como sobreviver submerso.
Quinta-feira, 4 de Abril de 2013
Relvas, demissões e licenciaturas anuladas
O ministro Miguel Relvas demitiu-se. Acho bem. Devia, aliás, tê-lo feito bastante mais cedo. Contudo, mais do limitar-me à constatação da sua saída do governo, quero realçar outra: Miguel Relvas demitiu-se após um processo de auditoria desencadeado pelo próprio governo, na sequência de notícias acerca do modo como se licenciou, o qual produziu resultados tão
contrários ao interesse do governo que
outro ministro vai ter que anular a licenciatura e/ou (existem versões contraditórias quanto aos poderes de Nuno Crato)
enviar o caso para o Ministério Público. Era bom que este nível de isenção servisse de precedente porque, apesar da minha memória já não ser o que era, quer-me parecer que as coisas nem sempre funcionaram assim.
Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2013
Terra da fraternidade
A
acção de luta que consistiu em cantar Grândola Vila Morena no Parlamento foi inteligente. Teve uma subtileza cortante que é rara neste tipo de acções – e em Portugal, onde sempre fomos mais dados à manifestação, expressa e reiterada, do óbvio (veja-se o humor, que felizmente a invasão de programas televisivos anglo-saxónicos tem vindo a refinar). Os
mestres-cantores (até
Hans Sachs concordaria que eles cantaram bem) da Assembleia foram mesmo ao ponto de não resistir às ordens de expulsão. Evidentemente, tratava-se de profissionais conscientes de que a imagem da dignidade ofendida possui mais força do que a da arruaça. Após esse momento, com a contradição de ter nascido para exigir o que os cantores da Assembleia manifestamente tiveram afastada por inconveniente (nuns casos) e falta de memória (noutros),
Grândola Vila Morena tinha caminho aberto para se tornar no hino da actual contestação, ocupando o posto onde alguns tentaram há uns tempos colocar um débil tema dos Deolinda. Havia dois tipos de risco, o do excesso de exposição (semanas a ouvir gente nos mais diversos cantos do país entoando
Grândola Vila Morena perante membros do governo era capaz de se tornar tão repetitivo que o efeito contestatório se diluiria) e o de alguém utilizar a canção como base de partida para acções violentas, mas cantar
Grândola Vila Morena poderia de facto constituir-se numa forma ao mesmo tempo elegante e acerada de mostrar desagrado – bem como de disfarçar a míngua de ideias – a que alguns membros do governo reagiriam certamente pior do que outros.
Isto ainda é possível mas o segundo risco concretizou-se depressa. O modo como o tema foi ontem usado em jeito de preâmbulo para
berros e insultos contra Miguel Relvas prejudica desde já a sua futura utilização. Goste-se ou não de Relvas (e, repetindo-me porque há sempre quem apenas lembre as partes que lhe fortalecem as ideias feitas, eu considero a reforma do mapa autárquico insuficiente, a não-solução do caso RTP desapontante, as aparições dele em processos que não lhe deviam dizer respeito preocupante e a sua permanência no governo após as notícias sobre a licenciatura inaceitável), por contraponto à histeria ululante dos manifestantes, ele pareceu sensato e ponderado. Aguentou, tentou responder e só cometeu o erro de, logo no início, se juntar ao coro. Percebe-se a ideia (era uma forma de dizer:
posso cantar a Grândola Vila Morena porque sou tão democrata como vocês) mas da atitude transpareceu nervosismo e arrogância. Precisamente o tipo de hipótese a que me referia no final do parágrafo anterior. Tivessem os manifestantes ficado por aí, Relvas seria hoje alvo de chacota generalizada e eu não estaria a escrever este
post. Mas os manifestantes continuaram. Partiram para os gritos e para os insultos. E Miguel Relvas, encurralado, manteve assinalável serenidade, tentou responder às perguntas que, na verdade, não o eram, e deixou bem visível (para quem quiser ver) como a berraria não equivale a ideias nem, muito menos, a soluções. Cometeu um segundo erro, já à saída, mas foi ligeiro: assediado pelos repórteres, tentou passar a mensagem de que a noite fora normal. Não era verdade e pretendê-lo apenas revelou insegurança. Foi como se dissesse:
está tudo bem, nada disto põe em causa a continuidade do governo. Compreensível mas desnecessário e, no limite, contraproducente. Quanto a
Grândola Vila Morena, ninguém terá dúvidas de que, agora que a moda se instalou, será novamente cantada em breve, algures no país ou mesmo
no estrangeiro. Resta saber se de forma a aumentar-lhe, se a diminuir-lhe os efeitos.
Duas notas finais: quem acha os acontecimentos de ontem um modo adequado de contestar o governo e não somente o ministro Relvas, é favor imaginar a grávida Assunção Cristas no lugar dele; e trata-se de uma melhoria significativa em relação ao passado recente que as pessoas insatisfeitas consigam entrar nos locais onde os governantes se encontram e que, aparentemente, a polícia ainda não tenha invadido a sede de qualquer sindicato.
Quinta-feira, 6 de Dezembro de 2012
Bom, uma das coisas exige estudos...
Dezassete meses após a tomada de posse do governo, o (mui tímido) projecto de lei da redefinição do mapa autárquico
é discutido hoje no Parlamento. Já as mudanças na RTP parecem ter hibernado com a chegada do frio. Torna-se, pois, oficial: Miguel Relvas demora mais tempo a implementar as reformas que tem a seu cargo do que demorou a licenciar-se. Mas os efeitos práticos deverão ser os mesmos: simbólicos, acima de tudo.
Quinta-feira, 5 de Julho de 2012
Ao contrário (e um conselho gratuito)
Pode ser a minha ingenuidade congénita, que montanhas de comprimidos azuis – não, de um tom de azul completamente diferente – têm sido incapazes de debelar, mas dá-me ideia que, de forma geral, uma carreira académica prestigiante precede uma carreira política. Afinal, os Kennedy andaram por Harvard e a classe política britânica está tão ligada a Eton e Oxford (ou Cambridge) que as acusações de elitismo são mais frequentes do que turistas olhando para a esquerda nas ruas de Londres, apesar da profusão de avisos para Look Right. Das duas, uma: ou eu estava enganado e estes são exemplos não representativos ou – e parece-me mais provável (vai-se a ver e os comprimidos começam a fazer efeito) – por cá resolvemos fazer ao contrário: primeiro entra-se num partido (onde deve ser preciso estudar menos do que numa universidade a sério) e faz-se a carreira política; depois leva-se o cartão partidário a uma universidade (e talvez um certificado de passagem pelo governo ou, pelo menos, de acesso directo a governantes) e obtém-se automaticamente a licenciatura. Não é caso único (fazemos muitas coisas ao contrário dos outros) e até podia constituir uma inovação simpática, não fosse o pormenor de, pelo vistos, a carreira partidária só dar direito a cursos em universidades de segunda ou mesmo terceira linha. Aliás, deve ser por isso que, quando os eleitores lhes propiciam uma merecida pausa, alguns destes licenciados vão para conceituadas universidades estrangeiras melhorar o currículo. Ao ministro Miguel Relvas aconselha-se Berkeley, na Califórnia, considerada das melhores nos campos da etologia, da antropologia e da sociologia.
Sábado, 26 de Maio de 2012
Jogos
O Miguel vai-se lixando por, desde há muito, estar demasiado embrenhado nos jogos do poder, incluindo no da relação com a comunicação social e, através dela, com a opinião pública. Já o Álvaro vai-se lixando por nem saber que está a jogar. Apenas num dos casos o resultado pode ser considerado justo.
Quinta-feira, 2 de Fevereiro de 2012
O número dois que se vê
Seria sempre difícil. Um número dois é invariavelmente olhado com desconfiança. O que terá feito para chegar tão perto do poder? Qual o seu grau de lealdade? Manterá segundas intenções? Andará a extravasar as suas competências? Ainda por cima, já não estávamos habituados. Antes de Miguel Relvas, há pelo menos uma década que não dávamos pela existência de um número dois político num governo.
Claro que, em termos de relevância global, o número dois dos últimos governos tem sido o Ministro das Finanças. Mas não é função do Ministro das Finanças preocupar-se com justificações políticas das medidas que impõe ou ajuda a impor. Para isso, há ministros políticos. Mas será que estamos habituados a dar por eles? Quem – respondam depressa – era o número dois político nos tempos de Durão Barroso? Não, Paulo Portas estava no governo mas nunca foi número dois (nem podia sê-lo: pertence a outro partido e era olhado com grande desconfiança por muita gente no interior do PSD, tendo que gerir a exposição mediática com imenso cuidado). Então? Pois, não é resposta que surja de imediato – talvez Marques Mendes mas, na verdade, ninguém parecia destacar-se no apoio ao Primeiro-Ministro (sim, eu sei: se era Marques Mendes, não surpreende que não se destacasse – mas vocês percebem o que quero dizer). E depois vieram os governos Sócrates. Em ambos, o lugar de número dois político era, evidentemente, ocupado por Pedro Silva Pereira. Mas Pedro Silva Pereira possuía uma característica que Relvas não possui nem poderá obter (há a cirurgia mas vamos partir do princípio de que ele não está disposto a tanto): era um clone do Primeiro-Ministro; uma extensão de José Sócrates; uma emanação de José Sócrates. Façam um exercício: tentem pensar em Pedro Silva Pereira sem pensar em Sócrates. Tentem vê-lo como uma pessoa independente, com vida própria, um casamento (ou uma união de facto, que estamos a falar de um socialista moderno), filhos; tentem imaginá-lo sentado no sofá, em pijama e chinelos, assistindo a uma partida de futebol na televisão. Conseguem não ver Sócrates algures? Admitam: é Sócrates que vêem e não Silva Pereira; ou então as imagens sobrepõem-se; ou, no mínimo, Sócrates encontra-se no outro sofá ou de pé junto à porta ou, no mínimo dos mínimos, numa fotografia emoldurada por cima da lareira. Tenho razão, não tenho? Excelente. Só mais um teste: pensem em Pedro Silva Pereira a falar. Conseguem ouvir a voz dele e apenas a voz dele na vossa cabeça? Bem me parecia. A voz política dos governos Sócrates foi sempre Sócrates (mesmo à posteriori, que pensamento aterrador).
Miguel Relvas surge, assim, particularmente estranho – e inquietante. Trata-se de um número dois que intervém com frequência, que aqui e ali parece sobrepor-se a Passos Coelho, que é maçon (pormenor irrelevante não se desse o caso da Maçonaria parecer ter trocado os elevados ideais do Iluminismo pelos prosaicos ideais da troca de favores), que tem a seu cargo reformas delicadas (por exemplo: redefinição do mapa do poder local e privatização da RTP) e que, tutelando a área da comunicação social, pode facilmente cair na tentação de procurar manobrar a informação. Ora se a questão das reformas já suscita alguma preocupação, pelo nevoeiro que parece envolvê-las (em especial a da privatização da RTP), por estes dias torna-se inevitável abordar o caso Pedro Rosa Mendes. Das duas, uma: ou Relvas mandou afastar Rosa Mendes ou a administração da RTP (e RDP) decidiu antecipar qualquer desagrado superior e tratou do assunto com o excesso de zelo típico dos lambe-botas (estúpidos, ainda por cima) que tendem a ocupar posições do género neste país. No primeiro caso, nem há espaço para hesitações: Relvas devia abandonar o governo. No segundo, devia demarcar-se – e demitir a administração da RTP. Das piores coisas que o governo pode fazer numa época em que o espírito de boa vontade não abunda é começar a transmitir a ideia de que aprecia o silenciamento de vozes discordantes. E quem achou que o caso Fernando Charrua/Margarida Moreira (ou lá como se chamava a triste senhora) era um péssimo indício dos tempos que se viviam sob a batuta do quase engenheiro e futuro filósofo, não pode agora contemporizar. De resto, já era tempo de entendermos que tentar silenciar comentários negativos gera quase sempre mais ruído do que permiti-los (mas trata-se de um tique ditatorial que nos vem de longe). Sendo um homem inteligente, Miguel Relvas deve perceber que constituirá sempre um alvo: it comes with the territory de ser um número dois que se vê, ainda por cima em tempos de crise profunda. Acontecimentos deste género só farão com que tenha de pagar por isso mais depressa. Ou então pagará Passos Coelho.