como sobreviver submerso.

Domingo, 26 de Julho de 2009
Dez minutos

O cão corre até mim. Fico quieto enquanto me cheira os tornozelos. É grande, com traços de Serra da Estrela. Quando ergue a cabeça arrisco uma festa. O pastor grita que ele não morde. Está parado a cerca de vinte metros. Atrás dele, o rebanho espalha-se pelo campo que termina junto à vedação do aeródromo de Seia. Ainda mais atrás, a encosta da Serra.

Acaricio a cabeça do cão durante uns segundos até sentir um par de saliências que desconfio serem carraças, e depois dirijo-me ao pastor. O cão não me segue. Digo boa tarde, ele replica levantando a mão direita quase à altura do boina, a palma virada para mim, num gesto que é uma saudação mas podia também ser um pedido para não me aproximar mais. É novo ou pelo menos não é velho. Veste um blusão almofadado apesar do sol (é verdade que não está muito calor), calça galochas. Apoia-se num cajado pouco mais baixo que ele. Pergunto-lhe se posso tirar fotografias às ovelhas. Sorri enquanto responde, mostrando uma boca onde faltam vários dentes.
«Esteja à vontade.»
Aproximo-me do rebanho. As ovelhas mais próximas não gostam da minha presença e afastam-se. Paro. Hesito. Estou mais longe do que gostaria mas não quero assustá-las. Sei (os meus avós maternos tinham um rebanho de duas dezenas de ovelhas e meia dúzia de cabras) que é importante poderem aproveitar cada momento que passam nas pastagens. E depois não quero desagradar ao pastor que, mesmo não parecendo preocupado, não acharia certamente graça que um desconhecido começasse a assustar-lhe o rebanho. Tiro meia dúzia de fotos, acocorando-me para realçar as ovelhas e apanhar a encosta da serra por trás. Mas sei que estou demasiado longe para obter o resultado que pretendo.
Volto para junto do pastor. Ele diz-me que o rebanho é de um familiar. Que já foi muito maior mas que agora não compensa ter ovelhas. O preço da lã anda muito baixo e não há apoios. Diz-me quanto vale hoje uma daquelas ovelhas e quanto valia «antes». Não fixo os valores. Diz-me depois que ser pastor é uma vida dura. Solitária, sem pausas para descanso porque as ovelhas precisam de comer todos os dias. A partir de certa altura apetece-me ir embora. Desagrada-me senti-lo mas não consigo evitá-lo. Ouço-o por uma questão de educação, já um pouco arrependido de ali ter ido. Mas as queixas dele são mais melancólicas que agressivas e eu não consigo ser brusco para quem se lamenta. (Devia sê-lo, às vezes.) Para mais, ele passa horas sozinho com as ovelhas e com o cão (ainda deitado no local onde me recebeu) todos os dias. Como negar-lhe dez minutos de conversa?

Finalmente aproveito uma pausa e despeço-me. Afasto-me. Passo pelo cão, que ergue a cabeça mas permanece deitado. Dou mais uns passos e olho para trás. Baixo-me e tiro uma última foto.



publicado por José António Abreu às 15:55
link do post | comentar | ver comentários (2) | favorito

dentro do escafandro.
pesquisar
 
Janeiro 2019
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5

6
7
8
9
10
11
12

13
14
15
16
18
19

20
21
22
23
24
25
26

27
28
29
30
31


à tona

Dez minutos

2 comentários
reservas de oxigénio
tags

actualidade

antónio costa

blogues

cães e gatos

cinema

crise

das formas e cores

desporto

diário semifictício

divagações

douro

economia

eleições

empresas

europa

ficção

fotografia

fotos

governo

grécia

homens

humor

imagens pelas ruas

literatura

livros

metafísica do ciberespaço

mulheres

música

música recente

notícias

paisagens bucólicas

política

porto

portugal

ps

sócrates

televisão

viagens

vida

vídeos

todas as tags

favoritos

(2) Personagens de Romanc...

O avençado mental

Uma cripta em Praga

Escada rolante, elevador,...

Bisontes

Furgoneta

Trovoadas

A minha paixão por uma se...

Amor e malas de senhora

O orgasmo lírico

condutas submersas
subscrever feeds