Em cima do muro, preto-e-branco e cor.
Berlim levou-me a reler O Espião que Saiu do Frio, de John Le Carré, do qual a D. Quixote lançou recentemente uma nova edição. Tinha-o lido pela primeira vez há vinte e tal anos, numa adolescência em que devorava histórias policiais e de espionagem. Na altura, e em comparação com livros de Frederick Forsyth, de Ken Follett ou de Robert Ludlum, achei-o muito parado, com uma claustrofobia estranha e ligeiramente repulsiva. A claustrofobia continua lá, a repulsão transmutou-se em fascínio, mas a estranheza decorre agora da circunstância de aquele ser um mundo que não parece ter acabado apenas há vinte anos. É um mundo a preto e branco, como Martin Ritt percebeu quando adaptou o livro ao cinema, ameaçador, uma espécie de Transilvânia política, que encaixa mal na Berlim estival e luminosa onde fui ver os U2. Já o notara e escrevera mas depois de reler o livro tudo se torna ainda mais forte, mesmo quando (apercebo-me na releitura) a maioria do livro não se passa em Berlim (mas o muro e a lógica distorcida que ele reforçou estão sempre presentes). Como imaginar Alec Leamas (um qualquer Alec Leamas real) assistindo à tentativa de fuga de Riemeck (um qualquer Riemeck real) num Ceckpoint Charlie nocturno e desolado? No mesmo Ceckpoint Charlie dos turistas, das fotos nos taipais, do sol? Ou o final, perfeito, sombrio, inevitável, agora que restam apenas pedaços do muro cobertos por horrorosos graffti tornados arte?
Em O Espião que Saiu do Frio, Le Carré ainda não atingira o ponto mais elevado dos seus dotes de escritor mas apenas um adolescente inconsciente poderia preferir O Quarto Protocolo ou Triple (histórias cheias de suspense mas sem alma, quais blockbusters de Hollywood) a O Espião que Saiu do Frio. Porque este, sendo ficção, ajuda a relembrar uma era com a estranheza e o horror que se impõem, agora que já poucos indícios físicos restam dela. Há outros casos, claro. Outros livros (a trilogia A Gente de Smiley, do mesmo Le Carré, por exemplo) e vários filmes (veja-se o recente A Vida dos Outros). Apesar de um par de diálogos mais filosóficos sobre as diferenças e semelhanças entre estados totalitários e democráticos quando o jogo é por natureza sujo, O Espião que Saiu do Frio não pretende ser mais que uma história de espionagem e tem uma trama até pouco plausível. Mas recorda bem as lógicas distorcidas (as tais que obrigam todos os intervenientes a sujar as mãos) que se implantam em momentos de tensão política. Como Le Carré escreve no prefácio: o muro era puro teatro, e também um perfeito símbolo da monstruosidade de uma ideologia enlouquecida. Esquecemo-nos com demasiada facilidade do terror.
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