Sempre que um português é eleito para um cargo internacional, o establishment político e comentadorístico nacional exulta. O cargo em si e o que ele implica interessam pouco. O que interessa é o «reconhecimento» das «qualidades» de mais um cidadão português por entidades estrangeiras, fazendo das referidas «qualidades» não apenas indiscutíveis como uma extensão das qualidades (sem aspas, que algumas hão-de ter) dos embevecidos políticos e comentadores.
Evidentemente, também há em tudo isto uma componente de hipocrisia. Em Portugal não se criticam portugueses que ascendem a cargos internacionais (ainda que - por exemplo - tenham sido péssimos primeiros-ministros) do mesmo modo que não se critica (pela frente) gente que acabou de ser galardoada com um prémio qualquer ou que acabou de falecer. Parece mal.
É pois entre a parolice do deslumbramento e a cobardia da necessidade de manter aparências que a eleição de Mário Centeno vinha já sendo encarada como uma estrondosa vitória para o país em geral e para o governo em particular. Contudo, uma dose de ilusão permeava - e permeia - igualmente todo o processo. Em arroubos de entusiasmo, António Costa e alguns comentadores mais optimistas não se coibiram de sugerir que instalar Centeno à frente do Eurogrupo constituiria uma lança em África capaz de alterar o curso das políticas orçamentais da Zona Euro. É esquecer vários detalhes: a situação do governo alemão, temporariamente mais preocupado com outros assuntos; o facto de a eleição resultar muito mais de acordos entre famílias políticas europeias (o Partido Popular Europeu já detém as presidências da Comissão e do Conselho) do que de real mérito; o destino de várias figuras tragicómicas que, nos últimos anos, de Hollande ao par Tsipras-Varoufakis, iam fazer precisamente isso. Mas, acima de tudo, é esquecer que as instituições europeias têm o condão de moldar as pessoas aos cargos e não o contrário. De resto, quando as pessoas são portuguesas, até costuma ser fácil. Pense-se em Durão Barroso ou nessa eminência que chegou a garantir que o euro acabaria com as preocupações orçamentais portuguesas, Vítor Constâncio. À frente do Eurogrupo, Centeno terá que ajudar a fazer cumprir as regras orçamentais europeias, ainda que elas não sejam ideais para a política de eterno adiamento favorecida pelo governo português, e nem deverá experimentar grandes pruridos em fazê-lo. O ofuscante oportunismo que em 2015 lhe permitiu enfiar na gaveta as convicções em relação ao mercado de trabalho permitir-lhe-á certamente colocar os interesses da «Europa» - e de uma carreira internacional - à frente dos de António Costa e respectivos acólitos. O que, a acontecer, Costa só poderá achar natural: o oportunismo é algo que ele entende perfeitamente.
Há momentos que separam os técnicos (por moldáveis que sejam) dos políticos. Mário Centeno poderia ter dito que falar de um novo resgate não faz sentido. Que a economia está bem e vai melhorar ainda mais; que o país se encontra no caminho certo; que, «virada a página da austeridade», Portugal é agora - e não antes - um caso de sucesso. António Costa tê-lo-ia feito, com a displicência a que tantos chamam «optimismo». Centeno fez diferente. Aceitou a hipótese como credível. E isto diz tudo sobre o que realmente pensa - ou, no mínimo, sobre os medos que o assaltam.
(Note-se que lampejos de sinceridade como este não o desculpam: destroçado o cenário no qual baseou a sua acção, continua no governo a fingir que tudo vai bem. Lampejos como este demonstram apenas que a maior diferença entre técnicos e políticos nos momentos em que se torna necessário manter uma ficção é - como também vimos no tempo de Sócrates e Teixeira dos Santos - a consistência.)
O país viria abaixo se estas palavras tivessem sido proferidas por um ministro do governo PSD-CDS. Até mesmo Manuel Pinho, num governo socialista, levantou um coro de críticas ao publicitar - na China, lembram-se? - os baixos salários dos portugueses. Mas agora existe a geringonça. Está tudo bem.
O plano dos economistas liderados por Mário Centeno com que António Costa se apresentou às eleições baseava o crescimento no consumo interno, trocando mesmo receitas públicas actuais por receitas futuras (a famosa descida da TSU). Era um plano arriscado, com tantas probabilidades de resultar neste mundo conturbado (e, acima de tudo, sobreendividado) como eu tenho de ainda hoje - e por esta ordem - conquistar o coração da Jessica Chastain e ganhar o euromilhões, mas pelo menos apresentava alguma coerência formal. Fazemos isto e isto e isto, de modo a obter este e este e este resultado, sendo que, em tese, havia compatibilidade entre o que se fazia e o que se esperava. Só que o plano foi estraçalhado, primeiro num sentido pelos parceiros da «geringonça», depois no outro pelos técnicos da Comissão Europeia, transformando-se numa manta de retalhos que não apenas dá às corporações o que tira à generalidade dos cidadãos e das empresas (já seria mau, por dificultar a recuperação) mas pura e simplesmente não bate certo.
Mas António Costa (especialista em questões de poder) sabe que o seu futuro (o único que lhe interessa) depende do timing e das características da próxima crise. Isto fá-lo-á resistir durante tanto tempo quanto lhe for possível, tentando distorcer os acontecimentos, manobrar as expectativas e, acima de tudo, aguardando um golpe de sorte. De vez em quando, porém, não evitará declarações como as do sábado passado. Ao recomendar aos portugueses menos consumo depois de assentar todo o programa de governo em mais consumo, António Costa, consciente ou inconscientemente (talvez como quando chamou primeiro-ministro a Passos Coelho), admite o falhanço da sua estratégia. O resto é uma questão de tempo.
1. No esboço original do orçamento, o governo previa um crescimento da economia de 2,1% e um défice público de 2,6% do PIB;
2. Partindo do esboço original do orçamento, a Comissão Europeia antecipou um crescimento de 1,6% e um défice de 3,4% e o FMI um crescimento de 1,4% e um défice de 3,2%;
4. Como é que isso justifica os desvios?
Mas enfim, sejamos positivos: pelo menos como espectáculo para consumo de pipocas, a coisa promete. Vai ser divertido assistir ao braço de ferro entre governo, comissão europeia, bloco de esquerda e partido comunista. E pode ser que entretanto a DBRS resolva juntar-se à festa. Nesse caso, os tempos ficarão mesmo muito, muito interessantes.
Não será altura de a intelligentsia nacional começar novamente a bramir contra as agências de rating? (Poupando a DBRS, claro - por enquanto.)
Funcionou bem em 2009 e 2010, não foi? E as PPP até se pagaram a elas mesmas...
(E agora vou parar, que afinal isto não é um espaço de divulgação do ministro Centeno.)
Como é que o défice desce, apesar das medidas de reversão?
Ah, pronto. Assim sendo...
1. Não vou discutir questões de pedagogia. Os exames do quarto ano podem ou não fazer sentido. Mas a inexistência de qualquer análise prévia à decisão de os eliminar, bem como a não implementação de outro método para avaliar escolas e professores, faz com que a pedagogia seja pouco relevante. Muitos pais aplaudirão: é menos «stresse» para os filhos e hoje em dia o mais importante é as crianças não sentirem «stresse», em especial porque ele se reflecte nos pais. Quase todos os professores e directores de escola aplaudirão: é menos um elemento de avaliação do seu trabalho. O novo ministro da pasta... Ora, o que importa o que o novo ministro pensa quando os superiores interesses do Bloco e do PCP se levantam?
3. Ontem, no Parlamento, Costa respondeu às reservas de Jerónimo com a cristalina frase: «Aquilo que o PCP não está disponível para apoiar, é aquilo que nós não estamos disponíveis para propor». Já sabíamos que o programa do governo não é o mesmo que o PS levou às eleições onde foi derrotado. Já desconfiávamos que, mais do que uma obra do PS, será o que PCP e Bloco desejarem que seja. Ontem, Costa confirmou que as famosas «linhas vermelhas» são mesmo as do PCP.
pessoais
Amor e Morte em Pequenas Doses
blogues
O MacGuffin (Contra a Corrente)
blogues sobre livros
blogues sobre fotografia
blogues sobre música
blogues de repórteres
leituras
cinema
fotografia
música
jogos de vídeo
automóveis
desporto
gadgets