A palavra paixão atravessou repentinamente o espírito de Jed, e viu-se de súbito dez anos antes, no seu último fim-de-semana com Olga. Estavam no terraço do château de Vault-de-Lugny, no domingo de Pentecostes. O terraço dava para o imenso parque cujas árvores eram agitadas por uma leve brisa. Caía a noite, a temperatura era de uma amenidade ideal. Olga parecia mergulhada na contemplação da sua mousse de lavagante, havia pelo menos um minuto que não dizia nada, quando ergueu a cabeça, o olhou de frente nos olhos e lhe perguntou:
– Saberás tu, no fundo, porque é que agradas às mulheres?
Ele mastigou uma resposta indistinta.
– Porque tu agradas às mulheres – insistiu Olga. – Suponho que já tiveste ocasião de o verificar. És o que se pode dizer bonito mas não é isso, a beleza é quase um pormenor. Não, é outra coisa…
– Diz-me qual.
– É muito simples: é porque tens um olhar intenso. Um olhar apaixonado. E é isso, acima de tudo, que as mulheres procuram. Se conseguem ler uma energia, uma paixão, no olhar de um homem, então acham-no sedutor.
Deixando-o a meditar sobre esta conclusão, bebeu um gole de Mersault, saboreou a sua entrada.
– Como é evidente… – disse um pouco mais tarde com uma leve tristeza –, quando essa paixão não se dirige a elas, mas a uma obra artística, elas são incapazes de dar por isso… enfim, ao princípio.
Dez anos mais tarde, ao encarar Houellebecq, Jed tomava consciência de que havia no olhar dele, também no dele, uma paixão, algo de alucinado até. Ele devia ter suscitado paixões amorosas, porventura violentas. Sim, considerando tudo o que sabia acerca das mulheres, parecia provável que algumas delas se tivessem tomado de amores por aquele destroço torturado que agora balançava à sua frente enquanto devorava fatias de pâté caseiro, que se tornara manifestamente indiferente a tudo o que podia parecer-se com uma relação amorosa, e provavelmente também a qualquer relação humana.
Michel Houellebecq, O Mapa e o Território.
Edição Objectiva (chancela Alfaguara), tradução de Pedro Tamen.
Jed Martin é artista plástico. Tem uma relação complicada com a caldeira do seu apartamento, janta uma vez por ano com o pai, um arquitecto que ganha muito dinheiro a fazer projectos de estâncias turísticas, ama uma mulher deslumbrante que também o ama mas, de forma quase passiva, evita o compromisso. Fica conhecido com uma série de trabalhos em que, segundo o crítico do Le Monde, adopta o ponto de vista de um Deus comparticipante, ao lado do homem, na (re)construção do mundo. Mais prosaicamente, trata-se de fotografias de mapas Michelin. Atinge a fama e a fortuna com duas séries de pinturas mostrando «profissões-tipo». Na «série dos ofícios simples», vêem-se artesãos, na das «composições de empresa», vultos como Bill Gates e Steve Jobs conversando em casa deste, ou Ferdinand Piëch visitando a fábrica da Bugatti. Para o catálogo da exposição sobre as profissões-tipo, Jed pede um texto ao famoso mas recluso escritor Michel Houellebecq. Depois ainda há um crime violento, um detective envelhecido e uma Europa que definha nas primeiras décadas do século XXI (Houellebecq é capaz de ser melhor a prever o futuro do que muitos economistas).
O Mapa e o Território é um Houellebecq com o desencanto de sempre, com referências à decadência do corpo, à incapacidade de manter relações afectivas prolongadas, à vacuidade que tomou de assalto a vida diária, ao primado do dinheiro e do show-off, mas mais suave, mais irónico do que as suas obras anteriores. É um livro em que Houellebecq tira um prazer evidente de se inserir na trama e de se descrever com todos as idiossincrasias de que é acusado. É também um livro que não inclui uma única cena de sexo (sacrilégio, em especial quando Houellebecq tem livros em que pareceu defender ser o sexo o único acto que ainda tem significado) e em que a única menção explícita a sexo, remetendo para a Tailândia de Plataforma, é feita em registo nostálgico: No entanto, elas chupam sem preservativo, bem bom… – resmungou ainda vagamente, como se recordasse um sonho defunto, o autor de As Partículas Elementares. Poderia ser a confirmação de que a idade não perdoa (um tema tão caro a Houellebecq) mas é antes uma partida, uma maneira de fintar as expectativas do leitor. Sim, por incrível que pareça sou mesmo eu, o gajo que metia sexo em cada página, parece dizer-nos o francês, nesta passagem como de cada vez que, referindo-se a si mesmo, usa a formulação o autor de (disse o autor de As Partículas Elementares; perguntou o autor de La Poursuite du Bonheur; concordou o autor de Plataforma). É verdade: podíamos duvidar.
Mas talvez mais surpreendente do que a inexistência de sexo seja o facto de as personagens, ainda que por vezes ridículas, exsudarem calor humano. A mulher por quem Jed se apaixona, o pai com quem janta todos os Natais, num ritual parte obrigação parte prazer, o galerista que lhe expõe as obras, a especialista em marketing que lhas promove, o polícia que adia tanto quanto lhe é possível o momento de enfrentar o cadáver do assassinado, até a fauna que rodeia o mundo da arte e da comunicação social – todos são apresentados com uma ironia benigna substituindo o cinismo e a acidez frequentes no passado. De uma forma ou de outra, parece admitir Houellebecq, por tentarmos de mais ou por tentarmos de menos, somos todos ridículos – mas talvez não execráveis.
Como seria de esperar (nenhum bom escritor se apresentaria num livro sem garantir um mínimo de distanciamento irónico), ninguém surge mais ridículo do que Michel Houellebecq. Mas também ninguém suscita tanta empatia. (Já era tempo.) Até as raras passagens em que Houellebecq não resiste a usar os olhos de Jed Martin para nos dizer que existe – ou existiu – um ser de rara argúcia e sexualmente atraente por baixo do Houellebecq que nos apresenta, como a transcrita acima, confundindo ainda mais os planos entre Houellebecq-escritor e Houellebecq-personagem, acabam por ajudar a aproximá-lo do leitor. Percebemos a necessidade. É humana – e muito masculina, pormenor não despiciendo quando falamos do autor de obras como As Partículas Elementares e Plataforma.
Ao contrário do que sucede noutros livros, aqui também não existem grandes considerações sobre o ser humano, sobre as suas falhas e incapacidades, sobre o seu declínio biológico. Tudo isto está no livro, claro, que as obsessões de Houellebecq não desapareceram nem desaparecerão, mas encontram-se abordadas de um modo mais leve, mais resignado, como se Houellebecq tivesse decidido encolher os ombros, parar de pensar tanto (o verdadeiro problema do ser humano é, evidentemente, pensar) e dizer: se não me percebem quando sou directo e brutal, vão-se lixar; já me estou nas tintas e até aprendi a rir-me às vossas custas.
A verdade é que este novo distanciamento resulta. O livro é bom. Porém, causou um problema aos intelectuais franceses. Sem tiradas polémicas sobre o papel do sexo, a decadência humana ou a estupidez de certas religiões para criticar, tiveram de contentar-se em acusar Houellebecq de plagiar a página da Wikipedia sobre a mosca doméstica. Houellebecq admitiu imediatamente que sim senhor, retirara a informação da Wikipedia e passou a incluir no fim do livro um agradecimento a essa enciclopédia online (a edição portuguesa inclui-o). A intelligentsia gaulesa permaneceu tão perplexa que, na dúvida, depois de anos a zurzi-lo, lhe atribuiu o Goncourt.
– Vai reconhecer a casa com facilidade, é o relvado mais mal conservado das redondezas – dissera-lhe Houellebecq. – E talvez de toda a Irlanda – acrescentara.
Na ocasião julgara tratar-se de um exagero, mas a vegetação atingia efectivamente alturas fenomenais. Jed seguiu por um caminho empedrado que serpenteava por uma dezena de metros entre os maciços de cardos e de silvas, até à plataforma alcatroada onde estava estacionado um SUV Lexus RX350. Como era de esperar, Houellebecq escolhera a opção bungalow: era um grande edifício branco e novo, com telhados de ardósia – realmente uma casa perfeitamente banal, exceptuando o estado repugnante do relvado.
Tocou, esperou uns trinta segundos e o autor de As Partículas Elementares veio abrir, de pantufas, vestindo umas calças de bombazina e um confortável casaco de trazer por casa, de lã crua. Fitou Jed longamente, pensativamente, e depois dirigiu o olhar para o relvada numa meditação melancólica que parecia ser-lhe habitual.
– Não sei usar uma máquina de cortar relva – concluiu. – Tenho medo de cortar os dedos nas lâminas, parece que é frequente isso acontecer. Podia comprar um carneiro, mas não gosto deles. Não há nada mais foleiro que um carneiro.
Jed seguiu por umas salas de chão de pedra, vazia de móveis, aqui e além com algumas caixas de cartão das mudanças. As paredes eram forradas de papel pintado, liso, branco sujo; o chão estava coberto por uma ligeira película de poeira. A casa era muito ampla, devia ter pelo menos uns cinco quartos; não estava muito quente, não mais que dezasseis graus; Jed teve a intuição de que todos os quartos, com excepção daquele onde Houellebecq dormia, deviam estar vazios.
– Acabou de se instalar aqui?
– Pois foi. Enfim, há três anos.
(...)
– Gosta de enchidos? – perguntou o escritor.
– Sim… Digamos que não tenho nada contra.
– Vou fazer café.
Levantou-se com vivacidade e regressou uns dez minutos depois com duas chávenas e e uma cafeteira italiana.
– Não tenho leite nem açúcar – anunciou.
– Não faz mal. Eu não tomo.
O café era bom. O silêncio prolongou-se, absoluto, durante dois ou três minutos.
– Eu gostava muito de enchidos – disse por fim Houellebecq –, mas decidi passar sem eles. É que, sabe, eu acho que devia ser proibido ao homem matar porcos. Disse-lhe todo o mal que pensava dos carneiros; e persisto na minha opinião. Até os méritos da vaca, e neste ponto estou em desacordo com o meu amigo Benoît Duteurtre, me parecem ser exageradamente exaltados. Mas o porco é um animal admirável, inteligente, sensível, capaz de dedicar um afecto sincero e exclusivo ao dono. E realmente a sua inteligência é surpreendente, nem sequer se lhes conhecem os exactos limites. Sabe que já foi possível ensiná-los a dominar as operações simples? Enfim, pelo menos a adição, e acho que a subtracção em certos indivíduos muito dotados. Estará o homem no direito de sacrificar um animal capaz de atingir as bases da aritmética? Francamente, acho que não.
Michel Houellebecq, O Mapa e o Território.
Edição Objectiva (chancela Alfaguara), tradução de Pedro Tamen.
Já não me lembro em que publicação li, há cerca de dez anos, uma entrevista a Michel Houellebecq. Na altura ele vivia realmente na Irlanda (depois mudou-se para Espanha, onde não sei se permanece) e as fotos que ilustravam o artigo eram tal qual como se apresenta a Jed Martin, a personagem principal do seu novo livro. Há muitos anos que Houellebecq, o escritor, se transformou numa personagem e ele sabe-o. Raramente os seus livros foram lidos pelo que pretendiam dizer e ele sabe-o. Chegou a referi-lo em entrevistas, explicando que as críticas negativas o chateavam acima de tudo por, centrando-se nele próprio – e, no fundo, muito mais na personagem Houellebecq do que nele próprio – e nas componentes de choque que os livros incluíam – misantropia, sexo, niilismo –, passarem ao lado daquilo que os livros efectivamente procuravam transmitir. Claro que boa parte da responsabilidade por as coisas se passarem assim era dele, nunca avesso a desencadear uma polémica. Mas é verdade que, se os livros continham sexo, uma razoável dose de niilismo e muito mais do que simples vestígios de misantropia, continham também um desamparo raivoso, implacável, pouco dado a contemporizações, e uma aparente falta de afecto que era muito mais um queixume (reaccionário, no limite) sobre a evolução das relações humanas, sobre a incapacidade destas se manterem significativas (L'amour non partagé est une hémorragie, queixava-se a personagem principal de La Possibilité d'une Île) do que verdadeiro ódio à humanidade ou vontade de chocar os leitores e conseguir publicidade (embora esta estivesse presente, que Houellebecq é demasiado cerebral para não levar todas as vertentes em consideração). A premissa do seu primeiro romance, Extensão do Domínio da Luta (1994; edição portuguesa pela Quasi em 2006) diz tudo sobre a posição dele e explica perfeitamente o que se seguiu: os afectos e a sexualidade, condicionados de tantas maneiras no passado, jogam-se hoje num mercado aberto, capitalista, no qual há vencedores e perdedores, a frieza dos factores de competitividade (dinheiro, beleza, poder) se sobrepõe a tudo o resto, o tédio e a decadência do corpo constituem os principais inimigos e os bens materiais se revelam tão importantes (e tão pouco importantes) como os relacionamentos (a referência à Lexus, no excerto que transcrevi acima, como dezenas de outras às mais variadas marcas espalhadas pelos seus livros, é tudo menos acidental). Concorde-se ou não, ache-se que sempre foi assim ou não (mas não foi; pense-se, por exemplo, em como as crenças religiosas, os casamentos arranjados, os estreitos limites geográficos em que as pessoas se moviam, a falta de tempo livre e a inexistência de alternativas lúdicas às proporcionadas pelo casamento tornavam as relações – e as expectativas em torno das relações – bastante diferentes) a visão de Houellebecq é de que o ser humano, uma construção biológica que começa a morrer logo após atingir a idade adulta, encontrando-se cada vez menos capaz de verdadeiro afecto (deseja-o mas tem dificuldades em consegui-lo e não sabe como mantê-lo), o substitui por consumo (de sexo, de gadgets, de aparências, de ideias sem significado real). Em Plataforma (2001 em França; 2002, pela Bertrand, em Portugal), as ideias de consumo e de mercado eram tão evidentes (as personagens principais dedicavam-se a explorar uma empresa de turismo sexual) que talvez fossem demasiado óbvias para bem do livro. E em A Possibilidade de Uma Ilha (2005; 2006 em Portugal, pela D. Quixote), Houellebecq criou mesmo, num par de clones vivendo no quarto milénio, versões «melhoradas» do ser humano, menos expostas ao declínio físico e aos problemas dos afectos. Note-se que ele já abordara os temas da clonagem e da manipulação genética, enquanto hipóteses de solução para os defeitos humanos, em As Partículas Elementares (1998; Temas e Debates, 1999) e que terão existido declarações suas segundo as quais essas tecnologias lhe são simpáticas. Isto seria tudo menos estranho, considerando que é o ser humano tout court que parece deprimi-lo para além de qualquer hipótese de redenção, se não existissem nos seus livros sinais em contrário. Por exemplo, Daniel25, vigésimo quarto descendente de Daniel1, o humano original de A Possibilidade de Uma Ilha, confessa: Ma propre vie pourtant, j'y pense souvent, est bien loin d'être celle qu'il aurait aimé vivre. «Il» é Daniel1, o humano do presente. Ou seja, mesmo com manipulação genética, o humano do futuro não será o que gostaríamos que fosse; a ciência não é a panaceia e Houellebecq sabe-o. Pelo que as declarações a favor da clonagem talvez não passassem de pose, de uma mistura de sinceridade (última esperança, malgré tout?) com estratégia de marketing (o maior problema com Houellebecq é mesmo conseguir separá-lo da personagem Houellebecq). Seja como for, independentemente do que ele vai dizendo (ou do que se vai dizendo que ele disse), parece inegável que, por muito desencanto e raiva que o ser humano actual lhe suscite, Houellebecq não consegue inventar-lhe uma alternativa válida. E, no fundo, resigna-se a admiti-lo em cada livro.
Assim sendo, a pequena surpresa que constituiu O Mapa e o Território, editado no ano passado em França e há umas semanas por cá, advém de verificar quão perto da superfície se encontra enterrada essa incapacidade. Mas isso fica para amanhã. A menos que a preguiça, o tédio ou o desânimo me vençam – sou apenas humano.
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