Há uns anos, ao ver os primeiros episódios da série Girls (tão recente e já tão imitada que até fica difícil recordar quão inovadora foi), lembrei-me de O Animal Moribundo, de Philip Roth. A certa altura, o professor David Kepesh afirma:
Enquanto cresci, o homem não era emancipado no reino sexual. Era um homem de segunda apanha. Era um ladrão no reino sexual. Surripiávamos uma apalpadela. Roubávamos sexo. Adulávamos, suplicávamos, lisonjeávamos, insistíamos - todo o sexo exigia luta, tinha que ser disputado aos valores, senão à vontade da rapariga.
Mais tarde, referindo-se à actualidade (de 2001), acrescenta:
Aparecem antigas namoradas de há vinte e trinta anos. Algumas já se divorciaram numerosas vezes e outras têm andado tão ocupadas a afirmarem-se profissionalmente que nem tiveram a oportunidade de casar. As que ainda estão sós telefonam-me para se queixarem daqueles com quem se encontram. Os encontros são detestáveis, os relacionamentos são impossíveis, o sexo é um risco. Os homens são narcisistas, não têm sentido de humor, são doidos, obsessivos, autoritários, grosseiros, ou então são muito bem-parecidos, viris e cruelmente infiéis, efeminados, ou são impotentes, ou são simplesmente demasiado estúpidos. (*)
A abordagem da revolução sexual ocorrida na década de 1960 é quase sempre feita partindo da perspectiva feminina. Antes de qualquer outra análise, salienta-se o modo como a pílula e a evolução dos costumes libertaram as mulheres para o sexo sem (demasiados) receios. Mas a liberdade feminina também representou o fim da submissão masculina a qualquer tipo de compromisso. O facto de, ao longo das últimas décadas, as mulheres terem exigido e obtido não apenas o mesmo estatuto no que respeita ao sexo, mas poder total sobre os seus corpos - incluindo o de terminar gravidezes indesejadas - foi extraordinariamente libertador para os homens. O esforço de cortejar, apoiar, assumir responsabilidades tornou-se-lhes opcional, em especial quando favorecidos pelo sorteio genético (i.e., quando atraentes). Nem sequer as regras do politicamente correcto - em muitos sentidos, a prisão dos tempos actuais - os forçam ao que quer que seja: adquirida a igualdade, as mulheres perderam o direito a queixarem-se de terem sido iludidas. Durante séculos, no mundo «civilizado», os homens viram-se obrigados a conjugar instintos e convenções sociais. Agora, estão livres para dar largas ao egoísmo. Às acusações de insensibilidade, podem responder que se limitam a «dar espaço» às mulheres; que estão a «respeitar» a «autonomia» delas.
Nos primeiros tempos de Girls, esta realidade saltava à vista. Hannah desesperava com a passividade de Adam. Para ele, a relação apenas parecia existir enquanto decorria o acto sexual. Em todos os outros momentos, Hannah sentia-se esquecida: ele não telefonava, não respondia às mensagens, demonstrava indiferença quando a encontrava. Fleabag, uma série de 2016 produzida pela BBC e pela Amazon, escrita e interpretada por Phoebe Waller-Bridge, atinge um novo extremo. Apresenta uma mulher que parece vogar entre relações sexuais sem significado (mas não sem consequências), nas quais se submete (sem ser explicitamente forçada) a actos que tem dificuldade em racionalizar. Tudo estaria bem se não as usasse como forma de evitar enfrentar o vazio e a infelicidade que a dominam. Fleabag vai tão longe que se permite incluir um indivíduo nada atraente e bastante irritante no séquito de homens que não têm qualquer dificuldade em ir para a cama com ela.
Sejamos francos: nas últimas décadas, o sexo tornou-se um produto de consumo como qualquer outro; mais uma forma semidescartável de sentir algo, totalmente desligada de sentimentos profundos. Em 1975, Woody Allen afirmava: «O amor é a resposta, mas enquanto se espera pela resposta, o sexo coloca perguntas interessantes.» A resposta continuará a mesma, mas as perguntas parecem ter vindo a perder interesse. Se a consequência óbvia de tanto desejo de independência (por parte das mulheres como por parte dos homens) é a solidão, a consequência óbvia de tanto sexo (real, imaginado, visualizado em ecrãs e na rua) só pode ser a banalização do acto e dos termos que se lhe referem. Em Os Livros que Não Escrevi, George Steiner dedica um capítulo à linguagem do erotismo. Considera-a - como ao próprio acto - cada vez menos subtil, mais baseada nos códigos instituídos pelo cinema, pela televisão, pela publicidade. Escreve ainda: Será fascinante descobrir os novos factores de complexidade e os contributos enriquecedores que poderão vir das correntes feministas. Produziram já uma poesia poderosa e uma prosa acusadora. Poderá a sua política da sensibilidade ser causa de novas orientações e de uma criatividade nova nos dialectos do amor? Até ao momento, os indícios nesse sentido são marginais. O que parece prevalecer entre as mulheres emancipadas é a adaptação, quase desdenhosa, do que eram a obscenidade e a licenciosidade clandestina do discurso masculino.(**)
Talvez não apenas do discurso. Talvez de todo o comportamento. Sexualmente, as mulheres parecem-se cada vez mais com os homens. Mas isso - a acreditar em exemplos como Girls e Fleabag, eles próprios, será conveniente ressalvá-lo, provenientes da cultura cinematográfica e televisiva - não parece torná-las felizes. À liberdade, que neste campo tende a equivaler a quantidade, contrapõe-se a estandardização (nada é novo, pouco permanece tabu), e o novo poder masculino: um egoísmo assumido, que a igualdade torna inatacável.
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(*) Edição Dom Quixote, 2006, p. 61 e 91, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.
(**) Edição Gradiva, 2008, p. 132, tradução de Miguel Serras Pereira.
Numa parede do Porto.
Olho para a frase acima e pergunto-me se George estaria certa - e, nesse caso, que diabo se passa na cabeça de um homem capaz de a escrever.
Claro que Love, Nina decorre no início da década de 1980. Talvez hoje em dia mais mulheres pintem coisas no chão e nas paredes. Não daria um grande sinal do rumo da evolução feminina (há actos tipicamente masculinos que, podendo remeter para instintos antigos de marcação do território, são hoje apenas estúpidos) nem faria com que esta mensagem ficasse aceitável, mas sempre a tornaria um pouco menos ilógica.
No que me diz respeito, chegar perto dos cinquenta e começar a apreciar raparigas com idade para serem minhas filhas gera uma perturbação não mais do que ligeira. Pior é perceber que algumas delas são filhas de amigas e/ou colegas que fizeram - e, em muitos casos, ainda fazem - parte das minhas fantasias.
Os homens são capazes de ignorar a fome e ir à procura de um par. Um novo estudo feito numa espécie de vermes comprovou que a culpa não é propriamente deles, mas sim do seu cérebro.
Confesso: a primeira coisa que fiz, ainda antes de ler o artigo, foi verificar se tinha sido escrito por uma mulher. Em primeiro lugar pela deliciosa associação entre homens e vermes (eu sei que o estudo foi mesmo realizado em vermes mas talvez fosse mais correcto e abrangente usar «machos» em vez de «homens»). Depois pela igualmente deliciosa facilidade com que se aceita a extrapolação do comportamento dos referidos vermes para o ser humano, deixando de lado eventuais diferenças a nível de - sei lá - número de neurónios. Finalmente pelo ainda mais delicioso recurso à velha dicotomia corpo-mente, na tentativa magnânima de desculpar essas criaturas vermiculares e desprovidas de neurónios, os homens (obrigado, Carolina; se vieres ao Porto nos próximos tempos avisa e vamos jantar, OK?; ou então até podemos saltar o jantar, que para mim é secundário). Porque a culpa (e tanto haveria a dizer sobre o facto de, mesmo após a ciência justificar o comportamento, poder continuar a associar-se-lhe o conceito - a ter de culpar-se alguém, que tal escolher Deus?) é do cérebro, não é propriamente dos homens. Só uma mulher podia considerar que quaisquer seres humanos - machos, fêmeas, hermafroditas - se definem por factores externos ao cérebro.
Nota 1. Como o meu sentido de humor não é partilhado por toda a gente - mas Kafka também se ria ao ler as suas histórias aos amigos e poucos leitores delas fazem o mesmo desde então -, fica o alerta: este texto contém ironia e pretende ser uma provocação benigna.
Nota 2. Não, não estou a comparar o que escrevo ao que Kafka escrevia. Em contrapartida, a minha vida é quase tão excitante quanto foi a dele.
Nota 3. Agora vou dar descanso aos neurónios que não tenho, parar com estas notas e entreter-me a observar as mulheres que andam por aqui, OK?
Nota 4. Estranho. Estou com fome.
Lytton Strachey, o amigo de Woolf com quem ela esteve comprometida a certo ponto, teve numerosas relações homossexuais, muito embora também ele tenha assentado num arranjo de longa duração, no seu caso com Dora Carrington, uma jovem mulher que o adorava, e o marido dela, Ralph Partridge, que ele adorava.
Sandra M. Gilbert, introdução a Orlando, de Virginia Woolf, edição Penguin Classics. Tradução minha.
Resta a questão: quem adorava a Dora? Desde que Ralph a adorasse, era o triângulo perfeito.
Agora desculpem mas vou ver a sessão desta tarde, que deixei a gravar. A Lolo não está em Moscovo (snif) mas o heptatlo acabou hoje.
Nas fotos, da direita para a esquerda e de cima para baixo: Dafne Schippers (Holanda); Ellen Sprunger (Suíça); Ganna Melnichenko (Ucrânia); Grit Šadeiko (Estónia); Györgi Farkas-Zsivoczky (Hungria); Ida Marcussen (Noruega); Karolina Tyminska (Polónia); Katarina Johnson-Thompson (Grã-Bretanha); Kristina Savistkaya (Rússia); Laura Ikauniece (Letónia); Mari Klaup (Estónia); Nadine Broersen (Holanda); Nafissatou Thiam (Bélgica); Sharon Day (EUA); Yasmina Omrani (Argélia).
- As empresas fabricantes de calçado são isentadas do pagamento de IRC.
- É criada nova taxa de IVA de 50%, a aplicar a bilhetes de futebol, de touradas, de combates de boxe e de bilhetes de cinema para filmes com mais de três explosões ou duas perseguições de automóvel. Em contrapartida, os bilhetes de cinema para comédias românticas baixam para a taxa reduzida.
- Com excepção dos de culinária, dos de auto-ajuda e dos escritos por Nicholas Sparks ou Nora Roberts, os livros transitam para a taxa normal de IVA.
- A percentagem do valor do IVA respeitante a refeições dedutível no IRS quadruplica se as refeições forem constituídas apenas por saladas e águas sem gás (ou sumos naturais). No caso de cabeleireiros, o valor da dedução pode atingir seis vezes o actual mas introduz-se uma avaliação de necessidade e mérito, a qual exige o envio de prova fotográfica das operações realizadas para a Autoridade Tributária e Aduaneira (de modo a evitar problemas com a comissão de protecção de dados, ficam de fora da necessidade de prova fotográfica as depilações a partes íntimas).
- Gastos com cosméticos, perfumes, shampoos, amaciadores, produtos de higiene feminina e produtos de decoração de interiores passam a poder ser deduzidos no IRS.
- Os escalões do imposto automóvel passam a ser definidos pela cor do veículo.
A ministra propõe ainda que as negociações com a Troika sejam marcadas para dias com conjugação astral favorável e que seja criada legislação obrigando os fornecedores do serviço de correio electrónico a bloquear cópias das mensagens para fora dos seus servidores e a apagá-las automaticamente noventa dias após a data do seu envio.
(Adeus. Volto quando toda a gente tiver dado várias voltas ao aquário.)
Diz que no ginásio dela anda a Jessica Rabbit. «A sério, tem cabelo comprido, ruivo – quer dizer, é mais para o acobreado –, liso, que – é incrível – não sai do lugar faça ela o que fizer! E depois usa roupas justas, uns tops que, pfffff... Tem uma cintura super fina... super fina!, e um rabo que... bolas!» Apanhou-a num aparelho para exercitar as coxas. «Eu ia fazer com quinze ou vinte quilos. Ela estava a fazer com trinta e cinco. Trinta e cinco! É o que os homens fazem. Alguns nem isso.» Odeia-a, claro. Mas não consegue evitar referir-se-lhe com uma considerável dose de respeito na voz.
(Entretanto, talvez já fosse altura de eu me inscrever num ginásio...)
Ele era um adulto consciente de que não podia ter tudo, tal como uma mulher alegre e ao mesmo tempo deprimida em seu nome.
Regresso do almoço. Cruzo-me com uma mulher que traz um cão pela trela. Fico com a certeza de não pertencer à fatia de humanos que anda a prestar mais atenção aos animais do que a outros humanos. De tal modo que nem me lembro da raça do cão. Se é que não era um gato.
(É que serem melhores em medicina, direito e investigação científica um tipo ainda encaixa, agora ao volante... Bom, mantenhamos a calma: uma oval é uma pista fácil, com poucas curvas – e todas para o mesmo lado.)
Os olhos dela eram faróis bi-xénon iluminando a escuridão.
Tinha mamas empinadas como um chapéu do Totti.
A sua voz conseguia ser tão suave como um Aventador ao ralenti e tão agressiva como um tema do Trent Reznor.
Respondia melhor ao toque dos dedos que um oled capacitivo.
De mini-saia e sapatos de salto alto parecia um carro desportivo com jantes de vinte polegadas.
Tinha contornos com mais polígonos do que Mona Sax ou Lara Croft e também era muito mais perigosa.
Ao fazer amor, mudava de ritmo como uma caixa de dupla embraiagem.
Amá-la era um call of duty, que ela o amasse uma medal of honor.
Domá-la era tão impensável como controlar sem mãos uma Panigale a alta velocidade.
Tinha um riso tão cristalino como o tweeter das melhores Sonus Faber.
Sabia usar o corpo de tal modo que o remetia para os clássicos da Private.
Carícias dela faziam-no vibrar mais do que o Dualshock.
Desconheço se ela cantou isto no concerto do mês passado em Lisboa. Fica aqui com uma dedicatória às raparigas desiludidas com os homens e em busca de alternativas. Mas atenção: alguns babam-se, outros largam muito pêlo e quase todos acabam por constituir excelentes pretextos para os homens meterem conversa.
Adenda 1: O "quase todos" exclui chihuahuas, que qualquer homem digno do termo (instintivamente sei o que é mas não me peçam para explicar) despreza, bem como pitbulls, dobermans e rottweilers, que qualquer homem sensato receia.
Adenda 2: Por outro lado, uma mulher a passear um rottweiler tem de ser especial...
Adenda 3: Mas não. Há riscos que não compensam.
Adenda 4: Hmmmmm...
Adenda 5: Bom, se a situação se apresentar logo se vê.
O caso de Virgília tinha alguma gravidade mais. Ela era menos escrupulosa que o marido: manifestava claramente as esperanças que trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortesias, atenções e afagos que poderiam render, pelo menos, um codicilo. Propriamente, adulava-o; mas eu observei que a adulação das mulheres não é a mesma cousa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à ação lisonjeira da mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã, – ou ainda de enfermeira, outro ofício feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um quid, um fluido, alguma cousa.
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Será precisamente pela superior garantia de «servilidade» que muitos homens até preferem a adulação de outros homens. Por isso e por tradicionalmente constituir uma demonstração mais evidente de poder. Quanto à adulação feminina, consegue, de facto, ser parecida com afecto: resta saber se por exclusiva responsabilidade das mulheres, se por leituras enviesadas e quase sempre de índole sexual (aliás, muito pouco coadunáveis com a imagem de uma mãe ou de uma irmã) dos homens. Ainda assim, é importante manter presente que vivemos tempos muito diferentes dos de Machado de Assis. Tempos em que as mulheres agem frequentemente de formas parecidas com as dos homens e em que os homens dão excelentes enfermeiros.
Uma mulher enviou-me por correio electrónico uma foto com nadadores olímpicos australianos:
Encolhi os ombros (afinal, estão apenas um bocadinho mais em forma do que eu) e respondi com uma dose dupla de voleibolistas norte-americanas:
Aguardo nova cartada mas considero-me a ganhar por 7-4 (com vantagem em caso de empate final, uma vez que os nadadores mantêm alguma roupa vestida). Não quero ser demasiado optimista (é preciso respeitar o adversário, as hipóteses são de 50% para cada lado, o jogo só acaba quando o árbitro apita, etc.) mas estou confiante: tenho vários trunfos na manga, incluindo a outra e, na vertente feminina, quase obscena variante do voleibol: o de praia. Entretanto pus-me a pensar que brincadeiras destas são como fazer parte de uma equipa mas preferir o estilo de jogo da equipa rival. No fundo, está-se a dizer: não, não, vocês é que são melhores. Pus-me a pensar nisso e também que, lá em Londres, alguém devia apresentar os nadadores australianos às voleibolistas norte-americanas. É que, apesar dos corpos tonificados, talvez por não conseguirem tirar o Lochte e o Phelps da cabeça, eles parecem tão tristonhos. Poderiam é necessitar de reforços: são só quatro, coitaditos, e não conseguindo deixar de pensar no Lochte e no Phelps...
P.S.: O corrector ortográfico do Word assinala «pulposa» e «pulsões» como sendo erros. É um corrector tão politicamente correcto...
Adenda: O que isto tudo significa para as relações de longo termo – bom, essa é outra questão. Que o aumento da taxa de separações e a diminuição do número de partos talvez ajude a explicar. A liberdade também tem custos.
– Depois de ti nunca mais tive um namorado ou um amante que amasse o meu corpo tanto como tu o amaste.
– Tiveste namorados?
Lá estava eu de novo, com a mesma conversa. Esquece os namorados. Mas não conseguia.
– Tiveste, Consuela?
– Tive, mas não muitos.
– Dormiste regularmente com homens?
– Não. Numa base regular, não.
– Como era o teu emprego? Não houve ninguém no teu emprego que se apaixonasse por ti?
– Apaixonavam-se todos.
– Eu compreendo isso. Mas, e depois? Eram todos homossexuais? Não conheceste homens heterossexuais?
– Conheço, conheci, mas não prestavam.
– Não prestavam porquê?
– Masturbam-se apenas no meu corpo.
Philip Roth, O Animal Moribundo.
Edição D. Quixote, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.
A coisa óbvia é que são todas atraentes. A única série americana destinada ao grande público em que os actores parecem pessoas normais (e isto não quer dizer feios) é a Nurse Jackie (também se trata da única em que doentes internados parecem mesmo doentes). Confesso que este ponto não me incomoda por aí além: nada tenho contra mulheres bonitas, elas é que parecem ter algo contra mim. E Jennifer Morrison (a médica da equipa original do House) é mesmo muito bonita. Como também o é Lana Parrilla (a médica do Miami Medical). Morrison pode considerar-se a personagem principal de Era Uma Vez, ou pelo menos a catalizadora da acção, enquanto Parrilla desempenha o papel de bruxa má (muito, muito boa). E depois temos Ginnifer Goodwin, que era uma das três mulheres de Bill Paxton em Big Love (a mais novinha) e que descobri ter participado em 2002 num telefilme com o fantástico título de Porn'n Chicken (parece ser o nome de um clube existente na universidade de Yale, o que nos permite afastar ideias sobre o declínio da educação e manter esperanças no futuro). Como seria de esperar, atendendo a que desempenha o papel de Branca de Neve, Ginnifer faz de rapariga atraente, delicada e um tudo-nada ingénua. Ou seja: temos sexo (Morrison), sexo violento (Parrilla) e carícias e beijinhos (Goodwin). Era Uma Vez adequa-se a (quase) todos os gostos e fantasias.
A coisa moderna é as mulheres serem as principais personagens. Gente perspicaz como sois (não me contrarieis), já se aperceberam certamente de que as mulheres ocupam os principais papéis em quase todas as séries actuais, decorram elas num hospital, num tribunal, numa esquadra, na CIA ou numa terrinha com mais vampiros do que passarinhos nas árvores. Já sabíamos que as mulheres estão a tomar conta do mundo e, no fundo, acaba por ser compreensível: é politicamente correcto, está menos visto, haverá mais mulheres do que homens a acompanhar séries televisivas nos dias que correm e os homens não se importam: para a maioria, ver mulheres bonitas não representa um sacrifício (eu, pelo menos, gosto – mas creio já o ter referido).
E chegamos à coisa que me encanta. Ainda não perceberam? Releiam o título do post e olhem para a fotografia abaixo. Precisamente: as orelhas de Ginnifer Goodwin. Ginnifer tem orelhas de abano. Ou melhor: tem uma orelha de abano (a direita) porque a outra encontra-se muito mais encostada à cabeça. (Imagino-a sempre rodando a cabeça para a esquerda e avançando a orelha direita após alguém perguntar: «Ouviste aquilo?», de modo a ouvir melhor, ou fazendo o oposto durante uma conversa, de forma a equilibrar a intensidade da recepção.) Num universo televisivo em que mendigos da Idade Média têm dentes perfeitos, em que as actrizes de quarenta anos parecem mulheres de sessenta após efectuarem dezenas de intervenções cirúrgicas com o intuito de parecerem ter trinta, em que todos os homens excepto vilões e personagens cuja única função é efeito humorístico são esbeltos e musculados (e, cada vez mais, depilados), descobrir uma orelha assim (ainda que apenas visível nas cenas decorridas na actualidade, em que Ginnifer aparece com cabelo curto) trata-se de um momento sublime. Como é possível que ela ainda não tenha sido convencida a «corrigi-la»? Como é possível que os produtores televisivos a aceitem? Como é possível que a tenham aceitado para um dos três papéis principais (caramba, no genérico o nome dela até surge em primeiro lugar) numa série sobre contos de fadas? Parece-me algo quase impossível e, no entanto, adorável – um sinal de esperança. Que, nos tempos actuais, uma actriz ligeiramente assimétrica faça de Branca de Neve encanta-me. Parece-me até o ponto mais mágico de toda a série.
As mulheres sempre acusaram os homens de, após algum tempo de relação, tenderem a tratá-las como empregadas domésticas. Para não variar, estão apenas parcialmente correctas: é verdade que, passada a fase dos arroubos de romantismo, o que os homens desejam mesmo é uma mulher a dias. Mas não para lhes limpar a casa (bom, isso também, se puder ser); uma mulher a dias no sentido de estar presente durante umas horas três ou quatro dias por semana, com horário e serviço nocturnos incluídos, e que depois os deixe em paz. No fundo, o mesmo que imensas mulheres desejam dos homens.
Dirijo-me ao pequeno balcão junto à secção de livros da Fnac do GaiaShopping. Uma rapariga envergando o coletezinho verde e ocre pergunta-me se pode ajudar. É magra e parece cansada mas confesso não prestar muita atenção à sua aparência. Pergunto se têm um livro de Isaac Asimov, recentemente lançado, de que não recordo o título. Ela inclina-se para o computador enquanto eu acrescento que foi editado pela Ulisseia. O colete, talvez um nadinha grande para a compleição franzina dela, afasta-se-lhe ligeiramente do corpo, deixando mesmo à frente dos meus olhos duas mamas empinadas e comprimidas uma contra a outra por um soutien que mal se vê. Apesar de me encontrar naquela idade em que os homens tendem a ficar quase só olhos e sofreguidão, costumo ser um tipo discreto mas aquilo apanha-me de tal forma desprevenido que o meu olhar fica preso durante demasiado tempo e o meu cérebro baralha-se, levando-me a fazer uma pausa entre «pela» e «Ulisseia». A rapariga percebe, claro, mas finge que não e eu faço um esforço titânico para impedir que os meus olhos voltem a focar-se abaixo do nível do pescoço dela. E a vontade nem é tanto ver-lhe as mamas novamente mas tentar compreender como raio é que antes me passaram despercebidas.
Um pouco mais tarde, noutra zona da Fnac, remoendo o embaraço, lembro-me do início de O Animal Moribundo, de Philip Roth. Ao descrever a aluna por quem se sente atraído, o professor Kepesch refere que ela tem um corpo magnífico mas que ainda não sabe bem como usá-lo. Que o transporta como um miúdo de uma zona perigosa transporta uma arma de fogo carregada, tendo ainda de decidir se o faz para se proteger, se para iniciar uma vida de crime. E ponho-me a pensar que o modo como, ao longo dos meses de Verão, quase todas as mulheres trazem o armamento bem visível e tantas parecem ter optado, com uma convicção desafiante, pela vida de crime, mantém os homens alerta, antevendo duelos ferozes. Mas quando o tempo arrefece e a maioria das armas passa a andar escondida, um tipo relaxa e, de vez em quando, não consegue evitar ser apanhado de surpresa ao descobrir um par de Glocks numa rapariga aparentemente incapaz de matar uma mosca.
Mas isto não é sobre Nabokov nem sobre ninfitas, tema, aliás, que só poderia meter-me em sarilhos. Talvez ainda valha a pena, antes de o deixar sossegado no cantinho relativamente confortável do Inferno onde estará (haverá ninfitas no Inferno?), referir que Humbert distribuía as raparigas pelas categorias de ninfitas – até aos quinze anos de idade –, jovens e universitárias porque isso ajuda a constatar como todos passamos a vida a arranjar categorias para tudo. Menos elaboradas, ou talvez menos perversas, que o sistema de classificação de Humbert Humbert mas não substancialmente diferentes no seu propósito e alcance. Por exemplo: no instante em que vemos alguém pela primeira vez encaixamo-lo numa prateleira estética (bonito / feio) e, minutos depois, em mais umas quantas (interessante / desinteressante / irritante; simpático / antipático / indiferente). Confesse-o ou não, um homem heterossexual avaliará sempre uma mulher em termos de potencial sexual. Colocará sempre a questão: iria para a cama com ela? (Estando a analisar o interior do cérebro masculino, que ela pudesse desejar tudo menos ir para a cama com ele é nesta fase tão relevante como a marca de pasta dentífrica do Steven Spielberg.) Mas a miúda do cartaz fez-me pensar numa outra classificação, com três categorias: há mulheres que fazem um homem pensar imediatamente em sexo; há as que geram primeiro instintos de protecção e só depois vontade de sexo – eventualmente misturada com uma pitada de vergonha; e há aquelas que não suscitam um segundo olhar. A beleza física das mulheres e as preferências individuais dos homens desempenham um papel crucial na distribuição pelas categorias mas a idade, de umas e de outros, terá igualmente alguma coisa a ver com o assunto. (Nota: não vale a pena chatearem-se, meninas; vocês fazem o mesmo em relação aos homens.) É difícil imaginar uma mulher de trinta anos mantendo o ar inocente da miúda do cartaz. De resto, andava para aí outra publicidade a roupa interior feminina, da Triumph, com três actrizes portuguesas na casa dos vinte e muito ou trinta e poucos e a sensação obtida era totalmente diferente. Puro sexo, digamos, apesar da expressão «puro sexo» ser provavelmente um – quiçá deliberado – oxímoro. As mulheres da Triumph colocavam um desafio aos homens que olhavam o cartaz. Como se dissessem: «Não és homem suficiente para nós» (o que, talvez valha a pena referi-lo, é problemático para muitos homens embora poucos estejam disponíveis para admiti-lo). Nenhum adolescente escreveria «são giras» nesse cartaz. É possível que um adolescente nem sequer escrevesse nesse cartaz. Mulheres de trinta anos são velhas para a maioria dos adolescentes. Mas alguém que escrevesse nesse cartaz seria muito mais explícito. Mais brutal, também, porque a idade e a pose das raparigas da Triumph já não permitiam inocência. E talvez seja este o ponto onde eu queria chegar. Os anúncios para adultos dispensam a inocência. Mesmo anúncios que, chamando embora a atenção dos homens, se destinam acima de tudo ao público feminino. Talvez as marcas, ou os criativos por trás delas, acreditem que as mulheres gostam de ver alguma inocência nas adolescentes mas já pouca ou nenhuma nas mulheres adultas. Encontra-se muito isto, na publicidade actual, e suponho que tenha uma certa lógica. As mulheres querem mostrar-se seguras, auto-suficientes, dominadoras mesmo, e dispensarão ver retratadas algumas características que podem ser confundidas com fragilidades e remetem para outros tempos. Mas também é perturbador. Afinal, por que não podem hoje as mulheres de trinta – ou de quarenta ou de cinquenta – revelar alguma inocência? Porque têm – para além de manter os corpos jovens e atraentes – de parecer sempre confiantes e quase sempre sexualmente seguras de si? A pressão que isto representa. A pressão que a publicidade lhes coloca em cima.
Seja como for, que a miúda é gira, lá isso é. Até se perdoa ao rapaz ter sujado o vidro da paragem de autocarros para escrever o elogio.
Caminhava pelo passeio, regressando do almoço. Poucas dezenas de metros à minha frente, duas turistas, raparigas de vinte e poucos anos, debatiam-se com um mapa. Uma voltou-se e pediu auxílio a outra rapariga – presumivelmente portuguesa – que se encontrava perto, junto a uma montra. Esta olhou para o mapa, hesitou, chamou uma amiga. Ficaram as quatro a olhar para o mapa, rodando-o, aproximando e afastando a cabeça da sua superfície, olhando para cima uma e outra vez como que para confirmar o local em que se encontravam, fazendo deslizar a ponta do indicador pelo papel. Neste ínterim, cheguei junto delas. Vinha preparado para providenciar ajuda mas nenhuma das quatro ergueu os olhos do mapa. Um pouco desiludido (há o eterno desejo masculino de conseguir salvar a situação com uma facilidade estonteante e, para mais, duas delas – uma turista e uma autóctone – eram bastante atraentes), prossegui caminho. Cinquenta metros depois voltei-me. Continuavam lá, conversando animadamente, cabeças debruçadas sobre a folha de papel.
Talvez devesse ter parado e oferecido ajuda. Mas receei que vissem a atitude como presunçosa, quiçá sexista. Foi melhor assim. De resto, posso sempre lá regressar ao fim da tarde. Se continuarem a pedir auxílio apenas a mulheres, há-de lá estar um grupo de dezenas, todas amontoadas em redor do mapa.
Pergunta de algibeira: por que será que estes «manifestantes» que partem montras e saqueiam lojas em nome de mais justiça social são quase todos do sexo masculino? As mulheres não sentem problemas similares, talvez piores?
Pista: pela mesma razão que também não se vêem muitas mulheres nas claques de futebol que vandalizam áreas de serviço em nome de um clube.
The love of a woman with a funny mind is the definition of paradise, he thought.
Norman Rush, Mortals.
Edição Jonathan Cape.
Inteiramente verdade. Bom, também não faz mal que a mulher possua outros atributos, incluindo aqueles mais tridimensionais. O próprio Ray Finch, a personagem que tem este pensamento, adora outras características de Iris, a mulher com quem está casado. Mas a funny mind é, de facto, a mais importante (mais do que a pura inteligência, que frequentemente a acompanha). A funny mind não é banalizada pela familiaridade, permite surpresas regulares, momentos de distensão em que se é recordado do motivo por que se gosta daquela pessoa. Nenhuma característica física tem este poder, ou pelo menos não o tem eternamente. Degenerescências médicas à parte, ainda que por vezes abalada pelas dificuldades da vida, a funny mind consegue resistir à passagem do tempo. Mais: nas mulheres como nos homens, revela-se extremamente útil para aprender a relativizar os seus efeitos, limitando-os ao plano físico.
Na sequência de aturado estudo envolvendo complexos modelos matemáticos, uma calculadora de telemóvel, uma esferográfica Bic roubada numa repartição de finanças (única participação de fundos públicos no projecto), uma folha de papel milimétrico extraída discretamente do interior de uma papelaria (é fundamental que a iniciativa privada colabore nos projectos de investigação científica) e um cartão de débito a servir de régua, informa-se que, a manterem-se os actuais ritmos de crescimento da altura dos portugueses e dos saltos dos sapatos femininos, mais de metade das portuguesas terão de se baixar (ou descalçar) ao passar pelas portas já em 2028. Prevê-se também um acréscimo ainda não quantificado (preciso de mais folhas de papel milimétrico) de casos de pernas partidas e traumatismos cranianos nos hospitais, o qual teria consequências bastante negativas para as contas do Serviço Nacional de Saúde se ele ainda existisse nessa altura.
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