como sobreviver submerso.

Domingo, 1 de Novembro de 2009
Dos malefícios da poesia
Neste excerto de 2666 que Henrique Bento Fialho (que diz não acreditar no destino mas escreve como se estivesse a afogar-se nele) colocou no Antologia do Esquecimento, Bolaño refere um dos papéis tradicionais da poesia: estimulante sexual. O uso da lírica nas conquistas amorosas é amplamente referido na história da literatura (talvez de forma excessiva e, amiúde, caricatural mas isso não é muito importante agora). Há quem descubra outras utilizações e detecte outras consequências. Em Os Testamentos Traídos,(1) Kundera escreveu: «Depois de 1948, ao longo dos anos da revolução comunista no meu país natal, compreendi o papel eminente que desempenha a cegueira lírica no tempo do Terror que, para mim, era a época em que “o poeta reinava ao lado do carrasco” (A Vida Não É Aqui). Pensei então em Maiakovski; para a Revolução Russa, o seu génio fora tão indispensável como a polícia de Dzerjinski. Lirismo, liricização, discurso lírico, entusiasmo lírico fazem parte integrante daquilo a que se chama o mundo totalitário; esse mundo não é o gulag; é o gulag cujos muros exteriores estão atapetados de versos e diante dos quais se dança.» Depois de, na juventude, também ter escrito poesia alinhada com o regime comunista, Kundera tentou sempre evitar o entusiasmo (e o sentimentalismo) excessivo. A Vida Não é Aqui, mencionado acima, é todo ele um libelo contra os perigos do lirismo: o jovem poeta Jaromil (um alter-ego de Kundera?), inebriado pela revolução Checa de 1948 (em grande medida, por influência de poetas e pintores vanguardistas), tem atitudes (p. ex., forçar a namorada a denunciar o irmão que tenciona fugir do país) para as quais arranja justificações que só fazem sentido à luz desse inebriamento. Para Kundera, não há compromissos no lirismo. Como Jaromil explica à namorada: «O amor quer dizer tudo ou nada. O amor é total ou não é amor. Eu estou deste lado e ele está do outro. Tu tens de estar comigo e não num sítio qualquer a meio caminho entre nós.»(2) Noutro ponto do livro, Kundera escreve: «A poesia é um território onde toda a afirmação se torna verdade. O poeta disse ontem: a vida é inútil como uma lágrima, hoje diz: a vida é alegre como riso, e tem razão nos dois casos. Diz hoje: tudo acaba e se afunda no silêncio, dirá amanhã: nada acaba e tudo ressoa eternamente, ambas as coisas são verdade. O poeta não precisa de provar nada; a única prova reside na intensidade da sua emoção.»
 
Com a sua tendência para a análise e para a racionalidade não é de estranhar que Kundera se tenha afastado progressivamente do romance (e o romance de Kundera foi desde início – o fabuloso A Brincadeira – um romance analítico, que conquista o leitor pelo poder da revelação e da compreensão) em direcção ao ensaio. Nem que, depois de ver A Insustentável Leveza do Ser adaptado ao cinema (com resultados bastante razoáveis, diga-se), tenha feito um esforço consciente para escrever livros impossíveis de filmar.
 
Como Kundera, Bolaño mergulhou na poesia ainda muito jovem. (Será a juventude crucial para que seja possível alguém apaixonar-se cegamente pela poesia, como parece sê-lo para que se abracem entusiasticamente ideiais revolucionários?) Mas, enquanto Kundera viveu uma ditadura de esquerda, Bolaño fugiu de uma ditadura de direita. E, porque o lirismo e a utopia estão muito mais próximos da esquerda do que da direita, a crença na salvação pela poesia (o que procuram os «realistas viscerais» em Os Detectives Selvagens senão uma forma de substituir a realidade existente, mesquinha e prosaica, por uma nova, nascida da arte e da utopia?) pareceu viver nele durante anos. A poesia enquanto literatura mas também a poesia enquanto revolução política (Bolaño foi Trotskista, tendo mantido contactos com organizações como a Frente Farabundo Martí, de El Salvador). Mas talvez também ele tenha percebido que as consequências do lirismo, do entusiasmo excessivo, podem ser nefastas. Afinal, acabou a escrever prosa, assombrado por visões do Mal e do papel que a Arte desempenha nas suas manifestações.

 

(1) Edições Asa, 1993, tradução de Miguel Serras Pereira.

(2) Edições D. Quixote, 1990 (1ª edição), tradução de Miguel Serras Pereira. 



publicado por José António Abreu às 00:58
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