Horas depois, regressando a Itália, conduzo em direcção ao Col du Grand-Saint-Bernard e pondero seguir pela histórica passagem, subir ao local do mosteiro onde os monges criaram a raça há cerca de trezentos anos. Mas é tarde, ameaça escurecer. Opto pelo túnel de quase seis quilómetros inaugurado em 1964. Enquanto o percorro, e por muito ilógico que seja, não consigo evitar a sensação de que, ao evitar o esforço, estou de alguma forma a trair os simpáticos mastodontes helvéticos. A ser um bocadinho o velho do Tchékhov.
Ao escutar o órgão do Duomo de Milão – um dos maiores do mundo, com 250 registos e 15350 tubos.
O órgão (principal, dado existir um mais pequeno) foi alterado várias vezes desde 1397, ano de entrada em actividade da primeira versão. As mais significativas, para além do facto de ter crescido sempre, tiveram a ver com o tipo de transmissão (ligação entre os teclados e a abertura dos tubos): de mecânica para pneumática para, já no século passado, eléctrica. Entre 1760 e 1762, teve como organista Johann Christian Bach, filho mais novo (de um total de onze) do mais famoso Johann Sebastian. E, ainda assim, a história do órgão é bastante menos complicada do que a do próprio Duomo. Quarta maior catedral europeia em termos de área, a seguir à Basílica de São Pedro, em Roma, à Catedral St. Paul, em Londres, e à Catedral de Sevilha, teve a construção iniciada em 1386 e terminada a 6 de Janeiro de 1965 (o que é o século e pouco em que vai a da Sagrada Família, em Barcelona, ao lado disto?). As alterações ao projecto foram constantes e nem sempre ocorreram apenas por capricho dos arcebispos ou dos arquitectos mas também porque a História as tornava recomendáveis – por exemplo, na segunda metade do século XVI, na sequência do Concílio de Trento e da subida de Carlo Borromeo ao posto de Arcebispo de Milão, privilegiou-se um estilo mais românico e menos gótico, uma vez que este tinha passado a ser visto como «estrangeiro» (contudo, no século XVII voltaram a introduzir-se elementos góticos no projecto da fachada). Houve também impulsos à construção vindos de onde talvez não se esperasse: em 1805, Napoleão, prestes a ser coroado rei de Itália (cerimónia que ocorreria no próprio Duomo a 26 de Maio desse ano), ordenou que a fachada fosse terminada, a expensas do tesouro francês. (Diga-se que, após um século de domínio austríaco, o qual se seguira a dois de domínio espanhol, os lombardos até viram com bons olhos a invasão Napoleónica de 1796 mas o entusiasmo desvaneceu-se quando o baixote francês começou a levar tesouros artísticos para Paris*.) O tempo que a construção demorou e todas as alterações que o projecto foi sofrendo tiveram uma consequência, talvez inevitável: se ninguém contesta a imponência do Duomo, muita gente ao longo dos séculos questionou-lhe beleza e coerência arquitectónica. Oscar Wilde terá sido o detractor mais famoso: considerou-o um falhanço monumental, salientando que os pormenores mais atraentes estão a altura excessiva para poderem ser devidamente apreciados. Já Mark Twain, outro autor com queda para as tiradas corrosivas, adorou-o. Eu, que não passo de uma alma simples, sempre disponível para ser maravilhado, concordo mais com Twain. Mas não deixo de perceber o ponto de vista de Wilde. Que, se calhar, nem chegou a ouvir o órgão.
P.S.: Façam os comentários que entenderem mas não esperem que eu responda. :)
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