como sobreviver submerso.
Estas controvérsias, porém, servem apenas para consumo público. A culpa ou a inocência dos visados, a regularidade dos procedimentos judiciais ou a justeza do trabalho da imprensa só comovem os oligarcas durante a gravação no estúdio. Longe dos microfones, o que verdadeiramente lhes importa é o modo como tudo isso vai afectar a distribuição do poder por via eleitoral. No regime vigente, os escândalos deixaram de fazer parte do domínio da reprovação moral ou do apuramento jurídico da verdade. São, simplesmente, ingredientes do campeonato de futebol político.
[...]
Noutras épocas, o poder político quase se confundia com as hierarquias sociais ou profissionais. Isso acabou, tal como também acabaram as organizações partidárias capazes de mobilizar correntes de opinião ancoradas em identidades sociais ou em ideologias políticas. A velha sociedade e a teoria gramsciana da hegemonia já deram o que tinham a dar. O que resta, para dominar uma sociedade que, por si, não acredita, não apoia e não respeita, embora vote? Essa máquina que é Estado, o grande Estado deixado pelas aspirações desenvolvimentistas, sociais e justicialistas do passado.
O Estado, porém, é uma máquina pesada, que só gera poder a favor de um partido ou de uma facção quando usada implacavelmente, para além de todas as virtudes e castidades.
Agora que a década já acabou há dezasseis horas e quarenta e sete minutos (bem, obrigado) começa a ser possível analisá-la com algum distanciamento crítico. Não tendo sido uma década brilhante, podia ter corrido pior. Afinal, tanto eu como quem me lê (com a possível excepção do pessoal do
É Tudo Gente Morta) ainda estamos vivos. Em Portugal, foi marcada por uma crise económica (internacionalmente aconteceram duas mas nós, viciados em crises como somos, conseguimos uni-las) e por uma praga. Da crise não vale a pena falar. A praga chamou-se (e chama-se) Partido Socialista: prosseguindo o trabalho preparatório encetado na década anterior, teve no início desta um papel fundamental na origem da crise e empenha-se afincadamente ainda hoje no seu agravamento. Se fosse de atribuir prémios, dar-lhe-ia o prémio «coerência».
O acontecimento da década foram, evidentemente, os ataques de 11 de Setembro de 2001, por terem causado milhares de mortos e duas guerras mas, mais importante, por terem criado o vilão com tendências aparentemente apocalípticas que as pessoas mais adoraram detestar desde que Peter Sellers fez de Dr. Estranhoamor. (Mas o sidekick, aquele que disparava em companheiros de caçada, assustava mesmo). Felizmente, o final da década trouxe de novo esperança à humanidade com o surgimento de um super-herói que, ao contrário do Batman, do Surfista Prateado, do Darkman, que são personagens negras, torturadas, quase psicóticas, é apenas negro.
Quanto àquelas coisas de «álbuns da década», «livros da década», «filmes da década» e «etceras da década» tenho que confessar que ainda não pensei nisso a sério. Sim, o álbum da década é provavelmente
Funeral, dos Arcade Fire (mas os que mais vezes ouvi foram
Regeneration, dos The Divine Comedy, logo em 2001, e o par
Wide Awake, It’s Morning / Digital Ash in a Digital Urn, de Bright Eyes, em 2005), o livro da década é
A Estrada, de Cormac McCarthy, o filme da década… nah, ainda não vou arriscar, até porque o meu cérebro, filho da mãe irritante que se julga mais esperto do que eu, me está a martelar incessantemente aos ouvidos (não faço ideia de como o consegue, ainda por cima quando lá tenho enfiados um auscultadores debitando Animal Collective) «Chris Nolan, Wes Anderson, Chris Nolan, Wes Anderson…» e não me apetece parar para analisar tudo o que isso implica. Mas não me importo de escolher o videojogo da década (
Ico, para a Playstation 2), o desportista da década (
Roger Federer, quem mais?*) e o pastel de nata da década (o que comi no dia 24 de Setembro de 2002, em jejum, facto que admito poder ter tido influência na impressão que me deixou).
* Eu sei que também há um senhor chamado Tiger Woods mas continuo relutante em chamar desporto a uma actividade em que não se transpira pelo menos um bocadinho.
Este processo. Apetece-me emitir uma opinião sobre o licenciado em engenharia, Primeiro-Ministro José Sócrates, mas é capaz de ser melhor insultá-lo. Sempre dá mais gozo.