Numa hora e três quartos é possível ver um filme de duração média. Numa hora e três quartos é possível ler O Sobrinho de Wittgenstein, de Thomas Bernhard (pode dizer-se que ele foi possuído pela sua loucura enquanto eu sempre explorei a minha), ou meia dúzia de contos de Alice Munro. Numa hora e três quartos é possível voltar a ouvir The Downward Spiral, dos Nine Inch Nails (I am denial guilt and fear and I control you, I am the prayers of the naive and I control you, I am the lie that you believe and I control you), e ainda dispor de quarenta minutos de silêncio para recuperar. Tendo com quem, numa hora e três quartos é possível que já se consiga fazer sexo tântrico (qual a duração mínima exigida?). Numa hora e três quartos talvez seja possível eu acabar este post. Mas numa hora e três quartos também se podem fazer coisas menos previsíveis. Há dias, numa hora e três quartos foi-me possível assistir a quase toda a primeira parte da audição da ministra das Finanças na comissão de inquérito parlamentar sobre os contratos swap. «Quase» porque falhei os primeiros minutos e «à primeira parte» porque no intervalo consegui libertar um dedo do torpor em que o meu corpo caíra e mudei de canal. Mas a primeira parte foi suficiente para ficar com várias ideias sobre o assunto que partilharei agora com todos aqueles que não tiveram o bom senso de evitar começar a ler este post nem têm – e isso deve reflectir uma qualquer patologia – o bom senso suficiente para, no final deste parágrafo, irem ler O Sobrinho de Wittgenstein, ouvir The Downward Spiral ou fazer sexo, ainda que não tântrico.
Agora que já devo estar a falar sozinho, vamos lá às conclusões, que – adoro frustrar expectativas – não incluirão uma posição clara sobre a magna questão de saber se a ministra mentiu na visita anterior à comissão de inquérito.
1. Os deputados da oposição marimbam-se para os contratos swap, querem é lixar a ministra. Isto até entendo; o que me custa a entender é o género de tácticas e poses que adoptaram durante a audiência. Vejamo-las caso a caso.
1a. O deputado do PS, Filipe Neto Brandão, optou por fazer perguntas que exigiam resposta «sim» ou «não» («objectivas», chamava-lhes ele) e pela pose do acusador duro, inflexível – e impassível. Esbarrou num ligeiríssimo e altamente subjectivo detalhe: a necessidade de, para aceitarmos a tese que defendia, ser necessário escolher acreditar no ex-secretário de Estado Costa Pina em vez de na actual ministra. Ora a ministra até pode estar a mentir com os dentes todos mas enquanto não existirem provas tão irrefutáveis que até a levem a admitir: «É verdade, menti» (sem acrescentar, com um sorriso maroto: «e continuo a mentir agora») eu preferiria acreditar no Dr. Vale e Azevedo dos bons velhos tempos ou nos latidos de um rafeiro de rua, tal como traduzidos pelo sem-abrigo que momentos antes anunciava o fim do mundo, do que no ex-secretário de Estado Costa Pina. Há sujeitos a quem só voltarei a dar o benefício da dúvida a título póstumo e apenas por estarmos num país em que não se pode dizer mal dos mortos.
1b. A deputada do Bloco de Esquerda, Ana Drago, que vai abandonar o Parlamento (é impressão minha ou a bancada do Bloco, que há anos não é adornada pelos olhos, pelo cabelo, pelas maçãs do rosto e pela pose altiva de Joana Amaral Dias, está a ficar mais cinzenta?), usou uma táctica engraçada: disparava uma pergunta e depois olhava e falava para o lado enquanto a ministra procurava decidir se devia continuar a olhar para ela durante a resposta. Desconheço que efeito Ana Drago tentava obter. Pode dar-se o caso de ter sido apenas má educação. Mas ficou-me na memória um instante em que repetiu uma pergunta (nada estranho, atendendo a que não parecera ter prestado atenção à resposta anterior) e a ministra suspirou: «Vamos lá então outra vez, mais devagar». Ana Drago não acusou o remoque porque estava a olhar e falar para o lado.
1c. O deputado do PCP, Paulo Sá, foi o ponto alto daquela hora e três quartos. Paulo Sá poderia fazer carreira no mundo dos dirigentes de clubes de futebol – e fazê-los a todos parecer meninos de coro na arte da parcialidade. As respostas da ministra irritavam-no à brava porque – quelle surprise – não continham o que ele queria que contivessem. Enquanto ela respondia, ele esbugalhava os olhos e gesticulava. O problema é que não tinha como provar que a ministra mentia – apenas achava tanto que ela mentia que o facto se transformara numa evidência no interior da sua cabeça. A certa altura a ministra atirou-lhe: «Eu sou responsável pelo que digo, não pelo que o senhor entende». Também podia ter-lhe dito «Olhe, para não perdermos tempo e reduzirmos o nível de stress, releia as minhas declarações e sinta-se à vontade para entender o contrário do que ler.» Eu fiquei a pensar que o estilo de interrogatório do deputado Paulo Sá teria sido considerado promissor pelos camaradas Yezhov ou Beria, tivesse o deputado Paulo Sá vivido no paraíso terrestre que foi a URSS.
2. Da intervenção dos deputados do PSD e do CDS não vale a pena falar. Estavam lá para agradecerem à ministra o esforço da deslocação, afirmarem que, evidentemente, como ficava agora ainda mais claro do que antes já estava, ela não mentira da última vez que lá estivera, e acusarem os governos Sócrates (e, mais especificamente, o ex-secretário de Estado Costa Pina) de incompetência. Cumpriram o papel de modo adequado, o que significa que foram apenas ligeiramente enjoativos.
3. Mas se não vale a pena abordar a acção dos deputados do PSD e do CDS na audiência da passada terça-feira, para memória futura convém abordar o papel dos governos Sócrates em toda a questão. Em Janeiro de 2009, pela mão do então secretário de Estado Costa Pina, o governo Sócrates emitiu um despacho que, face à crise financeira instalada, recomendava cuidado às empresas públicas – e também que substituíssem dívida de curto prazo por dívida de mais longo prazo. Para além de haver aqui um modus operandi típico dos governos liderados pelo supracitado indivíduo – ah, a renegociação das PPP, de que resultou o adiamento dos pagamentos para o período pós-2013, com (evidentemente) subida dos montantes a pagar – há também, segundo algumas opiniões, um incentivo à contratação de instrumentos derivados. Ainda que não se avance até tão maldosa leitura, existem montanhas de incompetência a registar, uma vez que a maioria dos swaps foi contratada durante os governos Sócrates e, nos anos em que já devia ser óbvio que eles constituiriam um problema, nada de substancial foi feito. Apenas em Junho de 2011, dias antes de Passos Coelho entrar em S. Bento cheio de ilusões, decidiu o governo socialista aprovar legislação (ainda em vigor, como a ministra repetiu ad nauseum) proibindo as empresas públicas de contratarem swaps sem autorização da tutela. Quanto aos que estavam feitos, o governo seguinte e a Troika que encontrassem uma solução. Os socialistas cá estariam para a criticar.
4. E estão. Oh, se estão. Ajudados por uma comunicação social tendencialmente de esquerda (nenhum governo teve alguma vez um período de graça tão longo quanto o primeiro de Sócrates), que vê tão longe quanto o típico participante de fórum radiofónico (a curto prazo – i.e., enquanto há dinheiro –, as medidas da esquerda tendem a parecer mais agradáveis) e que adora o fait divers, conseguiram fazer com que os pontos essenciais (na comunicação social mas também nos trabalhos da comissão parlamentar) não sejam hoje quem autorizou a contratação de swaps, quem fechou os olhos aos riscos e quem talvez até os tenha incentivado, não seja sequer determinar se a solução encontrada foi ou não a melhor, mas se a ministra mentiu ao dizer que nenhum membro do governo anterior lhe falou no assunto durante a transição de pastas. Sendo que aceitar que ela mentiu passa por acreditar no ex-secretário de Estado Costa Pina (cruzes canhoto) ou por Vítor Gaspar vir dizer preto no branco (ou branco no preto, solução com o mesmo grau de legibilidade favorecida por muita gente) que, tendo-lhe Teixeira dos Santos falado do assunto (o que Gaspar admitiu), ele informou Maria Luís Albuquerque (o que ele parece – eu não acompanhei a audição de Vítor Gaspar – não ter admitido).
5. Chegamos agora à pergunta que, durante aquela hora e três quartos, mais frequentemente me coloquei: como agir numa comissão de inquérito para minimizar os riscos de ser acusado de mentir? A melhor via parece-me ser responder uma vez a cada pergunta e depois, sempre que ela for repetida (uma e outra e ainda outra vez), pedir que a resposta original seja lida. Ou então escrevinhar a primeira resposta (convém que seja curta) e depois repeti-la uma e outra e ainda outra vez. Creio que apenas assim será possível eliminar o risco de, quanto mais não seja por motivos de cansaço, vir a afirmar algo que, numa interpretação cristalinamente óbvia ou estonteantemente rebuscada, possa parecer diferente do que se afirmou uma hora e três quartos mais cedo, e evitar, nessa ou em futuras presenças na comissão, discutir a relevância da falta ocasional de complementos em algumas frases («ah, mas quando cá esteve há um mês, senhora ministra, conforme página 123 da transcrição, não especificou que não existia informação ‘na pasta de transição’, referiu apenas que não lhe foi transmitida informação»; «Mas umas horas antes, senhor deputado, conforme página 57, eu disse que nada foi transmitido ‘na reunião entre secretários de Estado’.»). Porque, convenhamos, é provável que a ministra tenha mentido mas toda a gente que já esteve envolvido num debate aceso – numa discussão conjugal, por exemplo – sabe que nem sempre uma ideia que se quer repetir sai da mesma maneira, com duras consequências na forma como é percebida, em especial quando o cansaço de quem diz e a má vontade de quem ouve são significativos.
6. Claro está que o cansaço também pode fazer baixar as guardas e permitir que a verdade se escape. Mas, caramba (quase me saiu um termo começado por ‘f’ e acabado em ‘se’ mas contive-me para não incomodar os leitores mais sensíveis de entre os leitores mais insensatos – sendo estes últimos, como é óbvio, os que os que não levaram o meu aviso a sério e ainda estão a ler), depois de assistir àquela hora e três quartos (relembre-se, apenas a primeira parte da segunda audição) até eu tenderia a recusar um cargo de ministro, apesar do aumento salarial que representaria, das portas que abriria e do facto de as boas relações que os governantes mantêm com a banca me permitirem certamente acesso a um crédito habitação em condições bonificadas (sim, estou a precisar de mudar de casa). É que... aturar interrogatórios do deputado Filipe Brandão, ou do deputado João Galamba (que, sendo suplente, estava ao lado do deputado Filipe Brandão mas – aleluia – não falou durante a hora e três quartos), ou do deputado Paulo Sá? Antes assistir no meu acanhado apartamento a onze horas e três quartos de programas apresentados pela Júlia Pinheiro.
7. E pronto, termino com esta referência à verdadeira excelência televisiva, que o texto ameaça ficar comprido. Ou ainda uma última nota. Aquela hora e três quartos também me fez perceber que a ministra tem o tique de empurrar algumas madeixas revoltas de cabelo para a testa, deixando as restantes ainda mais revoltas, e – estranho não o ter notado antes – que é bastante sardenta. Como eu tenho um fraquinho por mulheres sardentas, a hora e três quartos acabou por não ser totalmente desperdiçada.
(Este texto demorou muito mais do que uma hora e três quartos a escrever, o que significa que já perdi várias horas com aquela sessão da comissão de inquérito. Por favor internem-me.)
Numa época em que o Parlamento é alvo de críticas diárias (muitas das quais perigosamente demagógicas), convinha esta gente perceber que actos como o de hoje desrespeitam o próprio cargo que exercem e que quem não se dá ao respeito não merece ser respeitado.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets