como sobreviver submerso.

Segunda-feira, 9 de Novembro de 2009
Preto-e-branco a cores
É-me difícil pensar no muro de Berlim sem deixar a ficção sobrepor-se à realidade. É-me também difícil pensar em Berlim a cores. Mesmo antes do muro, Berlim era a cidade do «anjo azul»: Marlene, em glorioso preto-e-branco. Depois passou a ser a cidade de Alec Leamas, George Smiley e Harry Palmer. É verdade que Smiley, interpretado pelo fabuloso Alec Guiness, já nos surgiu a cores, na série de TV dos anos oitenta. Ainda assim. Na minha cabeça, Berlim (e o muro) continua a ser um cenário a preto-e-branco. Fascinante mas opressivo. Com controlos de passagem, feixes de luz varrendo as zonas de transição, homens de sobretudo nas sombras. Preto-e-branco como um sonho desconfortável. E não deve acontecer apenas comigo: alguma razão terá levado Wim Wenders a optar pelo preto-e-branco para parte do sublime As Asas do Desejo ou Steven Soderbergh a optar por um preto-e-branco fortemente contrastado para O Bom Alemão.
 
Todavia, ao visitar-se Berlim hoje o preto-e-branco afigura-se incompreensível. Berlim é uma cidade colorida, moderna, cosmopolita. Outros debaterão as questões políticas e económicas, as feridas mal saradas, os saudosismos deslocados. A mim impressiona-me o modo como a cidade assumiu o passado para dar um salto em direcção ao futuro. Por vezes de forma polémica: fosse eu Berlinense (e, desde Kennedy, não o somos todos um pouco?), teria provavelmente combatido algumas das opções tomadas. No fim de contas, colocar uma cúpula de vidro no Reichstag em vez de reconstruir a abóbada de acordo com as características originais é, se analisada friamente, uma opção que não pode deixar de repugnar. Todavia, perante a obra, não consigo deixar de pensar que a decisão faz sentido: não renegando o passado, escolhe-se – porque ele foi doloroso – olhar para o futuro. Há poucos meses escrevi sobre o assunto aqui e, na verdade, nada tenho agora a acrescentar.
 
Ou talvez só mais uma coisa, entrando afinal no campo político. Outras pessoas olham para Berlim e recordam ficção. Outras ficções, mortíferas, que não deviam ter saído do plano ficcional. As mesmas que essas pessoas lembram quando olham para Praga ou para Moscovo ou que ainda vêem em Pyongyang. Esta manhã na TSF Jerónimo de Sousa falava de «outros muros», de «forças progressistas» que incluem o PCP, de como, vinte anos depois da queda do muro, «o mundo está pior». O mundo nunca estará «bem» mas, independentemente do que possa ainda acontecer e porque a liberdade é um valor inegociável e o medo uma realidade inaceitável, ficou melhor no dia em que o muro de Berlim caiu.

Em cima do muro, preto-e-branco e cor.



publicado por José António Abreu às 18:53
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Quarta-feira, 5 de Agosto de 2009
Em Agosto, o frio

Berlim levou-me a reler O Espião que Saiu do Frio, de John Le Carré, do qual a D. Quixote lançou recentemente uma nova edição. Tinha-o lido pela primeira vez há vinte e tal anos, numa adolescência em que devorava histórias policiais e de espionagem. Na altura, e em comparação com livros de Frederick Forsyth, de Ken Follett ou de Robert Ludlum, achei-o muito parado, com uma claustrofobia estranha e ligeiramente repulsiva. A claustrofobia continua lá, a repulsão transmutou-se em fascínio, mas a estranheza decorre agora da circunstância de aquele ser um mundo que não parece ter acabado apenas há vinte anos. É um mundo a preto e branco, como Martin Ritt percebeu quando adaptou o livro ao cinema, ameaçador, uma espécie de Transilvânia política, que encaixa mal na Berlim estival e luminosa onde fui ver os U2. Já o notara e escrevera mas depois de reler o livro tudo se torna ainda mais forte, mesmo quando (apercebo-me na releitura) a maioria do livro não se passa em Berlim (mas o muro e a lógica distorcida que ele reforçou estão sempre presentes). Como imaginar Alec Leamas (um qualquer Alec Leamas real) assistindo à tentativa de fuga de Riemeck (um qualquer Riemeck real) num Ceckpoint Charlie nocturno e desolado? No mesmo Ceckpoint Charlie dos turistas, das fotos nos taipais, do sol? Ou o final, perfeito, sombrio, inevitável, agora que restam apenas pedaços do muro cobertos por horrorosos graffti tornados arte?

 

Em O Espião que Saiu do Frio, Le Carré ainda não atingira o ponto mais elevado dos seus dotes de escritor mas apenas um adolescente inconsciente poderia preferir O Quarto Protocolo ou Triple (histórias cheias de suspense mas sem alma, quais blockbusters de Hollywood) a O Espião que Saiu do Frio. Porque este, sendo ficção, ajuda a relembrar uma era com a estranheza e o horror que se impõem, agora que já poucos indícios físicos restam dela. Há outros casos, claro. Outros livros (a trilogia A Gente de Smiley, do mesmo Le Carré, por exemplo) e vários filmes (veja-se o recente A Vida dos Outros). Apesar de um par de diálogos mais filosóficos sobre as diferenças e semelhanças entre estados totalitários e democráticos quando o jogo é por natureza sujo, O Espião que Saiu do Frio não pretende ser mais que uma história de espionagem e tem uma trama até pouco plausível. Mas recorda bem as lógicas distorcidas (as tais que obrigam todos os intervenientes a sujar as mãos) que se implantam em momentos de tensão política. Como Le Carré escreve no prefácio: o muro era puro teatro, e também um perfeito símbolo da monstruosidade de uma ideologia enlouquecida. Esquecemo-nos com demasiada facilidade do terror.

 



publicado por José António Abreu às 21:56
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