Como artista performativa que, para além de escritora, actriz e realizadora, também é,
Miranda July (usem o
link, vá) nem sempre consegue evitar a construção de situações ligeiramente obscuras e/ou artificiais. Mas torna-se fácil perdoá-la porque, ao contrário do que sucede com outros artistas contemporâneos, em July a encenação tende a ser
benigna – parece que acontece sem ela querer, por excesso de entusiasmo e não de presunção. No seu melhor, July constrói personagens e situações realmente estranhas e, todavia, estranhamente realistas (eu sei, eu sei, estes jogos de palavras são infantis e cansativos mas também eu não consigo evitar dedicar-me a diminutas, deliberadas e dispensáveis demonstrações de virtuosismo dúbio e deslocado). Há outros especialistas nesta área, como os realizadores Wes Anderson e Noah Baumbach, mas quase todos têm o enorme defeito de serem menos atraentes do que July. Quando se vê a longa-metragem
Me and You and Everyone We Know, que ela escreveu e realizou, ou os vários filmes breves que foi escrevendo, ou quando se lêem os contos do seu livro
No One Belongs Here More Than You (não deixem de usar também este
link, que ainda é melhor que o anterior), encontramos personagens estranhas que nos dizem algo porque sabemos, ou desconfiamos, ou tememos, que sob a capa que apresentamos ao mundo somos exactamente assim: frágeis, inseguros, incoerentes, dados a pensamentos e actos cuja lógica nos escapa no exacto instante em que os pensamos ou executamos e que nos fazem cair na mais desamparada vergonha. A melhor literatura, como o melhor cinema, mostra-nos o que somos por baixo do que julgamos ser – é por isso que tanta gente evita cuidadosamente uma e outro mas também é por isso que conseguimos extrair dos bons livros e dos bons filmes o conforto, quiçá ligeiramente depressivo, de saber que, afinal, não estamos sós, que toda a gente é assim, reconheça-o ou não. Veja-se como, no filme
Are You the Favorite Person of Anybody, que coloquei num
post anterior (usem o
link, se não o viram – por onde andavam?), as respostas das três pessoas, aparentemente tão diferentes, são variações sobre a mesma insegurança: a rapariga (papel desempenhado pela própria July) quer ser optimista (começa por achar que sim, que é – tem de ser – a pessoa favorita de alguém) mas depois vai ficando com dúvidas (é a reacção mais ingénua mas também a mais honesta); o rapaz exorciza a possibilidade de não ser a pessoa favorita de alguém declarando-o logo à partida, numa espécie de pessimismo militante muito em voga; o último homem foge, preferindo nem pensar na questão (uma resposta ainda mais comum). As personagens criadas por July (muitas mulheres, alguns homens) parecem pessoas esquisitas porque não conseguem fingir ou fingem de um modo tão desamparado que o fingimento se torna óbvio. Como se estivessem sempre dentro de um elevador ao lado de um estranho. O par do filme
Me And You And Everyone We Know (é possível fingir mais e simultaneamente menos do que na caminhada em direcção a Tyrone Street que se encontra por cima deste texto?), ou as personagens dos contos de
No One Belongs Here More Than You (a rapariga que ensina três octogenários a nadar na sala de estar da sua pequena casa dos subúrbios, colocando bacias com água salgada por baixo das caras deles; aquela outra que sonha apanhar o príncipe William num pub e conquistá-lo fazendo tocar na jukebox
All I Need is a Miracle, dos Mike & The Mechanics; a que se apaixona por um vizinho epiléptico e aproveita o momento em que ele sofre um ataque no pátio do prédio onde ambos vivem para se deitar junto dele como se fosse sua companheira; uma quarta que
retira um sinal de nascença da cara e descobre que a felicidade não passava afinal por aí) são todas variantes de alguém tentando atabalhoadamente encontrar o seu lugar no mundo. E falhando, claro. Mas falhando de um modo bonito, ingénuo, que exclui a hipocrisia e o compromisso. Um modo que habitualmente preferimos recusar. Veja-se
This Person, um dos melhores contos do livro: alguém (
this person) encontra reunida num pátio toda a gente que alguma vez conheceu, incluindo os professores que menos apreciou, o médico responsável pela cegueira temporária que sofreu, o homem que lhe pagou dois mil dólares em troca de sexo quando estava sem dinheiro; vêm dar-lhe um abraço e dizer-lhe que
it was all just a test, we were only kidding, real life is so much better than that.
This person foge e vai ver se tem correio.