como sobreviver submerso.

Domingo, 1 de Maio de 2011
Perder a opção de morrer (dia da mãe: 3)

Nunca usei outro perfume a não ser o que foi criado para mim a pedido de Guillaume nessa viagem a Paris. Substituiu o Bounce, fala por mim e recorda-me de que existo. Uma das minhas companheiras de apartamento passou vários anos a estudar teologia, arqueologia e astronomia, para perceber quem foi o nosso criador, quem somos, por que motivo existimos. Todas as noites, chegava a casa não com respostas mas com novas questões. Eu nunca me questionei sobre coisa alguma a não ser sobre o momento em que poderia morrer. Deveria ter escolhido esse momento antes da chegada dos meus filhos, pois desde então perdi a opção de morrer. O cheiro acre dos seus cabelos ao sol, o cheiro a transpiração nas suas costas à noite ao acordarem depois de um pesadelo, o cheiro poeirento das suas mãos quando voltam da escola obrigaram-me e obrigam-me a viver, a ficar deslumbrada com a sombra das suas pestanas, comovida com um floco de neve, transtornada com uma lágrima nas suas faces. Os meus filhos deram-me o poder exclusivo de soprar numa ferida para tirar a dor, de perceber palavras não pronunciadas, de ser dona da verdade universal, de ser uma fada. Uma fada apaixonada pelos seus cheiros.

Kim Thúy, Ru.

Edição Alfaguara, tradução de Paula Centeno.



publicado por José António Abreu às 15:31
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Deixar de amar (dia da mãe: 1)

Quando eu era mais jovem via a tia Dois prostar-se diante de Buda, diante de Cristo, diante do próprio filho para lhe suplicar que não desaparecesse durante meses, que não voltasse para ela ao fim desses meses de ausência escoltado por homens que lhe encostavam uma faca ao pescoço. Antes de eu ser mãe, não entendia como é que ela, uma mulher de negócios lutadora, de olhar vivo, de língua afiada, podia acreditar nas histórias e nas falsas promessas do seu filho viciado no jogo. Na minha recente visita a Saigão, ela disse-me que devia ter sido uma grande criminosa na sua vida anterior para ser obrigada, nesta vida, a acreditar nas intrujices do seu próprio filho. Ela queria deixar de amar. Estava cansada de amar.

Porque fui mãe, também lhe menti ao omitir a noite em que o seu filho pegou na minha mão de criança e a pôs à volta do seu sexo de jovem adulto, e a noite em que se introduziu no mosquiteiro da tia Sete, aquela que é deficiente, indefesa. Calei-me para que a tia Dois, envelhecida, esgotada, não morresse por ter amado.

Kim Thúy, Ru.

Edição Alfaguara, tradução de Paula Centeno.



publicado por José António Abreu às 15:30
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Terça-feira, 19 de Outubro de 2010
Uma bolacha

Deb, alone.

 

Deborah: My mother used to tell a story about how I came into the kitchen one day while she was preparing an important dish. I was about four. I said, “Mommy, can I have a cookie?”, and she for some reason misunderstood or misheard me, and thought that I said that I wanted a “hug”, so she gave me a “hug”, and I said, “Thank you, Mommy. I didn´t want a cookie after all.”  

David Mamet, Sexual Perversity in Chicago



publicado por José António Abreu às 21:46
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Terça-feira, 23 de Fevereiro de 2010
Trovoadas

Lembro-me de trovoadas que faziam com que a minha mãe começasse a rezar a Santa Bárbara, interrompendo-se uma fracção de segundo de cada vez que soava um trovão, para logo recomeçar com maior ímpeto, e me deixavam a tremer, mais por causa dos trovões do que dos relâmpagos e, mais ainda, por não saber como lidar com uma mãe assustada. Um miúdo de quatro ou cinco anos fica perdido quando os pais se assustam. Os pais sabem tudo, aguentam tudo, são capazes de o proteger de todos os perigos. O que fazer, quando o medo que sentem não parece inferior ao dele?
 
Eram trovoadas fortes, as que ocorriam junto à Serra da Estrela. As trovoadas são muito mais assustadoras fora das cidades. Mais puras, também. Nas cidades, parecem uma intromissão desagradável, quase impertinente, da natureza. Um obstáculo ao fluxo do trânsito e das pessoas calcorreando os passeios. Uma chatice. No campo, com o vento, exultante, sacudindo árvores, dobrando arbustos, penteando a erva, com a luz do dia sugada pelas nuvens escuras e baixas, com a água caindo como um corpo sólido, não é a incongruência que sobressai mas algo mais primevo. Algo que remete para um jogo entre luz e sombra, entre razão e instinto, entre recompensa e castigo. Daí as rezas a Santa Bárbara.
 

Trovoadas breves ecoaram sobre o Porto durante a manhã. Sinto vontade de telefonar à minha mãe e lhe perguntar como está o tempo por lá. E, se estiver a trovejar, de ficar a conversar sobre qualquer coisa sem importância (as maldades do gato, por exemplo) até que passe.



publicado por José António Abreu às 13:32
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