and sang a song. When a women takes that many jobs, we slap her down for vanity. When a man does, we call him the new Orson Welles) e um parece que fraquinho A Condessa, baseado na vida de Erszébet Báthory, a condessa que tomava banho em sangue de camponesas virgens. Tem pais actores que fazem de pais dela tanto em Antes do Anoitecer como em 2 Dias em Paris (neste, o pai caminha pelos passeio riscando os carros mal estacionados, que é um impulso que sinto frequentemente). Compõe canções. Editou um disco onde se encontra a pequena valsa que canta a Hawke perto do final de Before Sunset (a canção precedeu o filme) e que inclui também um tema feito a pensar em mim. Ouço-o com frequência, apesar de ser um bocadinho kitsch (mas isso é apenas mais uma prova de que foi escrito comigo em mente). Chama-se Mr. Unhappy. Ou, na deliciosa pronúncia da Julie, Misster Ânápí. «Oui?»

    

 

 

* Détective, de Jean-Luc Godard, e Europa, Europa, de Agnieszka Holland, merecem ser referidos.

 

(A foto veio desta entrevista, feita por alturas do lançamento de 2 Dias em Paris.)


publicado por José António Abreu às 20:22
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Domingo, 18 de Outubro de 2009
Pequenas estrelas com luz particularmente bela: Minnie Driver

Os caracóis. As sardas. A – meu Deus – voz.

 
Em Grosse Point Blank, de 1997 (um daqueles filmes que surgem de nenhures e, sem pedirem autorização mas também sem forçarem, se aninham no cantinho das nossas preferências onde se aconchegam as obras que, não sendo «primas», apreciamos tanto ou mais do que as que o são), as personagens interpretadas por John Cusack e Minnie Driver, ex-colegas de escola e ex-namorados, encontram-se após vários anos sem se verem. Ele é assassino profissional e foi contratado para matar o pai dela mas ela não o sabe (no início, nem ele). A química permanece intacta, não há (muita) mágoa – mas há desconfiança e prazer em brincar com as expectativas (as que cada um tem do outro e as que o espectador tem do filme). A certa altura, ele acompanha-a a casa e, depois de meia dúzia de frases que parecem carregadas de duplo sentido mas que, como sempre nestas situações, têm afinal apenas um, acaba por entrar. Pouco depois está deitado de costas na cama com ela em cima, apoiada nos pés dele, braços abertos, fazendo de avião e rindo (com – meu Deus – aquela voz rouca) ao lembrar os tempos antigos. Como são tão mais interessantes as obras em que os clichés são fintados com a classe do Maradona (o futebolista, não o blogger) no pico de forma. E como ter os actores certos faz a diferença. Olhe-se e ouça-se – meu Deus, ouça-se – Minnie Driver e quão facilmente se percebe que há ali um elemento de off-beatness (é muito possível que a palavra não exista mas isso ainda a torna mais adequada) que é sumamente atractivo. Como se ela estivesse permanentemente à procura de uma piada. Ou da oportunidade para nos (e este “nos” é tão tristemente hipotético) dar um calduço ou pespegar um beijo, consoante o que lhe apetecer no momento.
 
Minnie – cujo nome de baptismo é, na realidade, Amelia – passou os primeiros anos de vida em Barbados. Ficou conhecida pelo papel de namorada de Matt Damon em Good Will Hunting e por pouco mais. Da mesma altura são Grosse Point BlankAn Ideal Husband que, sem ser perfeito, é bastante divertido (baseado em Oscar Wilde, tem ainda Cate Blanchett, Julianne Moore e Rupert Everett). Minnie também canta. Uma pop agradável, que não lhe permitirá ficar na história da música mas que, ainda assim, é melhor do que oitenta e oito vírgula sete por cento do que se ouve nas rádios nacionais (dados de Setembro). É, por isso, ligeiramente irónico que tenha sido dobrada em O Fantasma da Ópera, de Joel Schumacher, que um dia destes, ultrapassando a minha profunda aversão a tudo o que inclua música de Andrew Lloyd Webber, ainda hei-de ver. (Talvez para compensar, deixaram-na cantar o tema do genérico final.) Fez de Minnie Driver num episódio de Absolutely Fabulous. Co-protagonizou a muito razoável série Os Ricos. Devia aparecer mais. O que se passa com os produtores e realizadores de Hollywood? São cegos? E – meu Deus – surdos?
 

Um último pormenor que devia ser irrelevante mas, por qualquer razão, também me parece espectacular: Minnie é filha da amante do pai e não diz quem é o pai do filho que deu à luz em 2008. Far out.

 

(Foto retirada do site dela.)



publicado por José António Abreu às 21:19
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