O léxico mingua. Camilo conglobava uma miríade de vocábulos hoje alóctones. Qual filigrana rococó, Aquilino desembuçava concatenações multifárias e buriladas. Hoje, bulhufas. Mas as sarandalhas palmeiam. Pascácios conjecturando-se paladinos do discernimento coagem a aceleração da declividade, assestando vitupérios na Internet sobre almas ensimesmadas que se afoitam à geração de verbetes prenhes de ímprobas lexias. Pelejar é supervacâneo. Antes arriar.
No emprego, enviam-me uma mensagem de correio electrónico com a informação de que algo é "mentira" (assim mesmo, com aspas).
Por que é que «mariquinhas» e «coninhas» significam mais ou menos o mesmo?
Travamos lutas ferozes em que sou sempre derrotado.
(A sério, leiam os meus posts e confirmem.)
(Oh, m...)
Na televisão, um comentador de corridas de automóveis refere-se a uma mulher como «piloto». Fico à espera de que alguém envie para lá uma mensagem de protesto e ele tenha de se retractar mas, talvez porque as mulheres não vêem corridas de automóveis, a coisa passa incólume. Não devia, porém: se um presidente do sexo – perdão, do género – feminino é agora uma presidenta, por maioria de razões uma rapariga que participa em corridas de automóveis tem de ser uma pilota.
É impressionante a quantidade de embalagens de filmes e séries apresentando erros ortográficos (sendo que muitas edições são portuguesas, não vêm de Espanha como o exemplo acima). Parece, aliás, que o número tem vindo a aumentar, tal como, sei lá, o dos erros nos rodapés dos noticiários televisivos. A circunstância incomodou-me durante algum tempo, confesso. Depois percebi que, atendendo à nossa indiferença pela língua, que a fácil implantação do Acordo Ortográfico deixou patente (muito embora, no caso daquela gente ansiosa por se sentir progressista, «indiferença» seja a palavra errada; tratou-se antes de um entusiasmo próprio de novos-ricos) e ao efeito potenciador desse mesmo Acordo na existência de diversas variantes aparentemente aceitáveis (as antigas, as novas, as que parecem novas), depressa muitos destes erros deixarão de o ser. Na verdade, com a regra do primado da fonética a ganhar terreno, «navegasão» já nem sequer constitui erro grave; apenaz um atu de vanguardizmu.
Há portugueses a fornecer «contatos».
Numa discussão no Delito de Opinião acerca do Acordo Ortográfico, José Navarro de Andrade classificou o assunto como "de somenos" quando comparado com "a indiferente sonolência perante o achincalhamento diário da gramática". Se o assunto é ou não de somenos, cada qual decidirá. Mas há um ponto que me parece óbvio: o Acordo ajudará a aprofundar o achincalhamento. Porquê? Simples. De forma geral, concorde-se ou não com as suas ideias e prioridades, os opositores ao Acordo preocupam-se com a língua portuguesa. Obrigá-los a usá-la numa forma que os agride é convidá-los a desinteressarem-se de tudo o resto.
Nenhuma situação, porém, me fez sentir tão excluído como o Acordo Ortográfico. De cada vez que, na televisão, vejo legendas usando aquilo a que agora chamam português, de cada vez que, numa livraria, pego num livro e o folheio em busca de palavras que me confirmem o que já é quase regra (após o que o pouso novamente e me afasto, cabisbaixo), de cada vez que, junto a um expositor de filmes e séries, verifico que – abrir a caixa de Pandora tem sempre consequências imprevistas – começam a surgir edições em que as legendas não apenas seguem a ortografia prevista no acordo mas estão cem por cento em brasileiro, com tudo o que isso significa a nível lexical e de construção frásica (entrem numa Fnac e leiam a indicação de legendas da edição em Blu-ray do Casablanca), de cada vez que qualquer destas coisas acontece eu sinto-me um estranho no meu próprio país; pior, um estranho na minha própria Língua.
Claro que este tipo de reacção – de lamento, se quiserem – será encarado com o desdém habitual nos defensores do acordo quando confrontados com «velhos do Restelo» como eu. Com o desdém dos que têm a força (nem sequer a lei) do seu lado e não sentem necessidade de justificações técnicas (estas ficam quase sempre para os opositores ao acordo e acabam ignoradas por um público que prefere os chavões da «evolução» e das «vantagens da mudança» a analisar os assuntos em profundidade). Mas a questão principal nem é saber se os opositores são velhos do Restelo ou os apoiantes gente que, na sua pequenez, gosta de sentir-se a moldar a História (sim, é isso que penso). A questão é que, antes, aqui ou em qualquer outro país de língua oficial portuguesa, independentemente das diversas ortografias, todos usavam o português e ninguém se sentia violentado. Pelo contrário: as diferenças – não só ortográficas mas também lexicais – eram parte integrante do prazer que se obtinha ao contactar com obras (e pessoas) de outras zonas geográficas. Certamente nenhum português se sentiu alguma vez excluído ao ler Rubem Fonseca ou Mia Couto como nenhum brasileiro ou moçambicano se terá sentido excluído ao abrir um livro de Saramago ou de Lobo Antunes. É a imposição de uma normalização artificial que incomoda. A tentativa de forçar a História por decreto (algo que, em tantos e tantos domínios, insistimos em fazer). A Língua é um bem comum, não pertence à meia dúzia de políticos e outros tantos académicos que, imbuídos das melhores intenções ou da mais míope presunção, decidiram avançar para esta reforma. E não existe sequer racionalização que se possa fazer: não houve consulta popular nem verdadeiro debate, não é algo inevitável nem geral nem passageiro. Repito: antes ninguém se sentia violentado. Agora é diferente. Eu, por exemplo, sinto-me violentado. E, mais do que em alguma ocasião no passado, sinto que não encaixo neste país.
É uma cobardia atacar os que são demasiado fracos para se conseguirem fazer ouvir.
No último editorial que escreveu enquanto director da Ler, Francisco José Viegas anuncia para Setembro a implementação do acordo ortográfico na revista. É pena. Mas estamos em crise. E se, por falta de opção, pode vir a existir um momento em que eu comece a comprar livros, jornais e revistas escritos segundo o acordo, esse momento não será em Setembro de 2011. Para mim e por enquanto, a decisão da Ler representa uma poupança de cinco euros por mês.
Adoptem lá o malfadado acordo ortográfico. Preciso de parar de comprar livros. Possuo demasiados e o Kindle tem estado tão inactivo...
(Com a Blitz, resultou. E já mal sinto vontade de pegar nela quando passo por um quiosque.)
E assim limitamo-nos a ler os títulos dos jornais e os rodapés dos noticiários televisivos, a acreditar nos adjectivos com que somos bombardeados e a defender posições sobre as quais, verdadeiramente, nunca pensámos.
Adenda
Com a nossa apetência pela facilidade, encaramos frequentemente evolução e facilidade como sinónimos. Evoluir passaria então por tornar as coisas mais fáceis. É uma visão simplista. Considerem-se as seguintes posições: «Há os bons e os maus. Eu estou do lado dos bons.»; «Apesar de algumas notícias me fazerem por vezes duvidar, ninguém é apenas bom ou mau. Eu não o sou certamente.» Uma destas posições é mais simples, mais fácil de gerir. Mas não é certamente mais evoluída.
A revolução democrática no Norte de África avança a um ritmo inesperado. A julgar pela imprensa e blogues nacionais, já são três países em convulsão: a Tunísia, o Egipto e o Egito.
(Como o Egipto, o Egito encontra-se pejado de egípcios mas não tem um único egício. O mundo da língua portuguesa é fantasticamente ridículo.)
«Não atires pedras a estranhos porque pode ser o teu pai»? Hmmm, tentemos de novo: «Não atires pedras a estranhos porque pode ser o teu pai». Diabos. Talvez à terceira: «Não - atires - pedras - a - estranhos - porque - pode - ser - o - teu - pai». Desisto. Ou há uma regra de concordância que desconheço (é possível; também não sei lá muito bem o que significa «eufemismo») ou o português deste adolescente trintão parece que muito conhecido é ligeiramente peculiar.
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