como sobreviver submerso.

Segunda-feira, 25 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 4

Forças do Mercado

 

«E agora?»

«Agora vamos fazer brinquedos iguais para todas as crianças e distribui-los», respondeu o duende barbudo, com o gorro do Pai Natal enfiado na cabeça. Alguns dos outros duendes haviam de dizer que ele podia não acreditar em hierarquias, mas tratara logo de se apoderar dos símbolos do poder cessante.

«Sem o Pai Natal e sem as renas? Como os vamos transportar? E como é que vamos pagar os materiais?»

«Como é que ele fazia?»

«Nos últimos anos, o negócio cresceu por causa dos patrocínios. Da Coca-Cola e outras multinacionais.»

«Isso não pode ser. Esses contratos têm de ser rasgados.»

«E então onde é que vamos buscar o dinheiro?»

O duende barbudo coçou a barba. Apercebeu-se de que ela tinha um nó, mas resistiu a desfazê-lo naquele momento.

«Se calhar», disse lentamente, «até nem seria má ideia aproveitarmos o dinheiro da Coca-Cola para boicotarmos a lógica capitalista da distribuição de brinquedos. Temos é que manter a morte do velho em segredo.»

Toda a gente concordou quase imediatamente que era isso mesmo que se devia fazer.

A princípio, até pareceu que ia resultar. Manteve-se secreta a morte do Pai Natal em todas as comunicações, incluindo com a Coca-Cola, e fizeram-se as encomendas aos fornecedores como de costume. Mas depois o presidente da Coca-Cola exigiu falar pessoalmente com o Pai Natal. O duende barbudo pegou no telefone e disse: «Ho-ho-ho!», ao que o presidente da Coca-Cola respondeu: «Você não é o Pai Natal. O que se passa aí?» O duende barbudo inventou uma desculpa que envolvia uma doença tropical grave («provavelmente apanhou-a na viagem do ano passado»), mas o presidente da Coca-Cola não ficou convencido e enviou uma equipa de consultores ao Pólo Norte. Sem quaisquer hesitações ou remorsos, mas com mais dificuldade do que teriam antecipado (eram criaturas surpreendentemente resilientes), os duendes mataram-nos. Dias depois, contudo, chegou outra equipa. Como a primeira, era constituída por gente ainda nova, vestindo aquele tipo de roupas que as pessoas nas latitudes mais temperadas pareciam achar ser adequada para a neve. Houve de imediato muitas perguntas básicas e tomada de apontamentos, mas depressa os duendes lhes puseram fim através do mesmo método que haviam usado dias antes. Perante os corpos caídos na neve, ligeiramente triste por não ter conseguido evitar fazer um rasgão numa parka que, embora pouco adequada ao Pólo Norte, era bonita e de boa marca, o duende barbudo resmungou: «Não é possível que continuem a enviá-los. Afinal, quantos consultores pode ter a Coca-Cola?» Mesmo nesses tempos já antigos, verificou-se que tinha ainda bastante mais. Os duendes foram-nos abatendo e finalmente eles deixaram de aparecer. (Num dado que merecia algum estudo – existissem consultores interessados em fazê-lo –, a Coca-Cola viria a apresentar os melhores resultados da sua história nos anos imediatamente seguintes a estes acontecimentos.) Estava-se então já em Dezembro e os duendes pensaram que o pior fora ultrapassado. Mas então a Coca-Cola enviou um telegrama avisando ter despachado uma carta registada a denunciar o contrato de financiamento. Na carta, que chegou dias depois no comboio Expresso Polar, acrescentava-se que, em resultado de uma alínea existente no contrato («cuja cópia se anexa»), a Coca-Cola podia indefinidamente, se assim o entendesse, usar a imagem do Pai Natal na sua publicidade. O duende barbudo ficou tão furioso que chegou a arrancar pêlos da barba, mas nada havia a fazer. Realizou-se uma última reunião geral, que decorreu aos berros, com muitos lamentos e acusações. Não havia dinheiro para pagar aos fornecedores, que ainda só haviam enviado uma pequena parte dos produtos e se recusavam a enviar o resto. Pior: também não havia dinheiro para pagar salários. Alguém mencionou um velho mito segundo o qual o Pai Natal teria um tesouro escondido algures e procedeu-se a uma busca desesperada, com muita destruição de instalações e de equipamento, mas, se o conteúdo da gaveta de uma mesinha-de-cabeceira do quarto do Pai Natal ainda suscitou risos e piadas deselegantes («Alguém tem andado a portar-se mal...», «Agora percebe-se o ‘ho-ho-ho’ que se ouvia durante a noite…», «Com este frio, as pilhas hão-de durar pouco», «Também se arranja em tamanho XS?»), nada de valor significativo foi encontrado. Nessa altura a raiva dos duendes voltou-se contra o duende barbudo, que tentou fugir. Foi apanhado, morto à paulada como se fosse uma foca e espetado num pau. Dizem que era tão resiliente que as barbas lhe continuaram a crescer durante meses.

 

E foi assim que, nesse ano, pela primeira vez, o Pai Natal não visitou as casas dos meninos bem comportados durante a noite de Natal. Muitas crianças ficaram tristes e muitos pais irritados. Tendo retirado os anúncios em que usava a imagem do Pai Natal no início de Dezembro, as vendas da Coca-Cola não foram afectadas. No ano seguinte, os pais já não confiaram no Pai Natal e adquiriram brinquedos que, durante a noite, pé ante pé, foram colocar debaixo da árvore ou pendurar na chaminé, consoante a tradição de cada sítio ou país. Naturalmente, os pais mais ricos compraram presentes mais caros. Como, de forma geral, os pais preferiram manter a ilusão das crianças, continuando a falar-lhes no Pai Natal, a Coca-Cola voltou a usar a imagem dele na publicidade.

No Pólo Norte, os vestígios da aldeia do Natal desapareceram. Os duendes espalharam-se pelo planeta. Às vezes, vê-se um ou outro por aí (na Irlanda, são confundidos com leprechauns e, em Portugal, há conhecedores desta triste história que defendem que alguns comentadores televisivos de reduzida estatura ainda são «crianças do Pólo»). Quanto ao destino de Rodolfo, não existem certezas. Mas todos os anos as televisões mostram a saída do Pai Natal da Lapónia, no seu trenó puxado por renas. Se o Pai Natal é claramente um velhote com barbas e barriga postiças, as renas são verdadeiras. E a da frente parece estar sempre a caminhar com cuidado extremo. Algumas pessoas suspeitam que tal se deve ao esforço que tem de fazer para não levantar voo. Há também quem diga que, por vezes, o nariz dela brilha como se fosse uma lâmpada. Mas outras pessoas defendem que aquele estilo de passada é a forma normal das renas caminharem e que o brilho se deve apenas a gelo na ponta do nariz e a televisores mal regulados. É possível que nem a Coca-Cola conheça a verdade.

 

FIM



publicado por José António Abreu às 11:11
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Domingo, 24 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 3

Revolução

 

Foi em meados de Outubro, e o duende barbudo havia de dizer que fazia todo o sentido ter sido naquela altura. O dia amanheceu com uns amenos vinte e três graus negativos, mas soprava um vento fresco vindo de Sul (no Pólo Norte o vento vem sempre do Sul e tende a criar remoinhos) que se metia pela gola das camisolas e arrefecia o nariz e a ponta das orelhas. O Pai Natal despediu-se da Mãe Natal com um beijo e um mau pressentimento. Ela disse: «Põe o gorro e não comas porcarias.» No Pólo Norte, havia poucos legumes e vegetais, mas ela dizia sempre aquilo.

Ao chegar à fábrica, o Pai Natal descobriu que pouco mais de uma dúzia de duendes comparecera ao trabalho. Tentou parecer bem disposto, esboçou mesmo um «ho-ho-ho» que saiu pouco convincente, e, porque não valia a pena dizer-lhes para irem trabalhar (faltava muita gente essencial para operar as máquinas e, de resto, quantos brinquedos poderia fazer aquele conjunto de gatos pingados?) ficou a conversar com eles, a explicar-lhes que não podia alterar assim as regras de um momento para o outro, a pedir-lhes que o ajudassem a convencer os colegas a esperarem pelo início do ano seguinte, altura em que poderiam discutir a questão mais calmamente. A certa altura, começou a repetir-se, mas continuou a falar porque – sentiu um bocadinho de vergonha ao percebê-lo – não queria deixá-los e ficar sozinho. Por um lado, sentia-se agradecido àqueles duendes, os mais fiéis, os poucos que continuavam a confiar nele; por outro, sabia que ia pôr-se a pensar na injustiça que tudo aquilo constituía e isso só lhe faria mal.

A conversa decorria há mais de uma hora quando se ouviu o ruído da multidão a aproximar-se. O Pai Natal foi à janela e disse «Oh-oh!» (Quando dizia apenas duas vezes, era sinal de preocupação.) Lá fora havia mais de uma centena de duendes. Tinham cartazes, mas – o que era muito mais preocupante – também tinham forquilhas, paus e machados. Embora a maioria fosse do sexo masculino, viam-se igualmente várias mulheres. Aos berros, o duende barbudo exigiu que o Pai Natal fosse lá fora. O Pai Natal hesitou. Leu alguns dos cartazes: O Natal é para Todos, Pai Natal - Símbolo do Imperialismo, Brinquedos Iguais para Crianças Iguais, A Chaminé dos Ricos é Mais Larga. Abriu a porta e saiu. O duende barbudo, brandindo uma forquilha, avançou dois passos e declarou que os trabalhadores haviam decidido tomar as instalações. O Pai Natal que se afastasse ou sofreria as consequências.

O Pai Natal tentou um «Oh-oh-oh!» pausado e em voz de desafio que não lhe saiu bem. Depois acrescentou: «O que é isto? Estão a expulsar-me da minha própria empresa? Fui eu quem pôs isto tudo de pé.»

Era a resposta errada. O duende berrou: «Só conseguiu fazê-lo com a ajuda de centenas de trabalhadores a quem sempre pagou uma ninharia! E para manter um sistema injusto, que privilegia os mais ricos! Não o voltaremos a avisar: saia da frente ou afastá-lo-emos à força.»

As caras dos duendes que haviam vindo trabalhar surgiram nas janelas, o que só pareceu irritar mais o duende barbudo. «Traidores!», gritou. «Preferem ficar do lado do capital em vez de se juntarem aos vossos camaradas!» E logo a seguir, sem dar hipótese ao Pai Natal de voltar a falar: «Em frente! À carga!»

Correu para diante, um bocadinho aos tropeções porque os pés se lhe enterravam na neve, com a forquilha apontando para a frente. Durante um instante, foi o único a mover-se, mas depois todos os outros o seguiram, largando os cartazes e agitando as armas.

O Pai Natal constituía um alvo fácil. Tentou desviar-se, mas a forquilha atingiu-o no joelho esquerdo. Era uma táctica antiga dos duendes quando batalhavam seres de maiores dimensões: atingi-los nas pernas, de modo a fazê-los tombar, e depois acabar com eles. Quase resultou mais uma vez. O Pai Natal soltou um único «Oh!» abafado, rodopiou, quase caiu, mas, de forma surpreendentemente ágil para alguém tão velho e tão volumoso, conseguiu manter-se em pé e fugiu a coxear para o interior da fábrica.

O que se passou a seguir foi tão violento que mais vale não descermos a um nível de pormenor muito grande. O ataque à fábrica incluiu o arremesso de cocktails molotoff, feitos com óleo de foca, e, porque tudo isto era novidade para os duendes e alguns haviam percebido mal as instruções do duende barbudo, também de alguns pudins molotof. Com as instalações a arder, o Pai Natal e os duendes que tinham ido trabalhar foram obrigados a sair e os restantes lançaram-se a eles. O duende barbudo voltou a atacar o Pai Natal com a forquilha e desta vez espetou-lha na perna direita. O Pai Natal caiu e depois já não teve hipótese. A última coisa que disse foi um «Oh» muito baixinho e prolongado.

 

Os duendes olharam para as renas. Via-se que elas sentiam o perigo. Mantinham-se juntas, de cabeça erguida, orelhas espetadas, narinas a tremer, como que detectando o odor a sangue espalhado pela neve.

«O que lhes vamos fazer?» perguntou um dos duendes.

«Não podemos confiar nelas» disse o duende barbudo. E acrescentou: «Temos de as matar. De resto, a carne dá-nos jeito.»

Dirigiu-se para o redil. Os outros seguiram-no.

As renas pareciam atordoadas e nem tentaram voar. Limitaram-se a correr de um lado para o outro. À medida que iam sendo atingidas nas pernas por machados ou facas, caíam e eram rapidamente abatidas. Só depois de estarem todas mortas, a neve mais vermelha do que branca, é que os duendes se aperceberam de que Rodolfo não estava entre elas. Procuraram-no, mas em vão. Rodolfo, a rena preferida do Pai Natal, conseguira escapar.

Mais tarde, alguns duendes viriam a manifestar remorsos pela morte das renas, mas nenhum recusou a sua parte da carne.

 

A Mãe Natal julgava-se bondosa e, por isso, muito apreciada, mas tal não era inteiramente verdade. Bastantes duendes, especialmente do sexo feminino, achavam-na falsa, demasiado habituada aos benefícios de ser casada com o Pai Natal e nada preocupada com as dificuldades deles. Claro que apenas o diziam quando ela não estava presente, pelo que a Mãe Natal continuava a manter a ilusão. No dia da revolta, as coisas passaram-se tão depressa que ela nem chegou a perceber a verdade.

Fora às traseiras buscar um par de costelas de alce e preparava-se para as meter na frigideira previamente untada com gordura de foca quando o duende barbudo e outros dois duendes entraram sem bater à porta. A Mãe Natal achou isto muito estranho. Mas depois pensou que o Pai Natal devia ter sofrido um acidente e nem chegou a criticar o duende barbudo e os outros dois duendes pela falta de respeito. Perguntou apenas: «Aconteceu alguma coisa ao meu Nico?» (Só costumava chamar-lhe assim quando estavam sozinhos, mas naquele momento, com a preocupação, escapou-lhe.)

Ligeiramente surpreendido por ela não se ter apercebido de nada, o duende barbudo disse: «Em nome da Revolução, vimos prendê-la.»

A Mãe Natal franziu a testa. «Em nome da quê? Agora não tenho para brincadeiras, tenho que fazer o almoço.»

Voltou-se outra vez para o fogão e tratou de colocar as costeletas na frigideira. Como a gordura de alce já estava quente, começaram imediatamente a ouvir-se estalinhos.

O duende barbudo dissera aos outros que não iam magoar a Mãe Natal, apenas prendê-la num barracão até ser decidido o que fazer com ela. Dissera-o porque não queria suscitar discussões e porque lera ser esse o procedimento correcto a ter com familiares do líder deposto. Mas a verdade é que também lera que, mais tarde, eles deviam ser executados a tiro, o que o deixara com muitas dúvidas sobre a lógica do processo (infelizmente, o livro era vago neste ponto). Deixar a Mãe Natal viva significava correr o risco de que ela conseguisse manobrar os duendes que fossem entretanto perdendo o ímpeto revolucionário. E seguir o procedimento do livro criava ainda um problema logístico: por imposição da Coca-Cola, preocupada com a possibilidade de reportagens negativas, as armas de fogo verdadeiras estavam proibidas no Pólo Norte e até as de brinquedo eram fabricadas em quantidades cada vez menores.

Assim, quando a Mãe Natal lhe voltou as costas para tratar das costeletas, o duende barbudo viu uma oportunidade para acabar de imediato com o assunto. Deitou a mão ao atiçador da lenha que estava pousado ao lado do fogão (não há gás canalizado no Pólo Norte), saltou para cima de uma cadeira, e acertou com ele na cabeça da Mãe Natal. Ela ficou muito surpreendida, mas durante pouco tempo, porque ele lhe bateu mais duas vezes logo a seguir, fazendo-a cair no chão.

Então o duende barbudo saltou da cadeira e, perante o ar espantado – e até um bocadinho horrorizado  - dos outros dois duendes, disse: «Pronto. Agora a Revolução está completa. Se alguém perguntar, ela tentou fugir.»

Cheirou o ar, onde já se notava o odor das costeletas a fritar, e pensou que a Mãe Natal podia ter muitos defeitos, entre os quais uma total indiferença pelas injustiças sociais, mas que sabia cozinhar, lá isso sabia.

 

O capítulo 4 (de 4) será publicado amanhã às 11 horas e 11 minutos.



publicado por José António Abreu às 10:32
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Sábado, 23 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 2

Contestação

 

Nessa noite, o Pai Natal percorreu devagar os menos de cem metros que separavam a fábrica de brinquedos da sua casa. Estava muito preocupado. Sentia necessidade de conversar com alguém e ponderou contornar a casa e ir ter com Rodolfo ao cercado das renas. Mas acabou por entrar, deparando com a Mãe Natal a costurar mais um gorro vermelho com uma borla branca. Todos os anos obrigava o marido a levar pelo menos duas dúzias de gorros no trenó. Dizia-lhe: «Não faz mal levares a mais, faz mal é levares a menos. Já sabes que o vento te arranca sempre alguns da cabeça e que perdes mais uns quantos a descer pelas chaminés. E também sabes que, sem a cabeça protegida, te constipas imediatamente. Não queres passar outra Passagem de Ano na cama, pois não?» Ela tinha razão, mas o Pai Natal detestava vê-la fazer os gorros porque não conseguia deixar de se sentir uma criança pequena e irresponsável, que era preciso proteger.

Sentou-se ao lado dela e contou-lhe o que sucedera. A Mão Natal ouviu-o enquanto cosia a borla à ponta do gorro, e depois disse: «Não há-de ser assim tão grave.» Espetou a agulha numa almofadinha pequena que colocou dentro da caixa de costura e pousou o gorro no braço da cadeira. «O jantar é outra vez foca.»

 

Depressa começou a ficar evidente que a situação era grave. Nos cinco meses que passara no Pólo Norte, o duende barbudo conseguira arregimentar meia dúzia de duendes para as suas ideias. Falava-lhes dos direitos do proletariado (por vezes dizia «os direitos dos mais pequenos contra os grandes», o que, considerando o tamanho dos duendes, era uma forma duplamente traiçoeira de espicaçar os ânimos), da redistribuição da riqueza, do colocar o poder ao serviço do povo. O Pai Natal julgava ter sempre tratado os duendes com respeito. Desde logo, não haveria certamente muitas empresas no mundo que dessem emprego a tantas pessoas que, mesmo não o sendo, apresentavam características parecidas com as pessoas com deficiências de crescimento. Mas o duende barbudo – um tudo-nada baixo, mesmo para os padrões dos duendes, facto que, matutava por vezes o Pai Natal, talvez não se encontrasse totalmente desligado do fervor com que defendia as suas ideias políticas – dizia-lhes que reparassem como eram explorados; como, nas semanas anteriores ao Natal, as horas extraordinárias eram numerosas e mal pagas; como as refeições eram pouco variadas e nem sequer incluíam Coca-Cola, apesar do contrato chorudo que o Pai Natal tinha com a empresa; como não dispunham de seguro de saúde nem de plano de poupança para a reforma; como certas máquinas e utensílios – martelos, serrotes, baldes, pincéis – eram comprados sem levar em atenção o tamanho dos duendes. Enfim, enchia-lhes a cabeça com ideias que, para muitos ali no Pólo Norte, constituíam inteira novidade. E resultava. À noite, em casa, os casais de duendes discutiam-nas, olhando para os filhos pequenos – mesmo muito, muito pequenos -, deitados nos berços ou brincando no chão. Perguntavam-se o que aconteceria se o Natal passasse de moda ou o Pai Natal decidisse reformar-se. No dia seguinte, vinham ter com ele e exigiam escolas e universidades para os filhos e planos de poupança reforma para eles próprios.

Mas se os meses anteriores à conversa entre o Pai Natal e o duende barbudo haviam sido difíceis, tudo se complicou muito mais logo a seguir.

Três ou quatro dias após a conversa, o Pai Natal soube que o duende barbudo convocara uma reunião da comissão de trabalhadores e conseguira convencer a maioria dos duendes que faziam parte dela a exigir alterações na política da empresa. O Pai Natal não ficou surpreendido; o duende barbudo soubera rodear-se de gente que não lhe faria frente e na comissão de trabalhadores estavam apenas duendes facilmente influenciáveis e não muito espertos. A comissão exigiu uma reunião com o Pai Natal, mas esta até correu bem ao Pai Natal, que teve apenas de prometer estudar formas de aumentar ligeiramente («dentro dos prazos e do orçamento disponíveis») o número de brinquedos mais caros e distribuir esse acréscimo pelas crianças mais pobres. O duende barbudo não gostou nada do resultado da reunião e, nos dias seguintes, tratou de convencer toda a gente de que as promessas vagas do Pai Natal eram insuficientes. Uma semana depois, o Pai Natal recebeu um pré-aviso de greve. Ainda não se entrara no período de trabalho mais crítico do ano e o Pai Natal, depois de procurar nos livros o que era suposto dizer naquelas ocasiões (era inexperiente no assunto, uma vez que se tratava da primeira greve na história da fábrica de brinquedos do Pólo Norte), suportou a paragem com declarações de respeito pelos direitos dos trabalhadores. O problema é que a esta primeira greve seguiu-se outra, que até incluiu uma manifestação em frente à fábrica, com gritos de ordem e arremesso de pedaços de gelo e de bolas de neve (no Pólo Norte é difícil arranjar pedras). No dia seguinte, alguém fez explodir um pequeno armazém cheio de carros de bombeiros que haviam sobrado do ano anterior. O Pai Natal estava convencido de que o bombista fora o duende barbudo, mas não tinha provas. As opiniões extremaram-se e o Pai Natal tentou aproveitar as reticências de alguns duendes, que não aprovavam o uso da violência, mesmo que ela fosse apenas dirigida contra sobras de inventário. Não resultou. O duende barbudo foi-os convencendo de que o Pai Natal estava a ser hipócrita e quase todos acabaram do lado dele.

E depois veio o dia fatídico.

 

O capítulo 3 (de 4) será publicado amanhã às 10 horas e 32 minutos.



publicado por José António Abreu às 10:56
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Sexta-feira, 22 de Dezembro de 2017
O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

 

Capítulo 1

Injustiça

 

Como seria de esperar, foi o duende barbudo admitido cinco meses antes e que rapidamente exigira a formação de uma comissão de trabalhadores quem primeiro se apercebeu do facto ao examinar os planos de produção. Bateu à porta do gabinete do Pai Natal e perguntou-lhe sem rodeios: «Por que é que as crianças ricas recebem brinquedos mais caros? Não deviam ser todos do mesmo preço? Ou até ao contrário: os brinquedos melhores para as crianças pobres, que as ricas já têm suficientes?»

Os olhos do Pai Natal, sentado atrás da grande secretária onde, por esta altura do ano, se empilhavam sempre enormes pilhas de papel com nomes, moradas, relatórios de comportamento e listas de brinquedos disponíveis, conseguiam ainda assim estar a um nível ligeiramente mais elevado do que os do duende barbudo, que permanecia em pé entre a secretária e a porta. Devido aos montes de papel, o Pai Natal quase nem lhe via a barba, parecida com a dele próprio mas totalmente preta. No entanto, via-lhe os olhos, e estes mostravam uma firmeza tão grande que o Pai Natal se sentiu de repente muito pequenino – mais pequeno do que o duende barbudo. Consciente de que chegara o momento, usou a resposta preparada durante anos: «Tentamos dar às crianças os brinquedos que elas pedem. É esse o nosso compromisso e é isso que faz a felicidade delas. É verdade que as crianças ricas pedem coisas mais caras, mas deveríamos desiludi-las? São apenas crianças.»

O Pai Natal testara aquele argumento na Mãe Natal várias vezes e ela sempre parecera achá-lo bastante sólido. Mais importante: experimentara-o também em Rodolfo, cujo nariz se iluminara por um instante, sinal inequívoco de admiração ou de alegria (ou de constipação, mas o Pai Natal escolhera sempre momentos em que Rodolfo andava de boa saúde). O duende barbudo, todavia, não pareceu impressionado (o Pai Natal sabia que não o devia ter contratado; sentira-o imediatamente após tê-lo feito) e disse que aquele não era um bom argumento; que, evidentemente, as crianças mais pobres pediam coisas mais baratas porque era aquilo que conheciam e que imaginavam ao seu alcance; que, ao fazer a vontade às crianças mais ricas, estas habituavam-se a ter todos os seus desejos satisfeitos e a conseguirem sempre tudo sem esforço, o que as transformava em adultos sem respeito pelos outros; que, sendo o Natal uma época do ano em que se procura transmitir um imagem de respeito, igualdade e paz, e procurando o Pai Natal transformar-se no símbolo desses ideais – aqui o duende acrescentou qualquer coisa sobre «o que, pelo menos numa fase intermédia, talvez seja útil, porque sempre retira protagonismo à Igreja» –, devia procurar corrigir as injustiças em vez de as reforçar; finalmente, que os tempos haviam mudado e que já era altura de essas mudanças chegarem ao Pólo Norte.

Enquanto o duende barbudo falava (o que sucedeu durante bastante tempo, embora tudo o que ele disse se encontre no parágrafo anterior), o Pai Natal procurava descobrir um modo de lhe dizer que não iria alterar regras que vinham funcionando tão bem há já dezenas de anos só para satisfazer os desejos revolucionários de um duende que – o Pai Natal já o percebera – gostava mais de falar do que de trabalhar. Incapaz de arranjar um argumento que fosse simultaneamente firme e amigável, permaneceu calado, olhando o duende barbudo nos olhos. Este acabou por ser forçado a perguntar: «Então? Vai alterar as regras este ano?»

«Não posso. É demasiado tarde.»

«Não é demasiado tarde. Os brinquedos ainda estão por fabricar.»

«Mas as encomendas de material têm de seguir nos próximos dias. Não há tempo para as alterar.»

«Não é preciso alterá-las. Quando muito, apenas corrigir quantidades. E depois refazer as listas de entrega, fazendo corresponder os brinquedos mais caros às crianças mais pobres.»

«Como se isso fosse fácil… Os brinquedos mais caros demoram mais tempo a produzir, até ao Natal já não há tempo. E também são mais caros. Não temos orçamento para alterar assim as quantidades.»

O duende barbudo ficou um instante em silêncio. Depois apontou para um cartaz na parede.

«Isso são tudo desculpas. O que você não quer é chatear a Coca-Cola. A sua fama disparou quando eles o começaram a apoiar. Quanto é que lhe pagam por ano?»

O Pai Natal sabia que estava em terreno cada vez mais perigoso. Para gente como o duende barbudo, a Coca-Cola era um símbolo de tudo o que ia mal no mundo.

«Isso não vem ao caso. A Coca-Cola é o nosso principal financiador, sim, e tem o direito de usar a nossa imagem. Mas isso não quer dizer que mandem em nós.»

Não era inteiramente verdade. O contrato estabelecia regras; qualquer alteração nas mesmas tinha de ser discutida entre ambas as partes e a Coca-Cola dispunha de um número incrivelmente elevado de advogados, que arranjavam sempre imensos problemas.

O duende barbudo disse: «Não acredito em si. Mas também não interessa. Vou convocar uma reunião da comissão de trabalhadores. E pode ter a certeza de que se tomarão medidas para alterar esta injustiça.»

Depois virou costas e saiu do gabinete. Foi o princípio do fim.

 

O capítulo 2 (de 4) será publicado amanhã às 10 horas e 56 minutos.



publicado por José António Abreu às 11:22
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Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2015
Natal com o Menino Jesus

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A fé na qual me educaram foi-se esvaindo na racionalidade (na minha racionalidade) e na indiferença (não acredito mas, acima de tudo, não penso no assunto). Ainda assim, incomoda-me o carácter cada vez mais laico do Natal. Incomodam-me os esforços que se fazem para extrair dele a religião, alegando respeitos para com quem não deveria ter motivos para se sentir desrespeitado: a matriz de um país - feita também da religião que, mal e bem, o foi construindo - não deveria agredir quando celebrada, apenas quando imposta. A substituição progressiva mas inexorável do Menino Jesus pelo Pai Natal (e eu acho piada à figura acolhedora e transbordante de bonomia do Pai Natal), o frenesi consumista, a repetição anual de reportagens televisivas ocas, os actos formais de prazer duvidoso (os presentes que se compram porque tem de ser, os sublimes jantares de empresa), as manifestações de cariz turístico-comercial que se tornam lugar de semi-indiferente peregrinação (quantas vilas-Natal há hoje em dia?), parecem-me tentativas desesperadas para encontrar um sentido para a quadra, fora daquele que ela possui há séculos. Tentativas inglórias, como seria de esperar: cada vez mais as pessoas julgam pueris os seus esforços e se sentem mais isoladas.

Expurgamos a religião do Natal, esquecendo (ou ignorando) que quase todas as nossas celebrações estão ligadas a ela: a Páscoa, os dias de Todos-os-Santos e de Finados, até esse momento de origem pagã, o Carnaval, último excesso antes da Quaresma. E, na verdade, é melhor quando assim ocorre. Os feriados religiosos têm uma densidade, um peso histórico, social, identitário, que nenhum dos restantes consegue atingir, ainda que pretendam celebrar o país (25 de Abril, 10 de Junho, 5 de Outubro, 1 de Dezembro) ou direitos conquistados (1 de Maio). Não é preciso celebrar a religião para aceitar que o Natal deve ser celebrado com ela. Basta saber aceitar a história e os valores que formam uma verdadeira comunidade: desde logo, a «inclusão» e a «tolerância» de que tanto se fala. Permitam-me pois que os votos de um ateu (creio) sejam de um Santo Natal para todos.



publicado por José António Abreu às 18:00
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Terça-feira, 18 de Dezembro de 2012
Jingle bells, etc, etc

Gostaria de sublinhar: ao contrário do que é habitual nesta altura do ano e constituindo provavelmente apenas mais uma manifestação da minha tendência para contradizer as outras pessoas, até ando com espírito natalício.

Aliás, não é tarde nem é cedo:

Ao contrário do que é habitual nesta altura do ano e constituindo provavelmente apenas mais uma manifestação da minha tendência para contradizer as outras pessoas, até ando com espírito natalício.


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publicado por José António Abreu às 18:00
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Domingo, 25 de Dezembro de 2011
Primeiro balanço

«Então, a noite de Natal foi boa?»

«O normal. Mas o meu Pai Natal não passou.»

«A sério? Começamos bem…»

«Pois.»

«O que é que lhe aconteceu?»

«Morreu. Ataque cardíaco ontem ao fim da tarde. Não fomos avisados.»

«Caraças. Enfim, menos mal. Sempre é uma boa razão. Mas é uma merda que o plano de contingência não tenha funcionado.»

«Não fomos avisados. Tínhamos uns tipos novos prontos para avançar.»

«Não funcionou. Não fomos avisados, não funcionou. Bom, vamos lá. Qual é a taxa, este ano?»

«Setenta e oito vírgula sete por cento.»

«Merda, é menos que o ano passado. Estamos a falhar mais.»

«O pessoal é cada vez pior. E também é verdade que lhes aumentámos o número de casas.»

«Foda-se, antes até tinham tempo para ir para ter sexo com as mães depois de deixarem os presentes aos filhos. Não estamos em tempo disso.»

«Aumentava a natalidade…»

«Não é essa a nossa função. Mostra lá os números.»

«Das residências previstas cobrimos setenta e oito vírgula três por cento, como te disse. Para já, temos um vírgula oito por cento de presentes entregues incorrectamente.»

«Alguns casos graves?»

«Coisas de miúdas entregues a rapazes, um sistema de jogos com óculos 3D entregue a um miúdo cego, trinta e seis pares de luvas oferecidos a crianças sem mãos e, pior (mas acontece todos os anos), dois mil cento e dois pares de meias deixados a miúdos sem pernas. Globalmente, não é mau.»

«Pois, suponho que não.»

«O pior…»

«Sim?»

«Parece que houve confusão com dois lotes de brinquedos.»

«Pronto, lá vamos nós. Então?

«Num dos casos é mais ou menos o costume: anjinhos que vinham com cruzes suásticas e acabámos por deixar seguir.»

«Merda. E o outro?»

«Tudo indica que oferecemos vibradores e outros brinquedos sexuais a uns milhares de miúdas que ainda nem dez anos têm.»

«Estás a gozar.»

«As caixas vinham misturadas com as dos brinquedos de cozinha.»

«Merda. Merda, merda, merda. A fazer asneiras destas como é que podemos esperar manter os patrocínios? A Coca-Cola detesta confusões, pá. Ainda por cima, não é a primeira vez. Lembras-te do ano em que decidiram oferecer às miúdas uma boneca com as cores e o logótipo deles, para as levar a beber tanta Coca-Cola como os rapazes e que alguém decidiu escrever nas caixas para os mercados hispânicos – bem gostava de descobrir o filho da puta mas a verdade é que também não reparámos antes de as distribuirmos – Cocaína, la Heroína de Coca-Cola? Nem sei como escapámos de um processo. Será que não é propositado, pá? A Pepsi ou os islâmicos….»

«Desta vez não me parece. Foi só porque as caixas vinham misturadas e ninguém percebeu que king size battery operated vibrating dildo não se referia a uma varinha mágica.»

«Varinha mágica… pelo amor de Deus. Bom, pode ser que as mães até fiquem satisfeitas e não nos chateiem muito. E o resto?»

«O resto correu bem. Tirando o facto de termos perdido mais Pais Natais.»

«Diz-me.»

«Treze caíram do trenó em pleno voo, vinte e seis morreram asfixiados em lareiras acesas, quatro foram mortos pelas renas (aparentemente revoltando-se na sequência de maus tratos – é capaz de haver um caso com contornos sexuais), sete foram atropelados por aviões, um foi atropelado por um comboio, seis…»

«Um comboio

«Sabes como eles às vezes cedem aos pedidos das renas e pousam em cima dos vagões para que elas descansem um pouco entre zonas de distribuição? Aliás, temos quase sempre uns acidentes devido a túneis. Este ano foram, hmmm, quarenta e nove, mas só oito resultaram em morte do Pai Natal.»

«Oito. Impressionante..»

«Não é muito, considerando a nossa abrangência geográfica. Pelo menos foi melhor do que no ano passado.»

«Ok, está bem, mas e o atropelado?»

«Foi em Portugal. Os comboios estavam parados por causa de uma greve e o gajo decidiu seguir pelos trilhos. Pelos vistos, a adesão não era de cem por cento.»

«Filhos da puta dos latinos, nunca levam as coisas a sério. Continua.»

«Seis despenharam-se por causa de tempestades, três acertaram em campanários e similares, catorze foram mortos a tiro (cinco dos quais no Texas) e ainda não temos informação de cento e dois.»

«O nosso prémio do seguro vai disparar.»

«Não são piores resultados do que no ano passado.»

«E o trabalho que foi conseguir a renovação no ano passado… Mas enfim, estamos cá para isso, não é? E acidentes não mortais?»

«Er, bom, o panorama não é melhor. No total, temos quase cinco mil acidentes. A maioria são coisas ligeiras como fracturas de dedos e braços na sequência de quedas, queimaduras tanto por causa das lareiras como por causa do frio (há pelo menos um Pai Natal que vai perder o nariz) e entorses ao descer do trenó. Mas também há situações mais graves como traumatismos cranianos, fracturas expostas e dois casos previsíveis de paraplegia.»

«Foda-se.»

«Pois. E, já no campo das doenças, ainda temos umas centenas de gripes e pelo menos trinta pneumonias.»

«Mais nada?»

«Há os desaparecidos mas já te falei deles. Cento e dois, até ao momento em que saí lá de baixo.»

«Alguns casos especiais?»

«A maioria será desvio de material, como de costume. Vamos descobri-los para aí no Rio de Janeiro, tentando vender barretes de lã e Ferreros Rocher na praia de Ipanema. Mas desconfiamos que pelo menos vinte foram presos. Faziam a distribuição em países de maioria não-cristã: Irão, Iémen, Sudão…»

«Então podes acrescentá-los às vítimas mortais.»

«Talvez não. Já temos trocado alguns.»

«Eu sei. Custa-nos um balúrdio em assinaturas da Hustler. E as renas?»

«Cerca de onze mil baixas. Mais dois por cento que no ano passado.»

«Se o Greenpeace sabe, estamos fodidos. Bom, mais alguma coisa?»

«Nada de… Desculpa, é o meu. Deixei-o ligado para o caso de chegarem informações importantes.»

«Atende.»

«Sim?... Eu mesmo… Diga… Não! Mas… OK, deixe lá. Obrigado.»

«O que foi agora?»

«Podemos ter um problema diplomático.»

«Conta.»

«Um dos desaparecidos…»

«Sim?»

«Passou-se. Está no topo do minarete da mesquita de Meca a gritar ‘ho-ho-ho’.»

«Merda.»

«E não é tudo.»

«Então?»

«Além de ‘ho-ho-ho’, grita ‘chamem-me Maomé’.»

«Merda, merda.»

«E…»

«Ainda há mais?»

«Tirando as barbas e o barrete, está nu.»

«Merda, merda, merda.»

«E...»

«Foda-se, ainda há mais?»

«Está a beber uma Coca-Cola



publicado por José António Abreu às 15:48
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Terça-feira, 28 de Dezembro de 2010

A única conclusão a que chegara em todo aquele tempo que passara na basílica de Guadalupe fora que a fé é, certamente, uma realidade psicológica, e que quando não é convidada a fixar-se sobre coisas invisíveis invade as visíveis e monta uma enorme confusão.

Robertson Davies, O Quinto da Discórdia.

Edição Ahab, tradução de Maria João Freire de Andrade.



publicado por José António Abreu às 21:23
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Sábado, 25 de Dezembro de 2010
Conto de Natal

Era de prever. Levava-a fisgada, claro. Logo que a sentaram ao colo do Pai Natal, na praça do Centro Comercial, olhou para cima, para a imensa barba branca, e franziu ligeiramente os olhos, numa expressão que o pai conhecia bem: usava-a sempre que um plano dava certo. O Pai Natal fez-lhe uma pergunta mas, em vez de responder, ela estendeu a mão, agarrou a barba e puxou com força. A barba afastou-se cerca de dez centímetros da cara do Pai Natal. Ela sorriu em triunfo. As crianças que aguardavam vez gritaram. O Pai Natal sobressaltou-se e quase a deixou cair. Isto fez com que ela largasse a barba que, pelo efeito do elástico, embateu com força na cara espantada do Pai Natal. Ele soltou um grito estranhamente agudo e tê-la-ia deixado cair dos joelhos se o pai não a estivesse já a agarrar. Quando a levou dali, ela não parava de dizer: «Não é verdadeira. É falsa. O Pai Natal é falso.»

Soube há pouco da história, durante o almoço de Natal. Fui ter com ela. Sentei-a no sofá a meu lado. «Tenho que contar-te um segredo.» E disse-lhe:

«Foi no ano passado. Estava tudo pronto no Pólo Norte: os presentes embrulhados e metidos no saco; o trenó com patins novos e a revisão dos cinco milhões de quilómetros efectuada; as renas bem alimentadas, bem penteadas e em excelente forma física: tinham andado a ser treinadas durante meses, fazendo provas de força contra ursos polares e voando até mais de um quilómetro de altura por várias vezes; as coordenadas GPS (é uma maneira de se encontrarem os sítios) de todas as casas onde residem crianças cristãs, crianças que, mesmo não sendo cristãs foram muito bonzinhas durante o ano ou podem vir a ser cristãs no futuro (o aumento do número de casamentos entre pessoas de diferentes religiões dificultou muito o trabalho de selecção do Pai Natal nos últimos anos) e crianças que, apesar de se terem portado mal, são familiares dos principais financiadores do Pai Natal, introduzidas no sistema de navegação do trenó, com a rota definida de modo a aproveitar os ventos e a evitar as tempestades. Tudo pronto, apesar das dificuldades encontradas durante o ano anterior.»

«Dificudades?»

«Sim. Muitas dificuldades. Tudo começou com os problemas de financiamento – quer dizer, era muito difícil arranjar dinheiro para fabricar os brinquedos. As empresas que costumavam dar dinheiro à empresa do Pai Natal, e embora os seus chefes tenham pedido muitas desculpas, tinham cortado nas doações. O aumento do preço dos combustíveis tinha levado a uma enorme subida da factura de energia, que é uma das fatias maiores dos custos de operar a partir do Pólo Norte. Tornou-se difícil pedir dinheiro emprestado aos bancos porque os spreads (sabes o que são spreads? Não importa, é uma coisa má que os adultos têm de suportar quando pedem dinheiro emprestado) eram cada vez mais elevados. A situação agravou-se ainda mais quando duas das três agências internacionais de notação (não posso evitar as palavras difíceis, querida, mas vais ver que no fim percebes) tinham baixado o rating da empresa de fabrico e distribuição de brinquedos do Pai Natal, por considerarem que uma empresa com problemas de localização e que não cobrava dinheiro pelos produtos que fazia estava especialmente mal preparada para enfrentar a crise. Em Março, o Pai Natal foi forçado ao despedimento colectivo de dois terços dos duendes, que ficaram muito zangados até porque não há mais empresas no Pólo Norte nem sistemas de segurança social.»

«Então o Pai Natal é mau?»

«Não, as pessoas às vezes têm que fazer coisas que parecem más mas é por um bom motivo. Se ele não fizesse isso todos ficariam no desemprego e os meninos do mundo inteiro não recebiam os presentes de Natal.»

«Ah.»

«Em Abril, o fabrico dos brinquedos foi transferido para a China, no que se revelou um terrível pesadelo logístico. O sistema de qualidade da empresa do Pai Natal obriga a que nenhum brinquedo para crianças com menos de três anos – tu já tens mais, não já? Já és uma menina crescida –, nenhum brinquedo, dizia eu, pode ter peças que possam ser engolidas e as tintas usadas em todos os brinquedos não podem fazer mal à saúde e, se possível, até devem ser gostosas e, assim, de modo a garantir a qualidade da produção, os duendes restantes eram forçados a muitas viagens à China, onde alguns desapareceram, não se sabe se por terem-se apaixonado por meninas orientais, acontecimento muito comum devido – é o que se pensa – a serem da mesma altura, se por terem sido mortos e servidos como pratos afrodisíacos em restaurantes de Pequim.»

«O que é afrosídiacos?»

«É a mesma coisa que ‘muito bom’. São pratos que dão um grande prazer durante muito tempo.»

«Como chocolate?»

«Exactamente. Como chocolate.»

«Ah. Mas então os chineses comem duendes?»

«Não se tem a certeza.»

«São maus?»

«Os chineses?»

«Sim.»

«Não. Quer dizer, mais ou menos. Mas podes estar descansada que eles não comem criancinhas. Isso era mais os russos. Acho eu.»

«Ahn?»

«Nada, esquece. Vou continuar a história, está bem?»

«Está.»

«O desaparecimento de tantos duendes deixou ainda mais trabalho para os restantes. Alguns exigiram subsídios de deslocação, que o Pai Natal foi obrigado a recusar porque as despesas com viagens tinham quadruplicado em relação aos anos anteriores e ele estava a tentar poupar para outra coisa: desde que tivera de dispensar o pessoal doméstico, a Mãe Natal exigia uma série de electrodomésticos para lhe facilitar a vida em casa e ameaçava passar a dormir noutro quarto, que era uma coisa que o Pai Natal não queria porque depois a rena Rodolfo ia querer dormir com o Pai Natal e o Pai Natal sabia que ela ressonava.»

«Como o papá?»

«Er, sim, provavelmente.»

«A mãe também diz que vai dormir para outro quarto.»

«Er, ok. Vamos continuar, está bem?»

«Está.»

«As despesas com viagens tinham então aumentado imenso, até porque não há companhias de aviação low cost (são as que fazem preços mais baratos) a operar no Pólo Norte. O único ponto positivo era que, com as milhas acumuladas, o Pai Natal esperava poder oferecer à Mãe Natal uma viagem de sonho às Maldivas (que são umas ilhas com praias bonitas) depois do Natal. A situação estava neste ponto quando os brinquedos chegaram da China e o Pai Natal teve mais uma péssima surpresa: o papel em que vinham embrulhados tinha a imagem de pequenos Confúcios, que é como se fosse um Deus chinês, em vez de Meninos Jesus. Foi preciso desembrulhar todas as prendas e voltar a embrulhá-las com um papel mais adequado: como já era Novembro e não havia dinheiro, usou-se papel de patrocinadores, lojas como a Toys ‘r’ Us e a Worten ou empresas como a Coca-Cola, que sempre manteve uma excelente relação com o Pai Natal. Para que tudo estivesse pronto a tempo, foi preciso readmitir parte dos duendes despedidos. Fizeram-se contratos com a duração de apenas um mês mas foi preciso pagar-lhes um valor muito elevado, quase o triplo do que eles ganhavam antes.»

«Bem feito.»

«Exacto. Chama-se a isto ‘economia de mercado’. Em meados de Dezembro chegou a última crise: a Mãe Natal, ainda sem os electrodomésticos que desejava, recusou-se a preparar a roupa vermelha e branca do Pai Natal. ‘Não a vou lavar à mão e secar à lareira’, disse. O Pai Natal contactou novamente as tais lojas de patrocinadores mas havia tempestades fortes nos céus da Europa e da América do Norte e era muito difícil fazer os electrodomésticos chegar ao Pólo Norte. Tentou convencer as renas a irem buscá-los mas elas recusaram. Se o tempo estava mau para os aviões, argumentaram, imagine-se o esforço que seria para elas. A menos, claro, que o Pai Natal pagasse a deslocação. Por uma questão de princípio, o Pai Natal recusou. Finalmente conseguiu que, por um preço quase tão elevado quanto o que as renas pediam, lhe enviassem por trenó puxado por cães (que são animais que trabalham por pouco dinheiro, desde que sejam levados a pensar que estão a divertir-se) uma máquina de lavar e outra de secar roupa de uma fábrica da Electrolux, perto de Estocolmo (que é uma cidade da Suécia, não muito longe do Pólo Norte). A Mãe Natal não ficou totalmente satisfeita (queria também uma máquina de lavar louça, um microondas e um ferro de engomar com caldeira) mas acabou por ceder e tratou da roupa do Pai Natal.»

«Ele não podia tratar dela sozinho?»

«Boa pergunta. E tens razão: ele devia saber fazer essas coisas. Mas o Pai Natal é velhote e nunca lhas ensinaram.»

«Mas podia aprender.»

«Talvez ainda aprenda. Vamos continuar, está bem? Estava, pois, tudo pronto na tarde do dia vinte e quatro. Foi então que o Pai Natal decidiu ir arranjar a barba e o cabelo, para estar bonito na noite mais importante do ano. Sentou-se na cadeira do barbeiro da pequena aldeia do Pólo Norte e, como costumava fazer, adormeceu de imediato. Nessa altura os duendes despedidos, há muito decididos a vingarem-se, invadiram a barbearia, arrastaram o barbeiro para a sala dos fundos e ataram-no com restos do fio de embrulho. Depois subiram para cadeiras e raparam o cabelo e a barba ao Pai Natal.»

«Então os duendes são maus?»

«Não. Às vezes as pessoas que têm pouco poder têm de defender os seus interesses e mostrar que não gostaram do que lhes fizeram. E eles não aleijaram o Pai Natal; apenas lhe cortaram a barba e o cabelo. Quando acordou e se viu ao espelho, o Pai Natal apanhou um grande susto e quase teve um ataque cardíaco (que era uma coisa que ele sabia poder acontecer-lhe, porque o médico lhe dizia há anos para comer menos e emagrecer). Saiu da barbearia a gritar e, enterrando as pernas na neve, observado por todos os habitantes da aldeia que se riam às gargalhadas, correu para casa. 'Está tudo perdido', lamentou-se. 'Não é possível que o Pai Natal não tenha barba nem cabelo. O que vou fazer?' A Mãe Natal não se alarmou. Foi buscar duas esfregonas de limpar o chão (uma nova, a outra já um pouco usada) e construiu uma cabeleira e uma barba falsas. Colou-as à cabeça do Pai Natal com fita adesiva e disse-lhe: 'Pronto, servem muito bem e até te dão um aspecto mais moderno.' O Pai Natal não ficou totalmente convencido mas nada podia fazer. Duas horas depois saiu para a sua volta da noite de Natal e desde então, enquanto o seu próprio cabelo e barba não voltam a crescer (vão ser precisos muitos anos), usa barba e cabeleira postiças. É por isso que elas se soltam quando alguém as puxa. Mas isso não significa que não se esteja perante o verdadeiro Pai Natal. E também já percebes por que é que ele fica envergonhado quando alguém faz o que tu fizeste.»

Os olhos dela estavam agora brilhantes. Receei que chorasse. Sorri-lhe.

«Mas tu não voltas a fazê-lo, não é? E vais ser especialmente boazinha para ele, quando o vires, não é?»

Fez que sim com a cabeça.

«Óptimo. E também há boas notícias, pequenina, sabes? Para agradecer à Mãe Natal, o Pai Natal ofereceu-lhe a melhor máquina de secar roupa, o melhor microondas e o melhor ferro de engomar com caldeira que encontrou. E hoje estão os dois a caminho das férias nas Maldivas.»

Depois de uma ligeira hesitação, sorriu. Achei melhor ficar por ali e devolvi-a aos pais. 



publicado por José António Abreu às 16:45
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Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2010
Feliz Natal para almas perdidas

 

Calling on Mary is voluntary
Unless you're alone like me
If there's a star above, then it can look like love
When they light up the Christmas tree

 

And to all the lost souls down below:
Merry Christmas, Merry Christmas
What's one more drifter in the snow?
Merry Christmas, Merry Christmas

 

(De One More Drifter in the Snow, de Aimee Mann, um dos raros álbuns de Natal que valem a pena.)



publicado por José António Abreu às 20:00
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Controlo de natalidade

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publicado por José António Abreu às 14:51
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Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010
Presentes de Natal

Fascinam-me os milhões de presentes inúteis que se oferecem no Natal. (Noutras alturas do ano também se oferecem muitos mas no Natal a coisa torna-se demasiado evidente.) Por «inúteis» não quero dizer que não sirvam o seu principal propósito: mostrar a quem recebe que o ofertante pensou nele (com prazer ou enfado, mas essa é outra história). Quero dizer que são presentes – milhões de presentes – rapidamente abandonados a um canto por não terem qualquer outra verdadeira utilidade, ou usados com um suspiro de resignação, como os proverbiais pares de meias, ou ingeridos e imediatamente esquecidos, como os Ferrero Rocher ou Mon Chéri que (melhoria dos níveis de vida oblige) vêm tomando o lugar das meias (o que seria da Ferrero sem o Natal?). Presentes comprados por quem não faz ideia do que os outros gostariam de receber (qual a lógica de dar presentes a pessoas de quem se ignoram os gostos?) nem tem coragem para recusar a pressão da conformidade. Para alguém como eu, que não compra presentes de Natal (a sério: nem um) e apenas os entende quando ofertados a crianças (a crescente infantilização da sociedade também se vê na forma como progressivamente os adultos se vão apropriando dos actos que costumavam ter por alvo apenas as crianças), o Natal é, crenças religiosas à parte, uma aberração de consumismo inútil. E de hipocrisia, e de falta de coragem. É verdade que as livrarias (por exemplo) também estão cheias de gente. É inútil oferecer livros? Talvez não. Mas aposto que uma elevada percentagem dos que oferecem livros o fazem jogando «pelo seguro». Um Dostoievski para a tia Deolinda? O último Vargas Llosa para o primo Abílio? Nah, é melhor não arriscar. Sem o Natal, José Rodrigues dos Santos, Margarida Rebelo Pinto e Miguel Sousa Tavares venderiam metade dos livros que vendem. No Natal, os livros também não passam de pares de meias ou de caixas de Ferrero Rocher.


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publicado por José António Abreu às 15:50
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Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010
Espírito natalício

É só de vez em quando. Muito de vez em quando. Não mais de três ou quatro vezes por dia. Cinco, no máximo. Pronto, de modo a abranger aqueles dias já não exactamente típicos, que sejam seis. É só quando olho para cima, e nem sempre. O quê? A vontade que me surge de comprar uma caixa de chumbos, pegar na velha pressão de ar que o meu pai me ofereceu quando eu era miúdo e ninguém usa há décadas, e sair por ai atingindo Pais Natais agarrados a fachadas de prédios. Não procuraria atingi-los nas zonas vitais. Não, nada disso. Tentaria posicionar-me de lado e acertar-lhes nos dedos das mãos, de modo a fazê-los cair. Só pelo divertimento – e para ver se as renas apareciam do nada, voando com o trenó atrás, e os salvavam no último instante, como num filme de super-heróis. Seria catita. O ponto alto do meu Natal. Mas é capaz de ser ilegal e assustar as pessoas.



publicado por José António Abreu às 19:55
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Sexta-feira, 25 de Dezembro de 2009
Doces e dúvidas linguísticas

Não gosto de doces fritos. E não percebo por que razão o doce de Natal não é o Pastel de Nata.


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publicado por José António Abreu às 11:20
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Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2009
Família
In a family, what isn´t spoken is what you listen for. But the noise of a family is to drown it out.
 (…)
Members of a family who’ve lived together in the heated intensity of family life scarcely know one another. Life is too head-on, too close-up. That was the paradox. That was the bent, perplexing thing. Exactly the opposite of what you’d expect. For of course you never give such relationships a thought, living them. To give a thought – to take thought – is function of dissociation, distance. You can´t exercise memory until you’ve removed yourself from memory´s source.
 
Joyce Carol Oates, We Were the Mulvaneys
 
Mas esta não é a época do ano adequada para nos removermos do âmbito familiar e, por conseguinte, para raciocínios minimamente objectivos em torno do que é e como funciona uma família. Esta é a época do ano para mergulhar no tal ruído. Para fazer parte dele. Deixem-se as reflexões – e a tristeza – aos que, por uma razão ou por outra, não têm família.
 
E Bom Natal.


publicado por José António Abreu às 11:44
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Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2009
Alerta Laranja (da Boss, creio)
A quantidade de anúncios televisivos a perfumes tem sido avassaladora nesta época Natalícia (ou pré-Natalícia?). Em certos canais, não deve andar longe de um em cada três. Não me importo. São normalmente bonitos. Mas os possíveis efeitos deixam-me entre a curiosidade e a apreensão. Se a publicidade resultar, Janeiro vai trazer uma explosão de odores. Andar de autocarro ou de metro será uma experiência e tanto.
 
(Quanto aos anúncios, hesito entre uma Charlize Theron dominadora e nua para J'Adore, da Dior, três ex-supermodelos femininos* seminus para um conjunto de perfumes da Dolce & Gabbana, e uma Audrey Tautou totalmente vestida mas com uma Leica M8 nas mãos para o clássico Chanel Nº 5. Hmmm, acho que comigo é tudo ou nada.)
 
* E outros três masculinos mas quem é que se dá ao trabalho de reparar neles e nos seus peitorais depilados? 


publicado por José António Abreu às 08:35
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Segunda-feira, 21 de Dezembro de 2009
Compasso de espera
O Natal bloqueia a criatividade. É uma época em que ser cínico, ou mesmo apenas irónico, parece um acto mesquinho. Mas abraçar o Natal, procurar falar ou escrever sobre os seus pontos positivos (a família, a comunhão, a esperança, a fé), desemboca quase sempre no cliché, numa sensação de mau actor em peça de escola. O Natal está demasiado visto (na TVI perceberam-no e, em vez de O Feiticeiro de Oz ou de Do Céu Caiu uma Estrela, passam Transformers na noite de Natal deste ano). Não pretendo dizer que tudo o que se escreve sobre o Natal é mau. Há quem ainda consiga fazê-lo sem cair no cliché ou no cinismo. Referi um exemplo aqui, num texto que me saiu – que surpresa – negro, tão pouco dentro do espírito Natalício. Mas não eu. E, por isso, nem tento. Mantenho um sorriso nos lábios, como se faz durante momentos embaraçosos, e espero que passe.


publicado por José António Abreu às 11:17
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Quarta-feira, 16 de Dezembro de 2009
Finalmente
Os CTT acabaram de me trazer da Amazon o espírito de Natal.

 

 



publicado por José António Abreu às 19:11
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Quarta-feira, 9 de Dezembro de 2009
A felicidade dos que morrem no Natal
A Eugénia Vasconcellos gosta do Natal. E gosta do Natal de uma forma admirável. Evoca o passado, aceita o presente, une vivos e mortos numa festa em que tudo, mesmo o transcendente, é cem por cento humano. Eu gostava de gostar do Natal do modo como a Eugénia Vasconcellos gosta. Infelizmente, não consigo. Sou incapaz da abstracção e da fantasia que um Natal assim exige. A verdade é que já não sei muito bem o que é o Natal. Desconfio que nem os católicos praticantes sabem actualmente o que é o Natal, assoberbados que andam com a mundana necessidade de gerir a magreza do décimo quarto mês (e que bom é, apesar de tudo, recebê-lo, quando os noticiários nos enfiam pelos olhos e ouvidos adentro – não saberão que é Natal? – os números cada vez mais elevados do desemprego) na compra de presentes para todos os elementos da família, próximos e afastados, mesmo para aqueles que raramente vêem e de quem desconhecem os gostos. Houve um tempo em que as prendas eram apenas para as crianças; agora, toda a gente (estaremos mais infantis ou só mais carentes?) tem direito à sua pequena caixa de Ferrero Rocher, o par de meias da classe média actual. É isto o Natal? Mas há mais coisas que me tornam incapaz de ver o Natal da forma como a Eugénia o vê. Há em mim uma tendência (nata ou inata, nunca descobri) para olhar de soslaio datas em que me dizem o que fazer ou sentir. E, no Natal, essa tendência cresce como pãozinho bem fermentado em forno quente (incapaz de o incluir no sentido do texto, que exista ao menos um pouco de calor nas símiles que utilizo) porque insistem em indicar-me que devo estar feliz, solidário, optimista. Isso lá é coisa que se ordene a alguém? Só naquelas idílicas mas totalitárias sociedades que livros e filmes insistem em mostrar-nos, onde a felicidade é imposta por decreto e qualquer pensamento crítico é duramente punido. Lá chegaremos, talvez. Mas estamos no presente e esta sociedade está longe de ser idílica. Basta percorrer as ruas para perceber que quase toda a felicidade é fingida. As luzes camarárias tremeluzem, pindéricas, os Pais Natal de centro comercial forçam sorrisos e ho-ho-hos para disfarçar as dores nas costas, dos altifalantes pendurados em postes sai uma música insistente e enjoativa, só suportável porque remetida a ruído de fundo, onde se mistura com os passos das pessoas, com o barulho dos automóveis, com o ronco omnipresente da cidade. A felicidade não pode ser o Natal consumista, frenético e barulhento. Pelo contrário, a felicidade talvez seja o silêncio, pontuado, já que é Natal, por exclamações de crianças. Mas onde descobrir silêncio no Natal? E depois há as ausências, um oxímoro que a Eugénia encara com uma bonomia estonteante. Todas as famílias perderam gente por alturas do Natal. Morre-se muito, nesta época. Morre-se de frio (literal e metaforicamente), morre-se de doença (os vírus e as bactérias, quiçá exasperados com a música permanente e com o stresse que sentem no corpo dos hospedeiros, parecem tornar-se mais letais no Natal), morre-se porque não se suporta a exigência de felicidade. Mas a Eugénia aceita que se morra e convoca os mortos com um sorriso caloroso. Oferece-lhes lugares à mesa sem que isso signifique deixar entrar a tristeza na ceia de Natal. Olho para elementos da minha família que caem em depressão nesta fase do ano ao recordar os seus próprios mortos (e meus, suponho) e penso como seria agradável que conseguissem partilhar a visão da Eugénia. Mas não conseguem. Nem eu. Não gosto que se morra nesta época. Não gosto que se morra noutras épocas, também, mas não gosto mesmo nada que se morra mais do que o costume por alturas do Natal. Afinal, felicidade não equivale a morte, pois não? É que parece. Porque querem ser felizes no Natal, as pessoas morrem. Não consigo gostar de um Natal assim. Lamento, Eugénia.


publicado por José António Abreu às 20:34
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